Entrevista: Ibeyi
Conheci Ibeyi pessoalmente na primeira vez que Lisa-Kaindé e Naomi vieram ao Brasil, depois de já tê-las entrevistado por Skype. Naquela ocasião, em 2016, elas ainda estavam surpresas com a recepção que os brasileiros lhes deram no Circo Voador, no Rio de Janeiro. Será na cidade maravilhosa o seu próximo show, onde as gêmeas franco-cubanas dividirão palco com Emicida no Rock in Rio.
Esse foi um dos assuntos desta conversa com o Música Pavê, um dia depois do evento de lançamento de Libre em São Paulo. Já é a quinta vez que elas vêm ao país, entre shows, momentos no estúdio e gravações de clipes. Antes da entrevista começar propriamente, Naomi contou que a nova música é especial porque “eu queria fazer um funk e o pessoal falou ‘tá bom, a gente confia em você’, aí eu fui e fiz. É a primeira vez que eu canto rap também”. Já Lisa disse que queria me contar sobre seu terceiro álbum, que ainda está em processo de composição.
Antes de falar de novidades, as irmãs comentaram sobre seu trabalho de estreia (Ibeyi, 2015) e o sucessor Ash – eleito pela equipe do site como um dos dez discos que marcaram 2017. Como sempre, as duas esbanjaram personalidade, simpatia e uma visão muito completa sobre a arte que realizam.
Música Pavê: Estava ouvindo os dois discos e tive a impressão que o primeiro tem músicas que vocês “tinham” que escrever, elas precisavam ser ditas. Já o segundo me parece mais um trabalho que vocês “queriam” fazer mesmo.
Lisa-Kaindé Diaz: Interessante. Eu acho que os dois têm músicas que tínhamos que fazer, mas de maneiras diferentes. No primeiro, as composições foram feitas enquanto tínhamos de 14 a 18 anos. No outro, foi como se não tivéssemos escolha, porque já era nosso trabalho. A única diferença é que o primeiro foi feito para nós mesmas, sem muito conceito. Escrevemos as músicas à medida em que elas surgiam, não havia muita consciência do que estava acontecendo. No segundo, nós tínhamos que compor essas músicas, porque elas são sobre o que estava acontecendo. Estávamos no meio de um momento caótico na política, todos se sentindo terríveis. Mas, pela primeira vez, entendemos que tínhamos que fazer músicas sobre o que as pessoas precisavam ouvir. Foi muito consciente, sabíamos o que tinha que ser dito, era o que estava em nós. O segundo disco é mais aberto ao mundo. As pessoas dizem que ele é menos pessoal, mas não é. Porque nós duas precisávamos de Deathless, fizemos essa música porque era o que tínhamos que ouvir também. Precisávamos de No Man Is Big Enough for My Arms, porque é algo que tínhamos que nos lembrar disso todos os dias. Porque quando nos apaixonamos, nos esquecemos que somos suficientes, que somos importantes. E cantar essa música toda noite nos ajuda a lembrar que isso é algo que nos esqueceremos quando nos apaixonarmos.
MP: Eu não chamaria o disco de “menos pessoal”, mas ele me parece mesmo “mais universal”.
Lisa: Sim, é verdade.
MP: Li em algum lugar que Deathless é sobre uma experiência que você, Lisa, teve com um policial. Para mim, ela era sobre abuso sexual.
Lisa: Que interessante, eu gosto dessa ideia. Acho que é sobre tudo isso.
Naomi Diaz: É uma música que você ouve e se sente empoderada, isso é o que importa.
MP: Isso é bom, né? Cada um interpreta do seu jeito.
Lisa: Sim, a própria No Man… pode ser interpretada de maneira que não é literal. Tem gente na minha família que veio me perguntar se Mama Says era sobre uma pessoa específica, e não é. E eles me conhecem, e conhecem a família. Mas isso que é legal. A questão não é a música em si, mas o que você vê nela. Deathless foi feita intencionalmente para o nosso público. Nós também precisávamos, mas pensamos nas pessoas que ouviriam a faixa e dissemos “vamos cantar essa juntos”, vamos fazer as pessoas sentirem suas próprias forças.
MP: E Deathless ainda tem Kamasi Washington, que dá ainda mais volume para uma composição que já é forte.
Lisa: É engraçado como foi uma escolha óbvia. Assim que fizemos a música, nos olhamos e dissemos “Kamasi? Oh yes” (risos). Ligamos para ele, porque já o conhecíamos por dividirmos palco em vários festivais – aliás, gravamos uma colaboração com ele que eu não vejo a hora de ser lançada, mas você nunca sabe o que vai acontecer com suas músicas, porque ele grava o tempo todo e muda de ideia. Mas eu não vejo a hora de vocês ouvirem essa, porque ela é muito boa. Enfim, perguntamos se ele queria gravar alguma coisa e ele logo mandou uma linha de sax. Ouvimos e dissemos: “Perfeito, era exatamente o que queríamos”.
MP: Além dele, Mala Rodríguez está no disco em Me Voy, que é uma música bastante diferente de Waves, ou mesmo Deathless. Por ver essa diversidade no álbum que eu imaginei que era o momento em que vocês exploraram mais alguns desejos musicais que não expressaram no disco de estreia.
Lisa: Acho que começamos a querer misturar mais as coisas. Naomi começou a se envolver mais na produção, mais atenta ao feeling de cada música. E ela dizia: “Eu quero uma música para dançar, uma para isso, outra para aquilo”. Pela primeira vez, sabíamos como queríamos que as pessoas ouvissem o disco, o que não aconteceu no anterior.
MP: Penso que isso só pode acontecer em um segundo trabalho, depois de você já ter gravado e feito shows, daí começa a entender melhor o que quer.
Naomi: Sim, nós tínhamos só 18 anos.
Lisa: E acho importante não colocar tanta pressão em nós mesmas. Tem uma frase no estúdio onde gravamos que diz “Aqui, não realidades exteriores”. Acho isso muito importante. E no primeiro, você não sabe o que vai acontecer. Já no segundo, você tem expectativas.
Naomi: No primeiro, as pessoas tinham expectativas, mas a gente não.
Lisa: Sim, e no segundo nós tínhamos. Então é importante tirar isso da sua cabeça e se concentrar no que você precisa fazer.
MP: E depois desses dois, o que vocês vão fazer?
Lisa: Acho que virá naturalmente. As pessoas não sabem disso, mas nós escrevemos muito. Nós produzimos umas 30 músicas para o disco e, a partir dessas todas, você percebe quais farão parte do álbum. E as outras não são ruins! Outro dia, eu estava ouvindo e pensando “uau, essa é muito boa”. Mas, naquele momento, ela não fazia sentido no disco, não fazia parte daquela história. Às vezes, poderíamos fazer dois álbuns com as músicas que produzimos só para um.
MP: Espero que possamos um dia ouvir essas que ficaram de fora.
Lisa: Tem uma em especial que eu gosto muito e quero voltar a trabalhar nela. O nome é Are You There. Veremos.
MP: É sua quinta vez no Brasil. Na primeira vez em que vieram, perguntei sobre as primeiras impressões e vocês estavam surpresas como aqui parecia Cuba. Depois de todas essas vezes, vocês já sabem o que esperar ou ainda conseguem ser surpreendidas e inspiradas pelo contato com nossa cultura? Você, Naomi, comentou sobre querer fazer um funk em Libre, isso veio a partir das viagens ao Brasil?
Naomi: Não sei se aconteceu por ter estado aqui. Eu ouço muito reggaeton e estou sempre dançando, aí, se vamos gravar no Brasil, queria misturar com o funk, porque é algo daqui que eu gosto muito. Mas queria fazer um funk falando de coisas profundas, não sobre minha bunda.
Lisa: Não é que nos surpreendemos, mas, toda vez que estamos aqui, aprendemos mais e nossa conexão com o país se aprofunda. Sempre que conversamos com os brasileiros e que trabalhamos com Emicida, a sensação é a de que estamos no lugar certo, é onde criamos coisas que são valiosas e importantes para nós. Por isso também estou tão empolgada para o Rock in Rio, porque sinto que será um momento definidor – assim como foi nosso primeiro show no Rio, no Circo Voador. As pessoas ainda comentam aquela noite. Foi um dia muito importante para nossas vidas, para sabermos o que queremos fazer e o que queremos que as pessoas tenham de nós.
MP: Pois é, Rock in Rio está aí. Como será o show?
Naomi: Será louco. Terá muita música, muita dança, terá muita força.
Lisa: E será um momento único. Será a primeira – e provavelmente a última – vez que Emicida e nós uniremos nossos dois shows dessa forma. Nós duas não estaremos tocando tudo, teremos uma banda. É nosso primeiro grande festival no Brasil. Vamos tocar com muita força, será PÁ PÁ PÁ PÁ PÁ, sabe? Eu comecei a treinar boxe, porque queria me preparar para ter fôlego (risos). E será muito significativo, porque vamos tocar só faixas de grande significado: Deathless, No Man…, Libre, Hacia El Amor…
Naomi: Hoje Cedo…
MP: Vocês vão fazer os vocais femininos em Hoje Cedo?
Naomi: Vamos. Levanta e Anda também. (as duas cantam “Sonhar, seguir” harmonizando as vozes)
Lisa: Basicamente, o que queremos é que as pessoas ouçam essas músicas e se lembrem que elas têm força suficiente para superar o que estão vivendo.
MP: Nós precisamos disso.
Lisa: Sim, e nós também. O mundo inteiro precisa, especialmente vocês.
MP: Bem, talvez em uma próxima vez que você queira se preparar para um show no Brasil, você pode tentar capoeira ao invés de boxe.
Lisa: Seria incrível! Imagino que seja um exercício ótimo, e ainda tem a música junto. Mas eu seria péssima, eu acho. E a razão de eu querer fazer boxe é porque eu não sou nada agressiva, e imaginei que me faria bem poder socar alguma coisa.
MP: Agora eu fiquei curioso, pensando se isso vai influenciar o próximo disco.
Lisa: Está indo nessa direção sim. Mais hip hop, sons maiores, mais profundos, mais fortes. Mais ha!, sabe? Estávamos conversando hoje sobre isso, sobre como parece que passamos a vida inteira nos preparando para este novo álbum. O primeiro foi inesperado, o segundo foi uma continuação, e o terceiro será resultado de tudo isso. Nós éramos crianças, adolescentes. Agora somos mulheres. Estamos prontas para esse disco.
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