Em “Sentido”, 5 a Seco é “militante da canção”
5 a Seco está de volta como a conhecemos. O show que a banda fez em setembro no Coala Festival, após cinco anos de um hiato, mostrou que Tó Brandileone, Vinicius Calderoni, Pedro Altério, Pedro Viáfora e Leo Bianchini seguem afinados na proposta estética, temática e de participação em uma linhagem preciosa da música popular brasileira.
Prova disso é Sentido, disco que o grupo coloca hoje (28) no mundo após um fim de semana de sessões fechadas para fãs escutarem a obra em primeira mão no Bona Casa de Música (em São Paulo). O clima na audição era o de rever amigos com quem não nos encontrávamos há um tempo, mas a conversa segue viva, alimentada também pela saudade. Entre sorrisos, aplausos e até lágrimas, a satisfação com as novas músicas era evidente.
O repertório é formado pela lógica de três músicas para cada um dos cinco vocalistas, com exceção da última, Sigamos, dividida entre os dois Pedro (Viáfora e Altério), e Comédia de Enganos, que Vinicius Calderoni compôs com Alfredo del Penho e Beto Lemos para o musical Museu Nacional [Todas as Vozes do Fogo], que ganhou em Sentido uma estrofe cantada por cada um dos cinco e a última por Chico Buarque. A produção assinada pelo próprio Tó Brandileone acompanha os versos com cautela e capricho, ora surpreendendo e ora construindo a ambientação de grande sensibilidade que o público conhece em 5 a Seco.
Quatro dos cinco músicos – a exceção foi Leo Bianchini, que estava em Portugal – falaram ao Música Pavê sobre a temática do tempo presente no álbum, o trabalho que desenvolvem em coletivo e o momento em que ocorre o retorno do grupo.
Música Pavê: Para começar, vamos falar do tempo como tema principal de Sentido? De onde veio essa ideia?
Tó Brandileone: Nós não pré-definimos temas de nada do que vamos fazer, a não ser que sejamos contratados para compor sob encomenda. As músicas surgem da necessidade de dizer algo – que muitas vezes nem é racional, é do subconsciente. A canção central, que dá início à discussão, é a que abre o disco (Comédia de Enganos), e ela não foi feita para o disco, mas para uma peça. Isso serve de exemplo de como o tema nasceu e se revelou naturalmente, não foi uma coisa pensada. Mas acho que é meio incontornável que [para] nós, envelhecendo e vendo o tempo passar, vendo gente nascer e gente morrer, o passar do tempo vai ficando cada vez mais evidente.
Pedro Altério: Tem uma coisa que é natural de falarmos de um assunto convergente para os cinco, é o lugar onde a gente se encontra… Se nós decidimos dar um tempo, acho que foi natural agora querer falar do tempo que passou. As canções foram se conectando e, ao longo do processo, fomos percebendo que ele tinha uma unidade. O sentido das coisas vai se apresentando ao longo do processo.
MP: Imagino que, com cinco compositores, fechar um repertório é um verdadeiro desafio.
Tó: É bom que sejamos cinco, tem sempre música sobrando.
Pedro Viáfora: Mas, internamente, o que rola é que sempre prezamos pelo equilíbrio: Cada um “defende” três músicas no disco. Olhamos para o nosso próprio repertório para somar com o que os amigos estão colocando ali. Às vezes, um está colocando uma música ali que está parecida com a sua, na mesma vibe… sempre foi um jeito natural e sempre se equilibrou. Buscando esse equilíbrio, acabamos encontrando algumas particularidades do próprio rosto que o disco vai ter, sabe?
Tó: Quando uma música linda fica de fora, também é bom, quer dizer que ela vai entrar em um disco solo de algum de nós. Existe uma leveza no fato de termos também vidas paralelas. A banda não é A nossa vida, ela é uma parte importante. Mas, como temos para onde escoar o que sobra da banda, esse processo é mesmo natural.
Altério: E tem uma coisa que é praticamente física ali do momento. Às vezes, é muito nítido quando uma música mexe com o grupo e outra não. Tem músicas que eu levo e ela não toca todo mundo, mas tem outras que eu nem estava dando tanto bola e elas estão no espectro de convergência dos cinco. Mostrando uma ideia de melodia para Pedro, eu sei fisicamente, de olhar para ele, se ele está gostando mesmo. Acho que respeitamos muito esse processo, o da reação imediata que acontece naquele momento em que estamos apresentando as canções pela primeira vez ao grupo.
Vinicius Calderoni: Acho que tudo em 5 a Seco – e em uma série de escolhas que fizemos para esse disco – não foi premeditado cerebralmente, mas acontece na hora em que nos olhamos e o consenso se dá pelo conforto corporal. Nos olhamos e nos sentimos acolhidos em uma certa ideia. Foi assim com o nome Sentido, ou com a ideia da capa ter sido feita em um lugar amplo, como cinco amigos olhando o tempo – nos muitos sentidos da palavra “tempo” e nos muitos sentidos da palavra “sentido” – para ilustrar um disco que é mais contemplativo.
MP: Imagino que, ao trazer uma composição sua para o grupo, ela deixa um pouco de ser sua para virar de 5 a Seco. Como é viver esse processo de olhar para o disco e ver que aquela música já não é mais tão sua assim?
Vinicius: Para mim, é quando uma música minha ganha na loteria, quando ela ganha a mais alta honraria que poderia ter. Acho que todos nós temos momentos em que compomos algo e pensamos “isso aqui é para 5 a Seco”. Por exemplo, duas canções minhas que estão no disco foram feitas em outros contextos, mas depois pensei que elas poderiam encontrar seus caminhos na banda.
Tó: E para além das parcerias oficiais do disco, em quase todas as músicas há mini toques, mexidas, alguma notinha da melodia, uma preposição…
Altério: Nós interferimos muito, né?
Tó: Sim. Não é uma interferência que chega a ser uma parceria, porque a música já estava feita, mas é passar a argamassa no furinho do prego na parede. Você não vai falar que construiu uma casa junto, né? (risos)
Altério: Mas você deu a dica: “Por que não pintar essa parede de vermelho?”.
Vinicius: Em todas as que assinamos sozinhos, tem um monte de mexidinha de melodia dos outros. Mesmo sozinho, não é sozinho.
MP: Daqui, do lado de fora, me parece um processo natural de vida em banda. E, para vocês, qual o sentido de realizar algo em grupo?
Altério: Acho que tem coisa que é mais foda falar em grupo. Acho que é necessário que tenhamos as coisas que falamos individualmente, o coletivo será para sempre insuperável. Por mais que o mundo se force a um individualismo completo, acho que esse individualismo um dia vai ruir e os coletivos sobreviverão. Foi assim ao longo da história. Uma vez que temos essa plataforma estabelecida nas nossas vidas durante quinze anos, em que estamos acostumados a dividir o discurso, há uma vontade artística nossa de dizer as coisas em grupo. E fazer isso alimenta também o que vamos dizer individualmente. Depois de cinco anos dizendo coisas sozinhos, falar em grupo é quase uma urgência.
Tó: Um grande produtor das antigas me disse recentemente que “o papel do produtor é não deixar o artista passar vergonha”. Achei isso uma grande besteira, porque fica parecendo que o crivo dele é o único possível. Mas acho que nossos amigos são muito capazes de fazer esse cerceamento. Desde quando você tinha quinze anos de idade e estava enchendo a cara em uma festa, e um amigo chegava e falava “meu, segura a onda, você tá dando vexame”, até “esse verso aqui pega mal por causa disso e daquilo”. Nesse lugar, acho que estar em amigos nos fortalece para podermos aprofundar as discussões. “Isso aqui tá raso, essa rima está boba, você está querendo dizer uma coisa, mas está falando outra”. E somos uma banda de cinco cantores, compositores, instrumentistas, arranjadores… Nós somos nossos próprios produtores.
Viáfora: E você fica tão à vontade, porque tem coisas que você pode achar da música de alguém e prefere não falar. Mas, dentro do grupo, é uma obrigação sua dizer o que você acha. E isso é positivo, porque vai lapidando a própria canção.
Vinicius: Nós nunca fomos uma banda discursiva, de fazer panfleto e manifesto nas canções. Não é esse o nosso caminho natural. Porém, acho que esse disco é uma resposta ao espírito do tempo – uma época cada vez mais individualizada, atomizada, com o esvaziamento da coletividade, da polis, com a sensação de que tudo se resolve magicamente (você vê isso com as apostas), acabaram um pouco as instâncias sindicais, das trocas de ideias para melhorar nossas vidas a partir de uma experiência comunal… E isso se reflete no musical, de alguma maneira. Não é um manifesto, porque não estamos discursando, mas é um elogio ao gesto coletivo e é uma resposta ao tempo. Há um desejo afetivo de nos reunirmos pela nossa amizade, pela força, mas, ser nesse tempo e esse tempo ter esse traço certamente foi, mesmo que inconscientemente, um grande impulsionador, um empurrão gigantesco nessa direção. No ato de fazer, tomar uma posição sem discursar sobre.
Tó: E só dá vontade de fazer se for assim. Se não for assim, não tem porquê. Cada um segue na sua fazendo o seu.
Vinicius: É tão foda, porque o coletivo exige renúncia, humildade, e, ao mesmo tempo, te dá uma sensação de força, de ser time, de estarmos todos uniformizados para entrar em campo e jogar o mesmo jogo. Esse lugar de estarmos no palco na mesma linha, lado a lado, de frente para o público é muito forte. É incomparável com a minha sensação de estar sozinho em um show. Foi muito bonito estar no Coala por vários motivos, da volta da banda etc., mas também porque as pessoas puderam olhar e ver esse tipo de amizade acontecendo ali no palco. Porque ou é sem vaidade e com amizade, ou não tem. Ou trabalhamos com cooperação e amor, ou não tem disco. Não é só um papo bonito…
Altério: É uma condição interna nossa.
MP: Sentido revela uma característica muito essencial da banda e também de seus outros projetos, que é um encanto muito grande pelo formato “canção” e pela música popular brasileira.
Tó: Minha religião é essa. Eu acredito na canção como a tecnologia mais eficiente da comunicação e do acúmulo de histórias e cultura… é de uma eficiência inacrediável. O que se pode dizer em uma canção em pouco tempo, não vai ter inteligência artificial suficiente para guardar tanta coisa em tão pouco espaço. A canção é, normalmente, algo tão pequeno, mas que cabe tanta coisa dentro dela.
Vinicius: Nós somos militantes da canção, é uma missão de vida para todos nós. Somos cinco cancionistas, é nesse lugar onde nos encontramos. Nossa singularidade é essa, ser uma banda de cancionistas. E o desdobramento instrumental do que 5 a Seco foi se tornando tem tudo a ver com o fato de sermos originalmente cancionistas – e que não querem deixar de ser cancionistas, que tem isso como profissão de fé.
Altério: E tem uma coisa bonita do Tó falar isso, porque, uma das coisas mais bonitas dele trabalhando na produção do disco, carregando esse know how que ele tem, na maneira de trabalhar com ele e no reflexo auditivo da coisa é essa relação com a canção, né? Principalmente dentro de 5 a Seco, mas mesmo nos lugares mais alternativos, como com Maria Beraldo em Colinho, que é um disco de uma grande ousadia de produção e composição, e como esse know how vem para o grupo. A vestimenta em torno de cada palavra, e de como é importante, por exemplo, na hora da gravação comentar a interpretação dos versos. Acho interessante, do ponto de vista da produção, como ela está conectada com o que está sendo dito. Na minha audição pessoal, é um disco de letras muito poderosas, de um texto muito poderoso, e o grande acerto da produção é respeitar esse poder do texto. O que move a produção do disco é a mensagem.
MP: E não tem como falar com vocês e não tocar no assunto Chico Buarque. Como foi isso?
Vinicius: Cada um pode contar em sua narrativa pessoal por que Chico Buarque é um herói em sua vida. No meu caso, é o maior, com certeza absoluta, e eu rechaço a própria ideia de herói (risos). É inacreditável para nós mesmos, porque, é isso, somos extremamente reverentes à canção, e Chico Buarque talvez seja a manifestação mais sublime da canção no mundo. Essa música que ele participa foi originalmente composta para uma peça que escrevi, Museu Nacional, e escrevo teatro também muito influenciado pelos musicais que ele escreveu, por sua obra dramatúrgica. E é uma canção que fala de que o novo é o velho, o velho é o novo, esse retorno eterno. Fala também desse lugar da reverência, de linhagens, de passagens de bastão. E o texto que Chico canta no final diz: “Eles, nossos antepassados, vivem imersos em nossas jornadas”, e ele é de alguma maneira o nosso antepassado presentificado, um negócio muito louco. Tó trouxe a ideia de que essa música estivesse no disco e que fosse a canção que todos nós cantamos, que é uma ideia que temos desde Pausa, aí meio que se decidiu naturalmente que ela abriria o disco. A última estrofe seria cantada por todos, mas me deu um estalo: Vamos chamar Chico. E parecia uma coisa completamente excêntrica – e era.
Tó: Sim, porque é excêntrico convidar o cara para cantar a última estrofe depois de nós cinco (risos). É uma coisa descabida. A partir do momento em que ele aceitou, começamos a pensar: Será que não devemos deixar que ele cante a música inteira? (risos) Mas, ao mesmo tempo, o sentido dele cantar essa estrofe desse jeito, com esse arranjo, abrindo o disco depois de uma pausa… enfim, acho que isso fala por si só quando você escuta a faixa e o que ele está dizendo, e o que ele representa em nossas vidas. Ficou uma participação especial de fato, todas as outras agora são meras participações (risos).
Curta outras entrevistas e mais de 5 a Seco no Música Pavê