Sofia Freire Tem Saboreado o Palco, as Palavras e as Incertezas

Após mais de um ano do lançamento do seu terceiro disco, Ponta da Língua, Sofia Freire tem feito viagens para tocar em palcos pelo país e também transitado e questionado – com essa experiência – por ideias sonoras, performáticas e de escrita, sem esperar necessariamente uma resposta para todas elas. Desfeita por perguntas, a artista pernambucana tem preferido as estradas incompletas, os meios em que não sabe aonde vai chegar. Sofia saboreia e experimenta reflexões que vão desde o olhar sobre um mundo mascarado em espelho, que sempre reflete a nós, à escuta da voz como um instrumento da fragilidade, e também à percepção da criatividade que transborda do equívoco, encarando-as como algumas das incertezas que guiam suas experiências artísticas.
Dias antes de se apresentar na Casa de Francisca, em São Paulo, Sofia conversou com o Música Pavê sobre o que veio depois de Ponta da Língua, disco que contou pensar ser sua última cartada no campo da música, mas que retornou a ela como uma surpresa. A repercussão fez caminhos inesperados e não deixou a obra intacta, ao receber percepções criativas de quem escutou – uma liberdade que suas letras, ideias e imagens mentais sem intenção de construir um destino certo atingem. Suas palavras, habitantes de um laboratório que tem espaço no palco, mas também nas experiências solitárias em frente ao teclado, encontram lugar também no uso solto das ideias nesta entrevista, e se alicerçam pela referência da literatura vinda de Pernambuco, que abriga uma ciência das métricas e uma cidade feita de poetas chamada São José do Egito.
Música Pavê: Faz mais de um ano do lançamento de Ponta da Língua, os fantasmas do disco ainda te rondam? Os sentimentos que estavam contigo quando você fez o álbum ainda estão, ou passou esse tempo e você está em outro momento?
Sofia: Eu acho que sempre fica uma parte, né? Acho que nada vai embora completamente. Existe todo um processo prévio, de antes de estar ali fazendo o disco, que foram pelo menos dois anos elaborando aquelas palavras e aqueles sentimentos. Só que, quando você joga essa criação no mundo, acho que todas aquelas coisas que você colocou ali no disco passam a ter outros contornos. Não é que vão embora aqueles sentimentos, aqueles pensamentos, aquelas reflexões, elas continuam ali. Mas elas vão ganhando outros contornos, outras camadas à medida que vamos atravessando, eu acho que assim, o público mesmo, né? Porque rola uma devolutiva e damos a coisa para o mundo e recebemos o que é que tiraram daquilo – e é uma coisa sua mas, não é mais sua. Então, essas coisas acabam retornando e começamos a olhar para elas também, de uma perspectiva de todo mundo que ouviu também, sabe? Então, esses fantasmas, essas coisas, ainda permanecem. Só que é uma permanência mutável. Acho que. no final das contas. é tudo isso, né? Nada vai embora não, eu acho. Tudo somente se transforma.
MP: E como foi essa recepção das pessoas, e como ela te atingiu?
Sofia: Rapaz, repercutiu muito mais do que eu imaginava. Ponta da Língua foi uma grande surpresa, com tudo o que aconteceu com ele. Ele me deu muitas alegrias e chegou a lugares para mim que eram inimagináveis até então. Até porque, quando eu estava fazendo o disco, estava em uma onda muito de meio que querer desistir da música, de não querer mais fazer, e dele ter sido meio que a minha última cartada. Olha, não tenho o que fazer, eu tenho aqui esse disco, e eu vou lançar, eu vou fazer, eu vou trabalhar esse lançamento, porque é o que me resta. Ele veio depois de uma crise, de um período muito difícil, então, quando eu lancei – e aí ele foi repercutindo, indo pra esses lugares -, fiquei muito surpresa, e muito feliz. É engraçado, porque recebi muitas mensagens de muitas pessoas com suas interpretações das músicas. É muito interessante ter observado isso assim, coisas que eu não imaginava nunca, uma pessoa que diz: “poxa, essa música chegou para mim em um momento tão necessário, eu não sabia que eu estava precisando ouvir essas palavras aqui”, “isso daqui tomou uma dimensão que me ajudou com um problema que eu estava passando, com uma situação que estava acontecendo, que eu comecei a perceber, a refletir, a olhar para as coisas de uma outra forma”, ou então assim: “por conta das suas músicas, suas referências, eu passei a ler essas autoras que você menciona”. Então, é muito interessante. Teve uma pessoa que chegou e falou “nossa é tão linda a sua música, né? Ela fala sobre menstruação”. Uau! Eu falei: “eu não fiz pensando nisso, mas, se você quiser que seja sobre isso, pode ser”. Aí você pensa “poxa, poderia ser sobre isso mesmo”. Então, eu recebo tudo isso com muito encantamento. Que massa, né? Acho que isso é o poder que as palavras, que a música tem de realmente bater na pessoa. Véi, você não sabe como a pessoa vai receber, o que ela vai tirar daquilo ali. Por isso que eu digo que é uma coisa meio sua, mas não é sua mais quando você bota no mundo, porque começam a acontecer processos de coautoria ali. Todo mundo acaba sendo um pouco autor daquilo ali, a partir do que ela vai refletindo, da bagagem dela – é tudo nosso, no final das contas.
MP: Mas se tu fosse dizer, qual a tua intenção, qual a experiência que tu queria trazer com a tua música para as pessoas?
Sofia: Rapaz, assim, em um primeiro momento, acho que a minha intenção era puramente eu me expressar, era de realmente tirar uma coisa que estava ali entalada dentro de mim, e que culminou nesse disco, né? Que o título dele também faz referência a isso, Ponta da Língua, aquela coisa que estava ali prestes a ser dita, mas não saiu, e depois saiu. E foi o resultado do disco. Acho que, depois de muito tempo, foi um processo que eu iria dizer de entendimento, mas eu acho que eu não estou querendo me fazer ser entendida não, sabe? Porque eu acho que eu já desisti do entendimento faz muito tempo. Acho que o não entender, para mim, é o mais importante. Quando eu justamente estava refletindo sobre o conceito do álbum como um todo, o que eu estava falando com as minhas músicas, o que eu estava pensando, acho que eu estou fazendo perguntas. Eu acho que a minha intenção é perguntar, não é responder. Quanto mais eu investigo e me aprofundo nessa autoanálise, [tudo é investigação no final das contas], né? Mesmo quando estamos investigando o mundo, que nos é externo, no final das contas, o mundo é um espelho também. Então, se eu vou fazer uma música que eu estou tentando falar sobre você, Nina, essa música é sobre Nina. Mas ela não é sobre Nina, ela é sobre mim. Não tem jeito, porque vai ser sobre você, mas vai ser sobre como eu te enxergo, vai ser eu de alguma forma. Vou me colocar no teu lugar, como é que eu vou fazer um exercício aí de empatia, de seja o que for? Você, Nina, é um espelho de mim. Não tem jeito, mesmo quando a gente está pensando nesse mundo externo, a gente está vendo um espelho da gente. É nesse processo que, quanto mais eu investigo, menos eu entendo, menos eu compreendo. Então, acho que é um lugar para permanecer na pergunta. Não precisa ter uma resposta, não precisa ter uma solução para tudo. Acho que Ponta da Língua é um monte de pergunta, sabe? Eu acho que a minha intenção é fazer a galera se perguntar também.
MP: E agora, o que que tu anda fazendo?
Sofia: Agora, eu estou fazendo algumas coisas. Quando eu lancei o álbum, em março de 2024, eu só fui estrear o show dele em setembro. Então, vai fazer um ano que eu estou girando com esse disco. Estamos conseguindo fazer um certo giro com ele, passando ai pelas cidades e tal. Estive nesse último ano muito focada realmente em tocar. Eu estava com uma sede de tocar, até porque esse disco tem uma instrumentação, tem um set muito específico, e eu fui me juntar com dois músicos para estar tocando ele ao vivo comigo, que são mais nerds do que eu: Homero Basílio e Miguel Mendes. Entendemos o show e o palco como um espaço de experimentação mesmo, sabe? Estamos trazendo alguma coisa de diferente a cada um, testando novas coisas, novas formas de fazer o show funcionar da melhor forma possível. E já erramos pra caramba assim, já fizemos alguns erros e alguns acertos. Mas vamos compreendendo esse espaço como um laboratório. Eu tenho estado nesse laboratório nesse último ano, e tem sido muito muito, muito legal. A partir disso, estou começando a compreender algumas coisas também a partir das performances, das viagens, e dos palcos que visitamos. Já está me dando um negócio aqui de estar querendo testar algumas coisas, alguns outros sons. Eu estou tocando Ponta da Língua, mas eu também estou fazendo outros processos de pesquisa e de investigação, procurando lugares, sons e métodos para ver o que sai disso tudo. Acho que eu estou naquele momento em que eu não tenho nada pronto, que eu não sei o que que vai ser. Tenho composto bastante, feito novas composições, mas ainda estou naquele lugar de tentar buscar alguma coisa aqui, uma coisa acolá, de talvez estar juntando meio que peças para montar alguma coisa que eu ainda não sei o que que vai ser. No momento, acho que estou nessa. Além dos trabalhos paralelos que eu vou fazendo também, de direção musical, trilha sonora para espetáculo de dança e teatro, que aí isso tudo vai enriquecendo o repertório. Acho que eu estou atrás de repertório agora.
MP: Que experimentações são essas que você está fazendo, exatamente?
Sofia: Comecei a tocar há dez anos – meu primeiro álbum vai fazer dez anos agora em outubro. Quando comecei a me apresentar com esse disco, eu tocava sozinha, eu era a banda de uma mulher só. Isso foi muito importante para mim, acho que isso me formou, foi uma escola de palco, de performance, de equipamento, de tecnologia. Como é que eu uso essas ferramentas aqui a meu favor, e não ao contrário? Passei muitos anos rodando desse jeito, era eu comigo mesma. Com Ponta da Língua, senti uma necessidade diferente de fazer com banda, pelo formato das músicas, da estrutura musical, que enquanto fazia eu já estava vendo: “poxa, acho que eu vou precisar de mais mãos aqui”. E foi o que rolou. Eu chamei essas duas pessoas para estarem comigo e temos rodado desse jeito. E eu estou sentindo um pouco essa necessidade de eu retornar um pouco para essa pesquisa minha pessoal, sabe? Estou em uma de querer voltar um pouco para esse lugar. Claro que sem deixar a minha bandinha querida, mas de voltar para essa investigação. Vejo muito nessa coisa do tocar, do sentar e colocar meus teclados ali, e usar um gravador portátil e capturar o som do que for, e mexer ali nesse som, fazer esse desenho de som das coisas, de onde eu quero tirar esse som. Eu estou sentindo isso muito necessário, e isso é um grande catalisador criativo para mim, sabe? E estou no aprofundamento dessa pesquisa de síntese, de som, e desenho também. Mas eu nem sei te dizer o que é exatamente que está acontecendo. Eu realmente estou nesse processo bem de experimentar e de fazer muitos escritos. Estou escrevendo muita coisa, e eu também não sei aonde isso vai dar também. Não tenho uma linha exatamente, qual vai ser a temática, eu estou escrevendo sobre tudo o que está acontecendo. Tenho testado outras formas de escrever também, e de não me apegar muito a um sentido muito redondo das coisas. Às vezes, na minha cabeça, vêm imagens, somente algumas elucubrações, muito doidas assim que eu penso “poxa, por que isso não seria uma música?”. Eu estava ouvindo Björk esses dias e cheguei naquela música The Modern Things, que uma tradução muito livre dessa letra é uma doidera. A letra fala assim: as coisas modernas sempre existiram, elas só estavam esperando a vez delas no topo de uma montanha. E é isso, elas estavam expandidas no topo de uma montanha esperando a vez delas para dominarem tudo. Uma viagem da cabeça dela, que coisa mais linda, sabe? E isso foi alguma ideia maluca que ela teve. Esses dias, eu estava no avião viajando à noite, e estava passando por um lugar que eram várias cidadezinhas, povoados lá embaixo. Só as luzezinhas embaixo e em cima as luzes das estrelas. Então eu fiquei pensando “que imagem interessante, os pontinhos brilhantes embaixo e os pontinhos brilhantes em cima”. Poderíamos inverter isso, e os povoados podiam estar em cima e as estrelas poderiam estar embaixo. Que legal, isso dá uma imagem doida, está tudo escuro. Então, se nos forçarmos um pouquinho a barra, podemos confundir as coisas. Que legais essas imagens mentais que vão aparecendo na cabeça da gente, uma viagem qualquer. Eu poderia falar sobre isso, e não necessariamente sobre um sentimento, alguma coisa profunda, ou algum acontecimento que me aconteceu, como, meu amor me deixou, eu levei uma gaia. Então, eu tenho feito alguns escritos nesse sentido, algumas imagens mentais que têm aparecido e que podem virar música também, né, por que não? Olhar para essas coisas e tirar música delas também. Acho que eu estou bem nesse momento de, como lhe disse, de observar, observar da onde é que eu posso tirar material, da onde é que eu extraio essas coisas. É muito desta observação. E também da coisa que eu lhe disse, do tocar, de eu sentar e tocar e disso vai partir um monte de coisa. Então, eu estou bem nesse momento de experimentar isso, de buscar esses novos espaços, discursos, sons e lugares do mundo e dentro de mim, e do espelho.
MP: Que massa que você está empolgada, é muito bom ver e escutar você falando.
Sofia: Eu estou te dizendo todas essas coisas agora, e isso vai se desenvolver daqui a nove meses e eu dizer “ixi, não era nada disso, véi, esquece!”. Eu acho que estar em um lugar de atingir essa liberdade criativa, que é algo que eu busco muito, é ter essa liberdade de me contradizer também às vezes, de chegar e dizer que eu acreditava que as coisas são e assim que eu acho que elas deveriam ser feitas, e o que eu quero dizer, pode acontecer qualquer coisa. Às vezes, nada acontece e eu mudo de opinião, e me permito, sabe? Acho que – não lembro para quem foi que eu falei isso – parte do processo criativo é eu me permitir ao equívoco. Permitir que eu esteja equivocada, ter espaço no meu processo, na minha cabeça e na minha terapia de me equivocar. O que pode partir desses equívocos, de você olhar para um negócio e dizer “eita, eu estava errada!”, [é] uma coisa específica desse erro. Então, o equívoco é um lugar criativo maravilhoso, e eu não quero deixar nunca de errar. Por isso, o palco, o ao vivo, ele é tão importante pra mim. Por isso que eu ainda estou tão empolgada em estar tocando PDL por aí, porque, como nos propomos a estar sempre experimentando fazer coisa nova, justamente estamos colocando o nosso na reta ali – no sentido de que podemos errar, isso daqui pode dar muito errado, mas vamos fazer, porque o legal é isso. Tantos erros nossos, e “caramba, e aquele negócio que tu fez ali, o que que foi?”, “meu irmão, aquilo ali foi um erro, eu errei essa parte”, “rapaz, ficou tão legal, faz de novo no próximo!”. Então, isso que é massa, trazer isso para dentro do processo é uma busca também. É uma coisa que eu não quero não ter, porque não sei se perder… Errar, eu vou estar errando sempre, mas eu acho que não nos permitimos muito, existe um rigor, uma rigidez técnica, da minha parte. Sou uma pessoa que tem um certo rigor técnico com as coisas, é um processo de eu estar desapegando disso, de estar justamente abraçando um pouco mais esse processo do erro como uma possibilidade de experimentação.
MP: Você fala muito em disciplina, mas você fala muito do lúdico na música também. Como que isso está para ti agora, juntar o lúdico e a disciplina? Para você a disciplina é dor, é algo difícil?
Sofia: Não, tem uma música minha que fala um pouco sobre isso: Resta Saber, que tem um verso que diz que justamente eu levo muito a sério esse meu brincar. Eu acho que – falando de nós que somos artistas, mas eu acho que todo mundo acessa esse lugar dentro de si, artista ou não – esse lúdico é muito importante para levarmos a vida, porque eu acho que a criatividade não é só o ato e sentarmos e fazermos uma música, e fazermos uma pintura, e termos um produto daquela coisa ali que você desenvolveu ou não. Eu realmente acho que a criatividade é um estado de viver. Acho que é uma força motriz que está dentro de nós, e que estamos o tempo todo criando formas de viver, criando vida. Acho que é assim que conseguimos, digamos assim, suportar até justamente essas durezas da vida. É o fato de pegarmos tudo isso que recebemos, as dores e as delícias, e criarmos a nossa vida a partir disso. Quando perdemos isso, acho que perdemos um tesão, uma energia, uma vontade de viver. Então, o estado de criação, eu acho que é um estado constante, e temos que estar atentos para não nos perdermos, para não perdermos isso. Acho que foi isso que aconteceu comigo antes de fazer PDL, acho que eu perdi um pouco dessa ludicidade, e foi um processo de pausa, de recolhimento, de reflexão, de tantas coisas assim, para eu buscar esse caminho de volta, saca? Talvez não tenha nem sido um caminho de volta, mas uma descoberta de um outro caminho. Então, precisa de disciplina para isso, porque nos perdemos muito facilmente. Acho que só isso aqui, velho! (apontando para o celular) Isso daqui é um vampiro de disciplina. Rapaz, se eu pegar isso daqui para olhar a hora, às vezes, eu vou olhar a hora e vou ver uma outra coisa que vai me levando para uma outra coisa e, quando eu vou ver, uma hora da minha vida que eu passei aqui vendo vários nadas. E o que que eu poderia ter feito? E o que eu poderia ter visto, ou ouvido, ou pensado nessa uma hora que eu passei aqui fazendo sei lá o quê, sabe? Então, tem que ter disciplina. Eu tenho que me regular e dizer “eu vou deixar meu celular no outro cômodo enquanto eu estou fazendo essas coisas aqui, para eu não me distrair”. A disciplina, acho que ela vem desse lugar. Esse rigor negativo, acho que ele não é disciplina, acho que é sabotagem. Precisamos de disciplina para viver bem, comer bem, se relacionar bem, precisamos estar em um estado de atenção, que eu acho que é diferente de um estado de vigilância, que eu acho que é diferente de um estado de presença. Eu acho que a yoga ensina muito a gente nesse sentido também, né? É um estado de presença pura, no qual você faz um caminho para dentro de si, respirando, meditando, para você limpar a sua mente de todas as distrações e todos os sabotadores possíveis, para você estar ali presente. É tão gostoso você estar presente, você estar dentro de si assim, em um lugar de presença e consciência das coisas. Isso, para mim, é diferente da dispersão, da distração. E não que a distração não seja uma coisa boa, ela é positiva. Mas eu acho que, quando estamos dentro de um ócio criativo e coisa do tipo, é diferente disso aqui (aponta para o celular). Com isso aqui, estamos alimentando uma roda muito perversa que rouba nossa energia, rouba nosso tempo e que serve a uma outra coisa, a um outro sistema ali, que se beneficia dessa nossa distração. Mas é importante não fazermos nada, isso é sério. Poxa, eu tenho que reservar um tempo da minha vida para não fazer nada também, para eu ficar olhando pela janela. Eu acho que, quando eu falo dessa rigidez, acho que estou me referindo muito mais a uma força sabotadora, que me trava e me impede de fluir, do que uma disciplina real. Porque eu acho que, para sermos criativos, precisamos de disciplina sim. Mas isso não é uma coisa ruim, de jeito nenhum, pelo contrário. Que delícia que é uma disciplinazinha, inclusive, preciso ter mais.
MP: Agora vou falar de uma força de três artistas que eu vejo em você, e que você cita também, que são Bjork, Kate Bush e Tetê Espíndola. Como é que te infiltrou tanto essa força delas, e qual é a força de Sofia Freire?
Sofia: Quando eu penso nelas, acho que a primeira coisa que me vem à mente é a voz. Acho que são três forças vocais ali que me inspiram muito. A voz é um instrumento super complexo e super sensível, porque é nosso corpo, né? É o nosso corpo e é a nossa mente. Quando ouço essas vozes tão potentes, eu penso que elas têm uma força corporal e mental muito grande. Essa força, eu acho que – eu vou novamente trazer uma outra perspectiva – é muito frágil, é muito muito frágil. Eu acho que são mulheres que se colocam frágeis diante do mundo, por isso que elas são tão fortes. É muito fácil você ser forte assim o tempo todo – acho que principalmente hoje em dia na nossa sociedade, que está cada vez mais reforçando esse lugar da hiperprodutividade, da inquebrantabilidade. Não quebramos, somos felizes o tempo todo, e estamos o tempo todo performando. E tomamos remédio para não perdermos a atenção, para sermos mais produtivas, estamos o tempo todo mexendo com a química do nosso corpo, com a química do nosso cérebro, para estarmos sempre seguindo essa lógica dessa produção constante, como se fôssemos máquinas que não podem quebrar. Veja, até uma máquina que você utiliza demais quebra, e ela vai precisar de uma manutenção em algum momento. Ao mesmo tempo, acho que nunca se falou tanto sobre saúde mental, e como que estamos cansados, que precisamos de tempo de qualidade e de ter mais direitos trabalhistas e tudo mais para uma qualidade de vida mais digna. Se, ao mesmo tempo, nunca se falou tanto sobre essa fragilidade, então de um outro lado não demonstramos essa fragilidade, não queremos nos colocar vulneráveis perante essa grande engrenagem. Eu acho que as pessoas mais corajosas – que, a partir disso, demonstram uma força para enfrentar, para furar essa questão – são essas pessoas que se colocam vulneráveis. E a voz é um instrumento muito vulnerável, porque ela vai soar diferente dependendo de se tivemos uma boa noite de sono, se comemos no almoço, do nosso estado mental, se estamos felizes ou tristes. Tudo vai interferir ali na nossa voz. Essas mulheres, não apenas como vocalistas, mas como criadoras, elas colocam essas fragilidades no que elas fazem. Então, acho que a força delas está muito nisso, e eu me espelho muito nisso. Eu quero ser igual a elas, sabe? Por isso que é tão difícil fazer música assim, optar por uma música que fala justamente das suas sombras e das suas questões mais íntimas. Porque você está mexendo em coisas que são muito íntimas, e você expor isso para todo mundo ver que aquilo ali está acontecendo dentro de você… Mas meio que não existe uma outra forma de se colocar, sabe? Então, procuro ter essa mesma força, desse lugar do se colocar vulnerável, do se mostrar vulnerável para que eu… Olha, eu quebro, eu não funciono, eu sou uma pessoa totalmente falha, eu tenho diversas faltas. Admitir isso diante dessa coisa louca, acho que é de uma força tremenda, você entender que você não é forte.
MP: É difícil, mas é também muito forte entender isso.
Sofia: Está tudo no cinza, velho. Esse cinza aí não é preto, não é branco, é cinza. É tudo que está no meio das coisas, é tudo que está entre, são os não-lugares, são essas frestas que me interessam muito.
MP: Pernambuco tem muitas facetas, qual é o Pernambuco que aparece na tua arte?
Sofia: O que aparece para mim mais forte, que eu consigo enxergar uma influência direta, é a literatura daqui. A minha família vem de um lugar chamado São José do Egito, que tem uma tradição muito forte de poetas. Meu pai é desse lugar, lá do sertão do Pajeú. Uma coisa que eu nunca tinha entendido é por que que meu pai chama todo mundo de poeta. A pessoa não chega nos lugares e chega “e aí, querido, tudo bem?”? Meu pai é assim: “e aí, poeta? Tudo bom, poeta? Poeta, vem cá”. Eu achava que isso era uma doideira dele. Quando eu fui a São José do Egito, para a Festa de Louro – que é uma festa que tem celebrando o Louro do Pajeú, um grande poeta de lá, é uma grande celebração literária -, todo mundo se chamava de poeta. Todo mundo fala de um jeito que parece que está todo mundo declamando um poema. Você vê uma pessoa, você pede uma informação para ela: “aonde é que eu chego não sei onde”, aí ela vai dizendo: “pegue ali, dobre ali…”. Tu está recitando, é? Existe uma tradição métrica mesmo, de uma contagem de sílabas, existe toda uma ciência por trás disso, e é uma tradição oral. Eu acho que eu carrego muito disso em mim. É uma coisa que parte do meu pai, que é poeta, e que brincava de rima comigo, e que brincava de completar verso. Foi assim que eu aprendi a contar versos, foi assim que eu fui entender o que era métrica. Então, muitas vezes quando eu escrevo, quando eu vejo tem uma métrica ali estabelecida, porque é uma coisa que já vai vindo assim. Acho que eu absorvo muito isso, porque é uma coisa que só existe aqui, essa tradição poética. Fora que eu acho que a coisa do Manguebeat também é muito forte, no sentido de que abriu-se um caminho para nós que viemos depois. Veja, o que eu faço não tem nada a ver com Manguebeat, eu não pego guitarra distorcida e misturo com maracatu, não é isso, mas é mais de abrir-se um leque e de entender esse Pernambuco como uma antena. Estamos captando frequências do mundo inteiro, e eu acho que isso estabeleceu para nós essa liberdade, de fugirmos de estereótipos que o sul e o sudeste colocam muito em cima de nós, de que Pernambuco é isso, é Maracatu e Forró, isso tudo é o que nos forma, Nossa identidade cultural está nisso, mas ela também está na contemporaneidade. Temos aquele que faz rap, que faz rock, que faz trap, que faz música psicodélica, que faz todo tipo de música. Que maravilha, sabe? E que tenha nosso sotaque, e que tenha nossas particularidades, como em qualquer outro lugar do Brasil. Então, esse lugar diverso e global, que é Pernambuco, que é o nordeste, que é o Brasil. Fora o sotaque, que eu já ouvi que eu tenho um sotaque bastante carregado e que eu deveria suavizar. “Que legal a sua música, ela é bem global, você acha que por conta disso você não deveria dar uma suavizada no seu sotaque para você atender esses lugares?”. Não, bicho, meu sotaque eu acho que é o que eu tenho de mais bonito.
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