Lorde em “Virgin”: Perdida na Vida, Mas Não Paralisada

Lorde renasce e não tem as respostas. Mas, ainda assim, deixa as coisas fluírem, acontecerem e canta sobre todas elas – sem censuras, voltas ou vergonhas. É assim que abre os trabalhos de seu quarto álbum de estúdio Virgin, transparente quanto aos desconfortos, rasgando qualquer tabu ou assunto proibido – quase que uma retomada do seu eu de 2013 em Pure Heroine, que tocava em assuntos intocáveis sem preocupações e bagunçando um pouco as lógicas da indústria musical. Dessa vez, rasga e comenta assuntos íntimos para si mesma e aceita o processo doloroso de reconhecer o que está sentindo. “Quando se segura um martelo, tudo parece uma unha” – canta em Hammer, começando a revelar sua nova fase, em uma das poucas metáforas do álbum. Já anuncia na primeira música que alguns dias é uma mulher e, em outros, um homem – se você chegou agora, pode associar unicamente à mudanças hormonais por ela ter parado anticoncepcionais, mas, os anos iniciais de Lorde ali em 2013 são marcados por ela se vestir de forma bastante fora do esperado para estereótipos femininos da época.
É um álbum de saída da zona de conforto e de se encarar o que vier pela frente na vida adulta. Tanto sonoramente falando, quanto de experiências de vida. Ela sai do completamente conhecido e familiar da Nova Zelândia e se muda de vez para Nova York. Diz que não está afetada quase como um mantra à la Melodrama em Hammer, mas, na real, não é bem assim, como indica no restante do álbum. É tentativa de sair do que corrói ela e é o primeiro sinal que dá.
Se em Solar Power se dava como curada e estabilizada através da força do sol e da natureza, em Virgin dá um (ou dois) passos para trás. A maturidade na real parecia um escape de si mesma e de problemas maiores. Lorde achava que sua persona e Ella, nome de batismo, eram pessoas diferentes, e que, vivendo na Nova Zelândia, estava em sua melhor e mais pura versão. No novo álbum, mostra estar errada e ainda ser uma jovem adulta cheia de dúvidas, como pode-se perceber na faixa Broken Glass, na qual revela numa voz que exala agonia e sem nenhuma volta ter passado por transtorno alimentar na mesma fase em que parecia saudável. É quase como se esse culto ao corpo “em forma” também escondesse sua verdadeira pessoa que estava em sofrimento, por mais que mostrasse o contrário. Como se o ideal de saúde para ela fosse nocivo, mesmo que em lugar de conforto.
Virgin começou a ser feito justamente em sua mudança em 2021 e produzido entre NY e Londres. Na tentativa de se encarar a fama e aceitar o destino, ao invés de separar tudo e esconder o pessoal e o trabalho ao ficar na Nova Zelândia. É claramente um álbum urbano – quase que toda sonoridade orgânica do Solar Power é ignorada, com faixas que lembram Melodrama e Pure Heroine, mas com repaginação melódicas e frescas como se realmente tivessem recém nascidas e não fossem envelhecer por algum tempo. Muito sintetizador, samples, melodias corridas, barulhos que lembram ressonância magnética, informação demais por vezes e menos de 40 minutos de álbum.
“Se eu não fizer esse grupo de afirmações, minha garganta vai fechar”, diz Ella em entrevista a Zane Lowe. E isso fica claro no álbum do início ao fim. Diferente de tudo que já fez até hoje, Lorde articula letras diretas, sem metáforas e sem muitas melancolias, além de formas diferentes de cantar (por vezes, pode-se perceber angústia e agonia mesmo que sua voz pareça aveludada) como não havia feito até então em sua discografia. É quase como se a dor trouxesse a ela seu maior potencial vocal. Como se toda a dor e as confusões que tem passado precisassem ser cuspidas para que pudesse chegar à superfície de quem se é, manter verdadeira a si mesma e torcer para o melhor estar ainda por vir.
Impossível falar dele sem falar da dualidade do feminino e masculino. O masculino se faz muito presente no não ter pudor pra falar abertamente sobre sexo e questões que poderiam ser um tabu. Ia falar que ser direto também – mas isso é algo muito mais individual de uma feminilidade de Lorde, do que de fato masculino. E quando as questões femininas são faladas, elas são sérias e vêm com força: Maternidade, distúrbio alimentar e quem se quer e quem se tornou quando atinge a vida adulta.
Favorite Daughter tem um quê de Melodrama e um refrão dançante, mas com letras cortantes. Fala sobre se esforçar e chegar a limites apenas para agradar e ser a filha favorita – seja para sua própria mãe ou para seu público fiel.
Solar Power fechava sua jornada com Oceanic Feeling, na qual a artista devaneia sobre a possibilidade de ter uma filha e como ela seria e leva com muita leveza. Em Virgin, subverte: Relata em Clearblue o medo cru de se fazer um teste de gravidez e seu resultado. Uma faixa que é praticamente inteira acapella e com efeitos vocais; com melodia quase inexistente, é construída com grunhidos desconfortáveis, dobras de vozes e camadas sobrepostas de sua própria voz, criando a sensação de agonia.
Seu mais novo trabalho é claramente uma prova de que, quando as coisas não são resolvidas, elas voltam à tona sem nenhum controle. Se em Solar Power ela dá como tendo sob controle as rédeas da vida adulta, retoma em Virgin quase que uma segunda juventude, mas, dessa vez, com questões mais profundas. Experimentações, mas limites e saber até onde ir. Às vezes, exagerar; estar perdida, mas não paralisada na vida.
Current Affairs é um desses exemplos. Ao mesmo tempo que tem seu teor sexual e aborda uma paixão latente, também questiona mais profundamente esses temas – o que não acontecia em Melodrama quando cantava sobre paixão ardente e tudo era muito romantizado. A paixão é mais complexa, mas também muito mais simples. Dá para entender?
Mais uma vez, sua última faixa, David, é mais contemplativa e desacelerada que o restante do álbum, o que não significa que não seja pesada e dolorida: “Am I ever gonna love again? Do you understand?”, fechando assim o projeto. Com foco total na voz e sentimentos aqui, é perceptível a influência do que tinha lido no decorrer do álbum em questão de literatura de mulheres complexas e que retratam a dor de se sentir muito – Clarice Lispector, Annie Ernaux e Rachel Cusk.
Virgin é um rasgo na intimidade de Ella. Com muitos detalhes e informações, pode não bater como batia instantaneamente se você escuta Lorde desde o início de sua carreira, é uma garota e tem uma idade próxima. Não é algo que se está esperando. São muitas camadas e, a cada ouvida, é como se você tirasse uma anotação diferente do bloquinho post it e entendendo cada vez mais o que está se passando. No final das contas, não é um álbum que bate como um todo pela identificação com o eu lírico, mas te pega pouco a pouco por sua sonoridade e atenção a detalhes nas novas produções, que ficam a cargo de Jim E-Stack (responsável por produções de Bon Iver) e da própria Lorde.
Virgin é um disco bem feito, mas longe de ser o mais coeso (dificilmente seria, visto seu intuito e storytelling). Sinto aqui falta do preciosismo lírico e mais melancolia, que são as marcas dela em trabalhos anteriores. Isso ainda soa nas melodias, nas quais teve muito cuidado. Mas as composições são entregues de outra forma a que estávamos acostumados, talvez devido a ela não sofrer tanto com a ansiedade social e não ter grandes medos de chegar exatamente no ponto que quer. Ainda assim, é um álbum que exala potencial e identidade, necessário para uma grande futura obra.
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