Scalene Reinventa Scalene Naturalmente a cada Disco

foto por breno galtier

Poder acompanhar uma banda por muitos anos é escrever as impressões de sua história pouco a pouco, e em tempo real. Scalene apareceu pela primeira vez no Música Pavê em 2014, quando lançou o clipe de Surreal. Desde então, acompanhar o quarteto tem sido perceber uma narrativa ímpar em relação aos seus contemporâneos – e, não por acaso, a equipe do site elegeu a banda como uma das melhores de sua geração.

Quando Respiro saiu, em 2019, foi como fosse confirmada qualquer suspeita de que Scalene quer construir uma carreira muito diferente do que se espera de uma “banda de rock”, digamos, convencional. Movidos a uma intensa energia criativa, aquela que cria vários desafios internos, os músicos entregaram uma obra que se assemelha mais ao lado indie da MPB do que ao som que colocou o grupo como destaque do circuito independente no início da década.

Dias após o disco ganhar o EP Sessão Respiro, com versões gravadas ao vivo, Gustavo Bertoni sentou com o MP para contar como enxerga essa narrativa, tendo vivido tudo isso em primeira pessoa.

Música Pavê: Quando Respiro saiu, foi difícil não pensar que ele mostrava uma “nova” Scalene. Você acha que isso foi resultado de um processo de reinvenção ou de descobertas ao longo da carreira?

Gustavo Bertoni, Scalene: Para nós, que estamos dentro do processo, a gente não vê isso como algo super novo. A gente sabe de onde essas influências foram nascendo lá atrás. Você escuta uma parada, começa a tomar um certo gosto e a tirar umas músicas, faz uma ou outra composição que você descarta… O processo de você se entender dentro de outro gênero, humanamente, não é tão rápido assim. Porque esse gênero traz ambientes, arquétipos e artistas muito relevantes. Esse disco foi mergulhar no que já estava gradualmente vindo em nosso som. Acho que no Real/Surreal, que eu fiz quando tinha uns 18 ou 19 anos, tinha realmente muito pouco de música brasileira. Já no Éter, de 2015, tinha uma música chamada Gravidade e, depois de 2017, essa influência já é bem notável. A gente queria fazer um show diferente e explorar uma música mais acústica. 

MP: Penso que esse movimento acontece com dois cenários em paralelo. Um é a chance de vocês conhecerem cada vez mais música brasileira nas turnês e festivais. E a outra é como essa cena autoral ganhou força justamente ao longo desses anos.

Gustavo: Tem bastante a ver com isso sim. O rolê de viajar pelo Brasil e conhecer bandas influenciou muito. Mais do que isso, foi mais uma curiosidade mesmo. Sou brasileiro, sou um artista brasileiro, preciso conhecer minha cultura e a música do meu país. O lance também de querer ser um compositor que deixe uma discografia massa, um legado, sei lá… eu tenho essa ambição de querer sair do lugar de ser só um “vocalista de banda de rock”. Isso é incrível, mas Scalene nunca quis ser só isso. Olhar para esses outros lugares e compor em outros gêneros são coisas que sempre me intrigaram. A gente gosta de sair da zona de conforto. Fazer algo que a gente sabe que faz bem não é tão inspirador quanto trazer a bagagem e pensar aonde a levamos. E também juntou um momento sócio-político brasileiro, da nossa geração despertando um lado mais engajado, e a música conversa diretamente com isso. 

MP: Sobre o termo “banda de rock”, que você acabou de usar. O quanto ele faz sentido para Scalene hoje?

Gustavo: É uma ótima pergunta. Não sei essa resposta, acho que é um termo que está em constante ressignificação, ainda tô pensando sobre isso – falei na terapia sobre isso (risos). Acho que a gente cresceu com certas noções não só do rock, mas também do roqueiro, que não fazem mais sentido hoje. A gente entendeu que precisava olhar para elas com um olhar crítico e agora, pós-Respiro, estou voltando a olhar para o rock de uma maneira positiva. Acho que ele foi vilanizado por muito tempo de uma forma millennial, com o impulso necessário e bem intencionado, mas às vezes desregulado e imaturo. Então, acho que é o momento de nós, mais maduros, olharmos para o termo e pensar o que precisa ser ressignificado. Cara, a intensidade da troca em um show de rock é muito única. E o rock faz muito parte do nosso DNA de uma forma natural. Então, estou curioso para saber aonde vão as próximas coisas da Scalene.

MP: É interessante pensarmos que uma cena musical se constitui a partir de semelhantes. Quando vemos a cena brasileira de hoje, no entanto, parece que as bandas estão próximas, mas todas com identidades muito próprias. Scalene está na mesma cena de francisco, el hombre e Baleia, por exemplo, mas são três bandas muito diferentes no som. Como Scalene tem trabalhado sua personalidade dentro desse meio?

Gustavo: Essa liberdade artística que está rolando é muito linda, velho. Nós pegamos o fim daquela época de gravadoras como as conhecíamos e vimos o pessoal ter as ferramentas na mão, fazer home studios, criar selos menores com identidades mais claras. A rádio deixou de ser o que era, aquele “tenho que fazer uma música para tocar na rádio”. O rumo e a mensagem ficaram muito mais nas mãos dos artistas, e eu acho isso muito maravilhoso, tem tudo a ver com essa parada da liberdade. As plataformas de streaming também, que possibilitam que o público busque aquilo que quer ouvir naquele momento, descobrir o que lhe agrada. Isso alimenta a forma de pensar do ouvinte e também a do artista, que anda em paralelo. Mas, no fim das contas, a gente vai atrás do que a gente quer fazer, do que é mais sincero na hora, sabe? Eu posso ficar tentando racionalizando ou, sei lá, romantizando certos aspectos… Mas é uma coisa intuitiva. E as canções que perduram a ponto de entrar no disco, num setlist de shows, as que entram na vida dos fãs, são porque a gente seguiu uma intuição – o que é mais forte, mais sincero e que faz mais sentido com o que a gente tá vivendo como pessoas dentro desse contexto. Respiro foi reflexo disso, um disco mais tranquilo. Magnetite foi mais agressivo e assertivo, o que era necessário na época. Mas não é o que a gente precisa hoje. Tem até dois interlúdios no álbum que eu gravei sem BPM. É uma metáfora bem óbvia, porque a gente tá sempre dentro de horário, tempo de informação das coisas, como as pessoas esperam que a gente responda o Whatsapp. Scalene tá nesse fluxo desde 2015, de programa de TV e festival, só acompanhando um flow que chegou até a gente. E foi ótimo, mas a gente foi processando aos poucos. A gente brinca que, quando desceu do palco do Rock in Rio em 2017, foi quando a gente sentiu que 2015 tinha acabado (risos). 2018 foi um ano de processar essas coisas até, em 2019, chegar o Respiro. As letras são carregadas, têm uma questão política de resistência e empatia, mas em outro ritmo. Tudo anda tão saturado e ruidoso, como ter um tempo de silêncio para absorver as coisas? A gente precisa desse espaço para absorver coisas muito profundas, em suas várias camadas, na velocidade que o dia de hoje impõe. Esse ritmo não é natural. Tenho pensado que talvez a música, o beat e a harmonia talvez não precisem de tanto tempo para assimilar, porque são padrões – notas, tempos, é tudo matemático -, e podem ser mudados com facilidade. Mas as letras são muito humanas. Você precisa de tempo para se entender dentro das circunstâncias, não tem como hackear muito esse tempo de aprendizado das questões mais humanas.

MP: E o que é mais indissociavelmente orgânico na música é a voz, já que vem de um corpo. Ao olhar a discografia da banda, a minha leitura é de enxergar você encontrando cada vez mais novos lugares para sua voz. 

Gustavo: É, acho que a voz é o que há de mais transparente na expressão da emoção, né? Você pode mexer nela com mil efeitos, mas é orgânico mesmo e sempre vai refletir de uma forma muito humana aquilo que está acontecendo. Talvez eu seja um pouco oldschool nesse aspecto, uso muito pouco efeito, gosto dela soando crua. Gosto de gravar da forma mais afinada possível para editar o mínimo. Acho que em Respiro eu finalmente me encontrei como vocalista brasileiro. Eu tive que fazer fonoaudióloga quando era menor, minha pronúncia não era boa, aí acho que influenciou também eu ter feito ensino médio em um colégio americano, ter tido muita influência de cantores [estrangeiros]. Foi todo um processo até chegar a um resultado, que me deixou satisfeito. Foi um lugar diferente de voz, mais suave, com uma levada de MPB, com aquela cultura de uma voz mais falada, areada, natural. Quem me deu uma resposta super positiva sobre isso foi o Silva. Ele falou: “Cara, escutei o disco, achei tão diferente você cantando porque, por você não ser do rolê da MPB, não tem vários vícios que essa galera tem”. Achei super massa. Enquanto eu queria me aproximar disso, o fato de eu não ter vindo daí, gerou algo diferente. 

MP: Para mim, isso tem a ver também com as letras serem cada vez menos referencialmente “do rock”. Seja pela cadência dos versos, ou mesmo por ter palavras polissílabas, penso que essa estética é também o que essas letras “pedem”.

Gustavo: Sim! Ao escrever assim, as palavras pedem certos apoios, certas questões rítmicas, você acaba pensando em frases com muitas consoantes que te dão esse apoio. Por exemplo, “samba na cara do medo”. Dá para cantar de um jeito rítmico que fique claro, não fique solto. Eu queria mesmo era absorver muitas coisas e testar sem medo. A cada disco, você vai criando mais confiança e mais vocabulário para enxergar que as coisas que você achava que não dariam certo acabam dando. E isso é viciante, velho (risos), dá vontade de só fazer coisa que você não sabe se vai dar certo.

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