Hugo Noguchi: “Uma arte que apenas reafirma as diferenças não só é bem-vinda, mas necessária”

Ainda em 2021, Hugo Noguchi, conhecido por seu trabalho como baixista de bandas como Ventre, Posada e o Clã e SLVDR, lançou seu primeiro disco solo, intitulado Humaniora. Em 20 faixas, que já vinham sendo elaboradas desde 2018, o álbum traz referências que vão de Taoismo a mitologia grega, passando por jogos e animações, como ele mesmo explica nesta entrevista ao Música Pavê.

Música Pavê: O disco traz uma boa mistura de música orgânica, elétrica e eletrônica. É você quem comanda todos os instrumentos e criou todos os beats, ou conta com algumas colaborações nessas criações?

Hugo: Antes de mais nada, muito obrigado! Eu compus, produzi, arranjei, executei e mixei tudo, só não cuidei da masterização (feita pelo grande Ramiro Mart, um engenheiro de som que trabalha mais no meio do rap). Como autor, cheguei à conclusão que não pretendo compor música como uma mídia própria, mas atrelada a outras formas de fazer arte. Nesse discurso a relação com o vídeo é a primeira coisa que vêm à cabeça das pessoas, mas tava pensando em outras mídias que sempre conversaram com a música, mas um pouco menos óbvias e caras que os clipes e cinema, por exemplo. Então como durante a pandemia voltei a ler, eu pensei a obra como a escrita de um livro, as músicas sendo capítulos, como um livro grande com capítulos curtos, o que encaixa com essa solidão na feitura. Isso também se encaixa com a limitação de encontros desses anos, então conceito e circunstância se complementam.

MP: A referência na cultura japonesa é facilmente identificada, até pelo uso de ideogramas como títulos de algumas canções. Mas notei também a utilização de poemas em formato haikai. Já era uma prática sua escrevê-los, ou eles foram criados para o álbum?

Hugo: Eu vou separar a resposta aqui entre dois pontos, o uso do nihongo e o formato da escrita.

Em relação ao primeiro, eu o usei majoritariamente no nome de algumas músicas, para sintetizar o sentimento das músicas (chuva, céu, mãe, eu) ou para referenciar símbolos pessoais (bom dia, hana nirá) ou símbolos japoneses que gosto e que fogem um pouco da admiração comum daqui por lá, como um monstro (kappa) e um filme um pouco menos premiado de Miyasaki (Vidas ao Vento). As que tem nome japonês, mas que usei o romanji foi de propósito para facilitar o entendimento (referências a Naruto e ao kintsugui).

Em relação aos haikais, creio que essa impressão acontece por ter relido o Tao Te Ching durante esse período, e talvez essa influência tenha aparecido na forma que me expressei, apesar de não intencionalmente. Nunca estudei e pratiquei haikais, e considero a maior inspiração objetiva na escrita desse disco a mitologia grega, literatura alemã e norte-americana e pouco da italiana, sem contar com minha própria vivência e símbolos menos literários como animações, jogos etc. Então por: o haikai pertencer mais a uma tradição do zen-budismo (que bebe muito do taoísmo na teoria); algumas letras serem mais livres de sentido e forma; e claro, pela minha ancestralidade (entregue pelo fenótipo), acho que esta associação é feita, o que considero bem interessante. E também pode ser que algo do zen tenha ficado em mim das minhas leituras da adolescência.

MP: Poderia falar um pouco sobre o título do álbum Humaniora, seus significados e sutilezas?

Hugo: É um capítulo de A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Um livro que li quando moleque e que desde então eu sabia que seria o nome do meu primeiro álbum. Seria algo como um estudo das humanidades, o que o disco tenta fazer um pouco. Me propus a mostrar um pouco de minha visão de mundo, por acreditar que seja legal mostrar mais de uma dimensão de uma vivência nipo-brasileira, e pelo desejo de escrever a partir de um ponto também universal e não apenas de minha particularidade, do que me difere da maioria numérica das pessoas desse país. Uma arte que apenas reafirma as diferenças não só é bem-vinda, mas necessária, mas acredito que isso tem suas limitações e tenho me inspirado em artistas que apresentam a sua diferença como uma experiência universal, ao contrário do lugar que o mundo as e os colocam. Por isso, recorri a símbolos europeus também, algo como um cavalo de Tróia onde apresento minha universalidade a partir da pseudo-universalidade de outrém.

Em outro nível mais literal, o livro inteiro se passa em um retiro onde se trata a tuberculose, e esse é o capítulo onde Hans começa a estudar quando passa a se quarentenar nele, antes das tretas do resto do mundo chamarem ele de volta. Então acho que tem uma identificação de momentos aí.

MP: O álbum já vem sendo construído há cerca de três anos, mas qual o impacto da pandemia nele?

Hugo: Acho que já respondi boa parte dessa pergunta nas respostas anteriores? (risos) A pandemia está presente tanto artisticamente quanto na forma de feitura dele, essa coisa de ter ficado trancado com meus pensamentos… Ela também me trouxe um senso de urgência em finalizar e lançar, por acreditar que a atenção do público esteja dividida com mil outros assuntos nesse contexto tão maluco, e que as “janelas” de lançamento estão cada vez menores.

MP: Como pretende levar essa obra aos palcos? Terá formato de banda ou se imagino sozinho tocando ao vivo?

Hugo: Vou ser bem sincero, ainda estou em dúvida se já começo a montar a gig com esse material ou se sento e produzo mais um disco, dessa vez não sozinho. Já voltei a compor e tem sobras desse disco que estão aptos a serem lançados num próximo. Mas, com certeza, não vou subir num palco sozinho. Quero montar a princípio um trio, eu, mais um piano/teclado e bateria, já está apalavrado, mas falta eu agir. Quero fazer algo como o Bird (Charlie Parker) fazia, que depois o Miles continuou, pensar nas músicas em temas e tocar contando com a musicalidade dos músicos, sem estruturar muito as formas das canções. Essa incerteza atual toda é foda… E eu prevejo um ano bem caótico.

MP: Desculpe, mas não consegui fugir dessa pergunta: e a Ventre?

Hugo: (Risos) Imagina, tudo bem! Olha, é difícil para mim responder pelo todo sendo apenas um terço, mas posso garantir que muita música ainda vai vir de nós três. No presente, nossa musicalidade continua em nossos projetos, mas não posso responder pelo futuro. Se o anseio é estético, provavelmente o disco do Gabriel que tá vindo aí deve suprir esse desejo, mas não posso dizer o mesmo dos meus. O trabalho da Larissa também é outra coisa e é muito interessante. Quanto a mim, tenho buscado contar a minha própria história, construir e brincar com novas linguagens. Em alguns anos nessa, já percebi uma espécie de estranheza alheia com esse meu caminho, mas por dentro estou muito satisfeito. E sinto que estou apenas começando.

Curta mais entrevistas no Música Pavê

Compartilhe!

Shares

Shuffle

Curtiu? Comente!

Comments are closed.

Sobre o site

Feito para quem não se contenta apenas em ouvir a música, mas quer também vê-la, aqui você vai encontrar análises sem preconceitos e com olhar crítico sobre o relacionamento das artes visuais com o mercado fonográfico. Aprenda, informe-se e, principalmente, divirta-se – é pra isso que o Música Pavê existe.