Mali Canta, Compõe e Quebra Fronteiras

foto por rema chaudhary

“É uma sensação estranha poder falar do meu som com alguém do outro lado do mundo (risos)”, disse Mali logo após o “oi” na entrevista para o Música Pavê. Pela ligação no Zoom, a cantora indiana logo avisou que estava com seu caderninho e uma caneta, porque queria anotar dicas de bandas brasileiras que poderia gostar de ouvir.

A atitude revela bastante da curiosidade com que a artista trabalha, e que resultou em Caution to the Wind, álbum lançado em abril. Nele, ela transita por referências do synthpop e do indie/alternativo para criar uma música pop muito gostosa de se ouvir – e com um alto grau poético, como mostram seus clipes e como ela contou ao site.

Música Pavê: Vamos começar pelo clipe de Live Again. Para meus olhos ocidentais, me parece uma obra muito aberta para a interpretação. Era essa a sua intenção, que cada um pudesse entender algo diferente da obra, ou você queria contar uma história específica?

Mali: De maneira geral, queríamos que fosse abstrato, mas o foco principal era falar sobre vida, morte e renascimento. No contexto indiano, acreditamos na reencarnação, a morte não é o fim. Acho que o clipe saiu em uma época em que a situação da pandemia na Índia está muito ruim, assim como no Brasil. Creio que quem assista ao vídeo neste momento terá [a pandemia] em mente, já que a maioria de nós perdeu alguém durante esse período. A floresta era pra ser uma alegoria para o purgatório, esse lugar entre a vida e a morte, um lugar onde você não sabe para onde vai ou se fica naquele estado de limbo. Brincamos com o conceito de luz e escuridão, de como nós humanos, assim como as mariposas, somos atraídos pela luz artificial, então há muita artificialidade no vídeo.

MP: Como você mencionou, o clipe saiu em uma época em que estamos confrontando bastante a morte. Como foi preparar não só o single, mas todo o lançamento do disco durante esse período? Você tinha em mente que seria uma obra dialogaria com a pandemia?

Mali: Não, não, não mesmo! Começamos a trabalhar no disco em 2019. Estava gravando vocais para o álbum de outro artista e conheci Arnob Bal (produtor de Caution to the Wind), gostei de como ele trabalhava e contei para ele que sonhava em preparar um álbum. Disse que eu não tinha demos, mas, se ele quisesse, poderia passar em casa para tomar um chai e eu cantaria as músicas (risos). Naquela época, os problemas eram outros, parece até que era outro mundo, então as músicas eram sobre outras coisas. E algo curioso que aconteceu neste álbum foi que, na ordem que escolhemos para soltar os singles, todas as músicas acabaram ganhando novos significados. Por exemplo, Live Again foi escrita quando alguns amigos meus perderam seus empregos, foi a maneira que eu encontrei de falar para eles “vamos nessa, vamos dar um jeito”. É muito louco como hoje, em 2021, o significado da música é totalmente outro. Age of Limbo passou pelo mesmo processo. Lancei no fim de abril de 2020, após assistir a um episódio de Conan Without Borders enquanto almoçava. Ele estava em Israel, na divisa com a Síria, durante a crise com o Estado Islâmico. E no programa, você conseguia ouvir as bombas explodindo à distância. Eu costumo ver algo do Conan para dar risada, não para ser confrontado com morte e guerra, mas, de repente, essa cena estava acontecendo enquanto eu comia meu almoço. Eu pensei que naqueles poucos minutos ali, alguém perdeu alguém que amava, ou perdeu sua casa, algum caos estava acontecendo na vida daquela pessoa. Aquilo ficou na minha cabeça por dias, até eu sentar e escrever a música. Daí, ela foi lançada no começo da pandemia, quando o mundo inteiro estava passando por esse processo de perda, e ela ganhou também esse significado.

MP: Como foi para você descobrir a estética do seu som, entender o que você queria que o disco fosse?

Malia: Este álbum se distancia do que eu já fiz antes. Eu sou uma cantora e compositora. Quando as pessoas ouvem isso, me imaginam com uma camisa xadrez, tocando uma música de três acordes no violão (risos), e este disco não tem nada a ver com isso. Para mim, synthpop e sons nostálgicos dos anos 1980 fizeram parte da minha vida. Meu pai dançava break, ele e minha mãe sempre ouviram muita música eletrônica, e eu cresci escutando isso com eles. Com esse disco, quis mergulhar a fundo nessas memórias.

MP: Este som é bastante produzido aqui no Brasil, assim como em diversas partes do mundo. Você se sente parte de um movimento global, de uma “cena” ou algo assim?

Mali: Sinto que, por ser uma artista indiana que escreve em inglês, faço parte de uma minoria. Para muitas pessoas, artistas como eu devem fazer música de Bollywood. Você conhece alguém, diz que é uma musicista indiana e te perguntam “então você faz músicas para os filmes?” (risos). E, na verdade, existem indianos fazendo synthpop, hip hop… é 2021, vivemos em um mundo sem fronteiras, mas sinto que há muito mais músicos fora da Índia fazendo este tipo de som que eu faço do que aqui. Então, me identifico com uma espécie de cena fora do país, mas aqui somos minoria. Tenho um amigo que brinca que existe na Índia uma média de três artistas por gênero musical (risos). A realidade já foi essa, mas vi surgirem muitos novos músicos nos últimos anos, quando produzir se tornou algo mais acessível, temos recursos para aprender a usar os softwares e as pessoas estão abrindo as asas para explorar novos sons. Eu acho isso incrível.

MP: Era algo que eu ia te perguntar, se você pensa que, por transitar também em outros espaços, está abrindo portas para outros artistas indianos, ou mesmo sul-asiáticos.

Mali: Em uma escala bem, bem pequena, sim (risos), em uma escala bem humilde. Indianos que estão nos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido já possuem uma certa vantagem por estarem em um sistema mais maduro, mais estruturado. Na Índia, temos muito menos recursos, e nem todo mundo tem o interesse em se arriscar nesse meio [alternativo]. Por maior que seja o número de artistas fazendo esse som, se trata de um país de 1,4 bilhão de pessoas, então ainda é uma minoria muito pequena (risos). Por isso que é necessário também tentar ganhar atenção fora do país, para depois trabalhar aqui dentro. Você mesmo disse que eu sou a primeira artista indiana com quem você conversa. Talvez essa entrevista abra portas para você conhecer mais artistas daqui.

MP: Pois é. Observo que isso vem também das consequências de morar em um país colonizado – que é também o caso do Brasil -, onde o processo natural das coisas é imaginar que o que vem de fora é melhor do que o que existe aqui dentro. E quando você se arrisca e faz uma música diferente, mostra que você não precisa ser estrangeira para ter um bom resultado.

Mali: E é importante, também, trazer o nosso próprio estilo nesse processo. Sabe? Mostrar quem somos.

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