Berlim, Saúde Mental, Fé: “Crux”, por Apeles

todas as fotos por gabriela kruger

Crux é a produção mais pessoal da carreira do músico Eduardo Praça, nome por trás de Apeles. Em conversa com o Musica Pavê, o artista contou detalhes sobre alguns dos principais momentos e processos que culminaram no lançamento de seu segundo álbum solo, lançado em parceria com o selo Balaclava em 9 de agosto de 2019.

Para Eduardo, “a parte mais importante do disco são as letras”. “É onde consigo me comunicar melhor”, comenta. Em Crux, o compositor experimentou uma mudança de perspectiva importante nesse sentido, passando a comunicar questões mais particulares do que em seus projetos anteriores. Os eu-líricos das composições mais antigas costumavam ser baseados em personagens de filmes, livros e em histórias de amigos, o que pode causar surpresa, dada a carga pessoal das letras e das interpretações de Eduardo ao longo da carreira. Para compor desta forma, é essencial cultivar uma visão atenta e empática sobre a realidade. Esse olhar do compositor paulistano foi mantido em Crux, agora mais na forma de cuidado pessoal.

 O processo de produção do disco aconteceu, por coincidência, em uma época que eu comecei o tratamento de saúde mental, de descobrir e tratar melhor da minha cabeça. Nesse processo todo você acaba entrando muito no seu interior e descobrindo as coisas, porque você faz as coisas, porque você é assim. Foi tudo refletindo nas letras, então de fato é muito pessoal e quase tudo autobiográfico e verossímil. Considero meio que um exorcismo da fase que eu estava passando e de me afirmar com as coisas que eu penso, de como eu sou e tudo mais”

Ainda que os assuntos tratados no disco carreguem uma boa dose de seriedade, Apeles procurou equilibrar a densidade das temáticas com arranjos e interpretações sonoras menos pesadas das composições. É o caso, por exemplo, da faixa A Alegria dos Dias dorme no Calor dos Teus Braços, onde baixo e bateria conduzem uma dança delicada sobre “a geração ibuprofeno / refém de um aparelho”.

“Fiz esse disco de um jeito que não fosse me levando tão a sério, tão clima pesado, por isso as músicas às vezes têm esse clima de disco music, um pouco mais dançante, para que fosse uma interpretação um pouco mais leve dessas coisas. Acho que é um balanço”

Além da elaboração das letras, o processo de produção das vozes do disco também ocorreu em um contexto mais pessoal e íntimo. Segundo Apeles, esse foi o primeiro disco de sua vida em que gravou as vozes sozinho e em casa. A ideia inicial era “não esconder tanto as vozes, igual já tinha feito em outros discos”. Como resultado, os vocais soam mais livres, claros e certeiros. Uma maior nitidez sobre o que é dito aumenta o aspecto de vulnerabilidade que as palavras do compositor já carregam.

“Eu fui experimentando muita coisa. Nos outros discos que gravei em estúdio tem aquela pressão, alguém em cima de você para terminar. Agora pude experimentar muito com timbres e tudo mais. Queria muito que o disco soasse com clareza, de algum jeito, então mesmo com os efeitos dá para entender algumas coisas. Da outra forma é legal também, tem algumas coisas que eu ouço, tipo Slow Dive e algumas outras bandas, que é difícil às vezes de entender as letras e é gostoso você ir e ler elas separadamente”

O capricho com o tratamento vocal também é claro na parte instrumental. Em um longo período de pré-produção caseira – cerca de dois anos – Apeles experimentou uma diversidade de timbres, texturas, efeitos e camadas que fazem do álbum uma experiência sonora única. A paleta de cores das guitarras e sintetizadores leva as composições para lugares igualmente estranhos e belos.

“De fato, o trabalho foi feito com muito esmero de exploração de timbres e tem o fator também que foi preponderante: assim que as mixagens instrumentais estavam prontas, passei tudo isso em um aparelho de discotecagem e baixei a rotação das músicas. Muitos dos timbres ficaram meio únicos assim, sabe? Ficaram com uma sonoridade um pouco estranha, por isso soa diferente e original. Eu ouço bastante sobre isso, é uma das coisas que me deixa mais feliz. Ter explorado uma sonoridade que não estava muito ao meu alcance antes e que as pessoas também podem ouvir e ter uma interpretação diferente do comum, do que já rola”  

Pássaro Nu, terceira música do disco, foi uma das que passou pelo processo de redução da rotação. Apeles conta que, antes disto, ela era quase um country music de tão rápida. O resultado final, mais arrastado, valoriza a letra e a melancolia das belíssimas linhas melódicas, conversando com a temática da composição, uma das melhores do álbum.

“Pássaro Nu é uma das que eu mais gosto. Essa música eu escrevi sobre depressão, sobre você se libertar, ainda naquele assunto de tratamento de saúde mental e tudo mais. Pássaro Nu foi uma analogia, de um pássaro quer poder voar, ser livre, mas ele está nu, não consegue fazer essas coisas, está preso. Meu pai tinha um passarinho que ficou doente e começou a perder as penas. Aí me deu esse clique para colocar o nome da música”

Algumas imagens sobre depressão, angústia e ansiedade estão presentes ao longo de álbum, como em Pássaro Nu, mas são abrangidas por uma mensagem maior, expressa através do próprio título do álbum, cruz em latim. Apeles, que é católico por nascença, mas não praticante, teve que buscar “muito poder mental, estabilidade emocional para colocar em prática neste disco”. A fé, expressa no título do álbum é, segundo o artista “acreditar em mim mesmo, seguir até o fim e acreditar que o disco pode significar alguma coisa não só para mim, mas para as pessoas”.

“Essa relação com a fé eu tenho por causa do Crux, que também quer dizer cruz e que tem um significado da igreja católica e tudo mais. Acho importante botar fé nas coisas seja lá o que te move. Independentemente de ser uma coisa religiosa, eu acredito muito no poder do pensamento, gosto de brincar um pouco com isso. Fé é importante seja lá qual for a sua religião ou algo do tipo”

Eduardo, que agora está no Brasil para uma série de apresentações, conta que experimentou uma mudança de estado de espírito para a produção do álbum devido a sua estadia em Berlim.

“No geral, Berlim é uma cidade que sufoca muito menos que São Paulo, que tem essa coisa da correria e da festa… não sei se chegou a afetar diretamente a sonoridade, mas acho que por ter sido um disco trabalhado com tanto tempo e por eu ter estado lá, consegui trabalhar de um jeito menos apressado. Berlim é uma cidade muito voltada para a música eletrônica e talvez também tenha alguma coisa de música eletrônica no CD por isso. Acho que me influenciou mais na parte visual do que na sonoridade”

A identidade visual é um dos pontos fortes do trabalho de Apeles, que tem ótimos clipes para A Alegria dos Dias Dorme no Calor dos Teus Braços, Torre dos Preteridos, Pássaro Nu e Rio do Tempo. Os vídeos complementam as canções de forma sutil e significativa. Por vezes, os cortes são rápidos e as imagens são nostálgicas, se assemelhando a fluxos mentais. Por outras, o som cheio das canções ecoa no vazio de realidades mais estáticas e implacáveis. Os nomes das faixas de Crux poderiam ser nomes de filmes.

“Eu assisto muito filme, o disco tem bastante referência. Por exemplo, uma música que chama Rebecca é inspirada num filme do Hitchcock. Eu gosto de algumas coisas interdisciplinares, até de quadros, literatura. Uma das músicas do disco, Pele, foi feita para um filme, é o tema do personagem principal. Vai entrar em cartaz no brasil inteiro. Eu sempre estive muito ligado com cinema, meus melhores amigos são cineastas. Então eu vejo que os clipes fazem parte da minha discografia de um jeito importante”

O gosto de Apeles por gravações de áudio produzidas fora de estúdios de gravação, ou field recording, também contribui para o clima cinematográfico do álbum. É o caso do final da faixa Crux, que antecede Rebecca, na qual é possível ouvir Eduardo cantarolar uma melodia discreta em meio a ruídos urbanos.

“Quando gravei essa parte eu estava num ponto de ônibus aqui em São Paulo, quando me veio a melodia de Rebeca, aí eu gravei para não esquecer. Depois eu fui olhar e falei: ‘pô, ia ficar legal um pouco antes da música’. Montando o disco eu gosto de brincar com essas coisas, de interligar as músicas, de preparar para entrar em determinado clima para a música. Tem alguns artistas que fazem isso que eu gosto bastante, tipo Frank Ocean, o último disco do Fleet Foxes tem algumas coisas assim. É um som que é familiar para as pessoas, né? Então, tipo, é um elemento que te coloca na cena do crime, sabe? Fita por si só já tem uma textura que já traz nostalgia. Se você passar qualquer coisa hoje em dia numa fita assim já vem assim um som de nostalgia de anos 80 90… 70 até.

Quando dito que nostalgia era uma palavra que combinava com o som de Apeles, o artista respondeu que: “se pudesse morrer com uma palavra seria essa”.

Curta mais de Apeles e outras entrevistas no Música Pavê

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