Entrevista: Tuyo

Sabe gente de verdade? Que pensa um monte de coisa, sente mais ainda, se relaciona, participa, convida e aceita? Então, acompanhar Tuyo em shows, discos e até redes sociais é observar pessoas que, com ou sem medo, aceitaram os desafios de ser, estar e fazer  – respectivamente: elas mesmas, em movimento e boa música.

Com talento de sobra para desencanar e viver apenas aquele jogo de aparências que tanto nos pressionam para entrar, o trio paranaense escolhe investir em um verdadeiro ato de resistência, que é trabalhar sua arte da maneira que bem entende, focando em uma proposta que vai além de belas canções. Seu objetivo é sempre a experiência reflexiva e sentimental do ouvinte, ou, em suas palavras, “encurtar abismos”.

Foi sobre tudo isso e mais um pouco que Lay, Lio e Jean conversaram com o Música Pavê durante um café em São Paulo, cidade onde se apresentam neste sábado (21/04, Jai Club) em uma temporada de shows que inclui São José dos Campos (22) e Londrina (28), além de uma apresentação com Bruna Mendez no Festival Bananada, em Goiânia, levando o repertório do EP Pra Doer (2017) e do futuro Pra Curar, ainda sem data de lançamento divulgada.

Música Pavê: Eu observo que o som de vocês, a partir até da escolha dos títulos Pra Doer e Pra Curar, reconhece o potencial emotivo que tem e assume isso. Como é para vocês viver tudo isso a cada música e a cada show?

Lio Soares: A gente estava falando disso hoje. A gente assume isso sim. É catarse, é sentimento. A gente não vê sentido sem. Não é mecânico, embora o mecânico também tenha sua função – eu às vezes não quero sentir nada, né? O que é também uma indução emocional, o não sentir nada. O nosso rolê é a catarse, o autoenfrentamento. A gente teve uma discussão em casa se música tem que ter uma função ou não. Os nomes dos nossos primeiros trabalhos na Terra tem uma espécie de “função” no nome, Pra DoerPra Curar, não que necessariamente… a gente não está prometendo nada. “Pra doer” a gente até que promete (risos)

Jean Machado: Pra Curar também vai doer.

Lay Soares: Enfim, tudo executa várias funções.

MP: Até porque está além do controle decidir como as pessoas vão se relacionar com as músicas.

Lay: Sim, a partir do momento que sai da gente… é muito doido.

Lio: Mas não é segredo que isso acontece não. Não é uma parada pensada, “como afetaremos as pessoas?”. Esse objeto artístico que é o disco, ou nossos poemas, é nossa cosmovisão das nossas experiências, um registro poético do jeito que a gente enfrentou essas paradas assumidamente emocionais.

Lay: É muito louco, porque a gente passa por essas experiências todo show, né? E elas são totalmente diferentes e… não é desgastante, mas… enfrentar as coisas desse jeito exige uma… energia, não sei. A gente sai cansado do show, porque a gente entrega muita coisa. Essa atividade, esse caos que leva a gente pro movimento…

Lio: As metáforas são óbvias na Tuyo, não tem uma “conversinha” antes. Sabe quando você vai falar com uma pessoa e fala “e aí, você tá bem?”, “tudo bem e você?”, passa uma meia horinha e vocês estão desabafando? Esses trinta minutos não existem. Nós subimos ao palco nus e encontramos pessoas que já chegaram lá de peito aberto. Acho que a gente nunca viveu uma experiência de subir ao palco e as pessoas não estavam lá 100%. E aí é onde a catarse acontece, os enfrentamentos. Eu acredito que as pessoas têm a impressão que elas estão vendo a gente, mas elas estão vendo a si mesmas. É sobre elas o tempo todo. Elas não choram porque a gente está cantando afinado ou a letra é bonita. Elas choram porque a gente está cantando sobre a vida delas, as experiências delas. Talvez por causa da obviedade das nossas metáforas, isso seja mais rápido, mais escancarado.

Lay: É claro que elas projetam ali, né? Na gente, na música, no show, e como aquilo comove elas, mas essa projeção nada mais é do que elas se olhando de uma outra forma, de uma outra perspectiva que a gente apresentou ali e elas interpretam e configuram do jeito que quiserem.

MP: Esse aspecto sem “quebra gelo” no som de vocês é algo que vocês perceberam que dava para fazer ou que, quando deram conta, já faziam?

Jean: A gente nunca parou pra pensar nisso. Honestamente, a gente está começando a pensar no formato do show só hoje.

Lio: É uma forma que já existe, a gente está só reorganizando do nosso jeito.

Lay: Isso, dando nossos nomes pras coisas que já existem e que a gente percebeu o efeito que causavam. Até porque a gente só consegue fazer isso, reconhecer as coisas e dar nomes a elas, depois que tudo já aconteceu, quando você olha pra trás e vê o caminho que se formou.

Lio: Porque antes é uma ilusão, né?

Lay: Antes a gente só projeta, não sei.

MP: E o que vocês estão fazendo, nas músicas e nos shows, é também uma facilitação das pessoas chegarem aonde elas querem com a música, não é?

Lio: (pausa) É, a gente fala sempre sobre isso. Nós acreditamos que induzimos o encurtamento de abismos entre as pessoas e elas mesmas, ou com outras pessoas. Não tem muita chance de ter muita máscaras, muito charme, não dá tempo de ter muitas fantasias. Os temas são muito crus, falam sobre a realidade da vida, a morte, desilusões… são temas existenciais e com pouquíssimo beat, então não tem nem como você disfarçar. E rola isso hoje em dia, parece que as pessoas têm essa necessidade de viver uma paixão, viver um sentimento intenso que seja projetado no outro – “tô vivendo um grande amor”, ou “meu grande amor deu errado e eu preciso reorganizar isso dentro de mim”. A gente está na busca da devastação, do caos, do problema, do enfrentamento.

Lay: Parece um jeito muito bonito e muito dramático de você entender que você está vivo. Bem dramático, tudo nos extremos.

MP: É aquela história da montanha russa, né? Ao invés de estabilidade, as pessoas buscam pontos muito altos sem perceber que eles vêm acompanhados de quedas muito rápidas.

Jean: Eu boto fé nisso. A gente tá sendo educado pra ser frio e não sentir nada. Acho que a Tuyo tem sido também o meu lugar de me forçar a sentir algumas coisas. E eu tô achando muito legal a ironia da pessoa estar conhecendo Tuyo hoje e achar que um disco ou um show vai cumprir a função de amor, ou de romantismo, que ela quer consumir naquele momento. Aí, acho que ela chega lá e encontra outra coisa, ela vai se forçar a sentir coisas que normalmente a gente é forçado a não sentir no dia a dia. É uma responsabilidade tocar isso nas pessoas, e é irresponsável tocar isso e sair fora.

MP: Era minha próxima pergunta, como vocês lidam com essa responsabilidade?

Jean: A gente saca essa nossa responsabilidade, a necessidade de oferecer isso e até onde a gente pode provocar também. Eu falo isso hoje e amanhã eu mudo de ideia, não sei, mas tem um limite que a pessoa deve saber de até onde ela pode ser tocada. A gente só pode deixar a ferramenta ali à disposição. Eu acho legal também a gente saber trabalhar a sonoridade. A gente quer uma coisa no show que a gente dance também, que a gente curta, que a gente faça novas pesquisas.

Lio: A gente não tem nenhuma responsabilidade estética com ninguém, né?

Jean: Acho que nossa responsabilidade é com o que a gente está sentindo, com o que a gente está tocando ali na hora.

Lio: Às vezes, eu sinto essa aura de uma “responsabilidade estética”, no geral, que você precisa ser fiel aos seus trabalhos anteriores, ou a uma categoria. Dane-se, eu vou me transformando, vou vivendo outras situações. A gente não deve nada esteticamente a ninguém. A gente não precisa fazer o “disco inovador do ano”, tocar dessa tal forma, “não pode ser muito triste”, “não pode ser muito feliz”… não tem limites, não tem amarras. Tenho a minha vida, tenho o meu poema, o meu jeito de expressar as coisas que eu quero, ou que eu preciso dizer – acho que mais preciso do que quero. É bem o que o Jean falou.

MP: Nesse sentido de uma preocupação estética, penso que se você pensar muito nisso você pode comprometer a sinceridade com que você se propõe a trabalhar, porque ela tem a ver também com fazer o som que você quer fazer e pronto.

Lay: É, aí já colocou várias camadas que fogem do natural, do sincerão.

Lio: A dor é muito democrática, né? Ela não tem classe, não tem cor… Eu não sei se tem alguma coisa mais democrática que o pânico, o terror, o medo, o sofrimento mesmo, a dor. Eu acho que o amor é privilégio. Talvez eu esteja falando uma grande bosta, mas acho que o amor é bem burguês. E a gente aprendeu – com novela, sei lá – que o amor é pra todos, mas eu, experienciando, acho que tem umas relações que não são pra todos. Vínculos paternos, vínculos maternos, enfim. Mas a fodelança é geral.

Lay: Ela vem pra todos.

Lio: É, e eu acho que isso aproxima a gente, vai encurtando esses abismos e, como o Jean falou, não tem responsabilidade nenhuma de estar fabricando “indutores de bad“.

Jean: É, eu não acho legal essa situação de “hoje eu estou muito triste, vou ouvir Tuyo”. Eu acho que você curtir um momento que não te fez bem não é uma bad, é um processo de amadurecimento, é um rolê de estar vivendo. Eu não acho a Tuyo triste. É teu brother falando na tua frente a real, sabe?

Lio: É isso aí. Tem esse rolê de “não gosto de tristeza, gente, bola pra cima”. Isso aqui é realidade. Esse negócio de ficar jogando pra baixo do tapete e não enfrentar… o não enfrentamento às vezes deixa a gente dar uma respirada, mas isso aí fode a cabeça da criatura.  

MP: Voltando um pouquinho no assunto, sobre a identificação com seu trabalho e a responsabilidade, eu penso que – em um mundo em que as pessoas buscam cada vez mais serem “não-pessoas”, acreditando mais nas imagens e nas projeções e se privando de sentir as coisas que são normais na vida -, quando vocês se mostram como gente, não só como “artistas”, ajuda também as pessoas a se entenderem como “gente” também. Vocês também acham?

Jean: Tá aí, é isso. Eu acho que o palco facilita muito isso, o YouTube também está ajudando demais a Tuyo a virar uma coisa na cabeça daquela pessoa. Quando eu vejo o Djonga cantando, postando aquela foto dele ali de Adidas e um brincão foda, e várias outras coisas que ele está fazendo, tá ligado? Por eu me identificar com ele, eu entendo que um dia eu posso fazer aquilo também. Voltando pra Tuyo, se a gente se mostra nu ali, se a pessoa tem uma admiração pelo que a gente entrega, a gente se mostrando humano, a pessoa fala “eu sou isso também”. Duas horas antes do show, ela estava com outro sentimento, mas ali, por uma hora, ela se lembrou de alguma coisa que ela é também. Acho que o palco, a Internet e tudo o que a gente vem fazendo potencializa isso.

Lio: Uma parada doida que acontece antes dos shows da Tuyo é que a gente recebe muitas mensagens nas redes de gente falando “tô ligado que vocês vem tocar na minha cidade, eu quero pedir minha namorada em casamento [no show]”, “eu quero dedicar uma música pro meu boyzinho” e o que acontece é que, na hora do show, ninguém quer dedicar nada pra ninguém, tá todo mundo morrendo. A pessoa têm encontros com ela que atravessam os relacionamentos com ela e vão para um relacionamento consigo. Tá sendo saboroso a gente perceber esses outros padrões. Não que a gente tenha que ser uma experiência religiosa, ou uma experiência terapêutica. A gente não “tem que” nada, mas acontece.

Lay: E é legal participar disso, ver que isso acontece.

Lio: Acho bacana também porque, depois que acaba esse ciclo da gente projetado no palco, a gente “espiritualizado”, “divinificado” como quem provoca o exorcismo lá na pessoa que está ouvindo, a gente sai do palco e volta pra pessoa, porque ela tem alguma coisa pra dizer com a gente. Ela quer dizer alguma coisa, ou às vezes não falar nada. Teve uma menina que entrou numa fila e ficou nos encarando por uma meia hora. Nada aconteceu, a gente abraçou ela, ela foi pra casa… eu senti que, depois que a pessoa sai atordoada do negócio, ela precisa se sentir tocada, e eu preciso deixar ela me tocar e fica tudo bem. E a mesma coisa acontece no online. A pessoa ouve no streaming e aquele fonograma fala alguma coisa com ela. Daí, ela vem no “direct” e fala alguma coisa, eu devolvo e fica tudo bem. Essa relação sem degrau com o artista também é muito gostosa.

MP: Vocês se sentem precisando ser muito resistentes a um sistema no mercado musical que quer impôr outros valores, outras “regras nesse jogo” para vocês cumprirem ao invés disso que acreditam?

Lio: A gente ouviu de muita gente que Tuyo não daria certo. Mas o que é “dar certo”, né? É claro que eu quero pagar meus boletos, eu não vou reinventar o capitalismo. Vai chegar luz, água e telefone, e eu quero pagar com o dinheiro do meu trabalho de vida, da minha obra, da minha única empreitada. Mas eu tô atrás de outras coisas, se eu quisesse dinheiro tinha feito odontologia. Eu quero viver a minha vida e sentir prazer, e o que me dá prazer pra caralho é ver os abismos se encurtando entre as pessoas, esse é o meu ego de artista. E acho que a gente tinha isso isoladamente, cada um tinha um tesão nos enfrentamentos reais.

MP: Não tem como negar que vocês têm feito muito bem o que fazem também em qualidade técnica nas músicas, e penso que pode, às vezes, ser tentador abdicar de todo o sentido e significado disso tudo e focar só na estética, porque aí você pode atender demandas de mercado.

Jean: Acho que aí a gente abre mão da atemporalidade. O meu ego de artista é de um dia ser atemporal. Se a gente atender a demanda de mercado estética de agora, a gente vai cumprir a função só a função do agora. Isso não é ruim, mas fica só aqui, só um ponto na história. Eu escuto música de 1970 e ela ainda tem função aqui dentro, sabe? Eu acho mais legal cravar minha música no coração das pessoas do que no livro da história.

Lio: Um lugar que eu não quero entrar é esse da “canção superior”. “Porque a minha obra…” – Jorge Vercilo falando de funk, sabe? Tem a música que me prostra e tem a música que não me prostra. O que ela é, eu não sei.

Lay: Eu ouço muita música que não me prostra, que eu quero consumir às vezes pra aquele prazer instantâneo.

Lio: Mas acho que seria fácil sim. A gente viveu uma experiência bizarra participando de programa de TV e entendendo que existe uma engrenagem muito honestona de entretenimento que é real, que tem muita injeção de dinheiro, que é uma parada que eu quero muito também. Poxa, eu quero tirar meus pais do aluguel. Meu pai foi o primeiro cara da minha família que se formou, óbvio que eu quero tirar ele do aluguel. Ele sempre foi contra eu fazer música. Por causa do meu ego, eu quero provar pra ele que eu consegui, sabe? Claro que eu quero isso, mas, se fosse só isso, eu estava fazendo outra coisa. Eu quero sentir tesão, quero explodir meu cérebro, deixar a minha cabeça derretida de prazer. Daí, se eu for pra esse lado fácil aí… sei lá, a gente é irmã, é parecida, e tem o Jean, que é família, daí “ai, que lindo, uma família”… dane-se. A gente tem todos os checks para estar nessa categoria e ganhar dinheiro, mas eu quero bater no peito e sentir orgulho. Mas porque é meu ego, não porque eu sou especial, “uma grande heroína” – meu cu.

MP: A gente falou muito de uma resposta emocional do público, mas chega também algum retorno com maior distanciamento, as pessoas que apenas curtem o som e seguem vocês com menos envolvimento?

Lio: As pessoas podem vir por várias razões, mas elas só ficam pelo afeto. Eu acredito que o âmago da canção brasileira tá no duo vocal com o violão. Em qualquer cafofo que você for, você vai ver um pessoalzinho com um violãozinho desafinadésimo, ninguém sabe tocar porra nenhuma, mas todo mundo vai lá. A gente cria afeto. Se você escuta uma primeira voz com uma segunda, já te fisga, mesmo sem você perceber. Mas a gente embala isso na nossa estética, que vem muito do eletrônico, da busca pelo timbre. É aí que o Jean entra com uma curadoria fodida. Eu acredito que, no Pra Curar, a gente venha com outras poesias. Mas eu sinto sim que vem umas pessoas que estão buscando dentro da camada do que já ouvem. Sei lá, escutam muito Bon Iver, muito Peter Borderick…

Jean: Eu boto fé que nem todo mundo que escuta Tuyo quer ser enfrentado, existe também um rolê estético.

MP: Sobre o próximo disco, Pra Curar, o que podemos esperar dele?

Lio: A gente vai trabalhar com muito afeto sempre, a gente trampa com um pessoal que respeita muito a gente. É gostoso ter essa sensação de que a gente vai transformar nossas experiências em canções. Ah, eu quero mais violão, quero mais vozes, quero mais pancadão, quero mais realidade. Achei que o Pra Doer era um drops de realidade, da existência. A gente está em um ambiente de muito poder, de muitas convicções, e o Pra Doer é cheio de dúvidas, de recolhimento. A gente não aponta muitas resoluções, a gente acentua as dúvidas.

Jean: Eu espero bagunça de todas as formas. Só bagunça. Tem uma parada do Siba que tá me fazendo muito sentido: “Cada vez que eu dou um passo, o mundo sai do lugar”. Quando a gente fez o Pra Doer, a gente tinha um plano de fazer um disco e tal. Mas ele virou outra coisa já, em seis meses de lançamento. A gente antes tinha controle do que ia rolar, agora é só uma parada logística. Então eu espero bagunça.

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