Entrevista: Filipe Catto

Esta não foi uma entrevista como as outras. Ela teve poucas perguntas, algumas foram mais comentários ou pequenas provocações, porque Filipe Catto não precisa de tanto encorajamento para comentar sobre seu novo disco, CATTO, já que ele nasceu justamente de um momento em que o cantor parece ter muito o que contar, em uma intensidade de discurso e atitude muito em par com a força da interpretação vocal que sempre conhecemos dele, algo que ficou evidente nos vinte minutos em que sentamos para conversar sobre uma ou outra coisa e saiu naturalmente um papo sobre muito mais.

Saiba que eu não falei isso pra ninguém nas entrevistas, porque é uma coisa muito pessoal”, ele disse ao final, e continuou: “É foda, porque a gente está num momento de empoderamento mesmo de todos, então eu acho que a gente tem que ser real e falar ‘realmente, eu mereço as coisas’. Acho que é uma coisa muito pessoal, não é ego trip, é uma coisa de não ser fácil viver no mundo em 2017, e a gente tem que se aplaudir, eu me aplaudir, aplaudir você, você se aplaudir pelo que está fazendo, porque fazer qualquer coisa vinculada a cultura é estar em um mercado que a gente inventou, cara. Ninguém deu espaço pra ti, nem pra mim. Então, tá na hora da gente bater no peito e falar ‘vai se foder, tá achando o que? Que música brasileira é essa que você está falando que acabou? Pera aí, não é assim. Como assim o jornalismo acabou? Ele acabou na tua editora, não no que eu tô fazendo, porque eu tô fazendo jornalismo’, sabe? É uma grande viagem as pessoas acharem que a gente está em um momento de decadência, quando, na verdade, a gente está em um momento de decadência do que é . Porque o que é bom não está em decadência. A gente é tão colonizado nesse país que a gente ainda está esperando a Rede Globo dar um especial de TV para mim, Johnny Hooker, As Bahias e a Cozinha Mineira e Liniker. Pelo amor de Deus, isso nunca vai acontecer – e foda-se. Ninguém vai dar voz para a gente, mas a gente vai dar voz para a gente, e acho que esse é o desafio dos nossos tempos. Eu criei um espaço que não tinha, não tem espaço para a MPB na rádio, só as músicas antigas. E o que eu vou fazer? Ficar chorando, ‘ai, as rádios acabaram, agora eu não vou poder realizar os meus sonhos de ser uma princesa da Disney’? Vou ser sim, você vai ter que me ver de vestido de sereia sim, e eu não vou esperar me darem uma coroa, eu vou fazer uma coroa de palito de picolé e ninguém nunca vai dizer que não é de ouro (risos)”.

Repito: Não foi uma entrevista como as outras, daí começarmos justamente pelo seu fim. Nas próximas linhas, Filipe Catto explicará mais sobre o processo de produção do disco, ao lado do produtor Felipe Puperi (Tagua Tagua, também da banda Wannabe Jalva) em uma conversa tão bem humorada quanto íntima, contrastando as lembranças de outras épocas com o novo senso de si que encontra hoje, o mesmo que o faz colocar o próprio nome no álbum.

Música Pavê: Filipe, como têm sido os primeiros dias depois do lançamento de CATTO?

Filipe Catto: Eu tô muito feliz, tô recebendo tanto carinho das pessoas, tá sendo tão especial, principalmente tendo em vista como ele foi feito. Sabe, eu tenho um orgulho fodido de saber quem são os autores que estão ali, os músicos que estão ali, quem é a figurinista, é uma coisa muito pessoal, de teia. A gente está em um momento tão fodido para a arte, cheio de artistas incríveis e maravilhosos que estão vivendo com a gente o nosso tempo, e eu aprendi que conectar com a sua rede do coração funciona, dá certo. E a sensação que eu tenho é que podem destruir tudo, porque, enquanto a gente tiver um celular que grave um violão, ninguém vai conseguir calar a gente mesmo.

MP: O primeiro contato que temos com o álbum é com sua capa, e eu penso que essa comunica um diálogo muito direto seu com o hoje. Sempre te vi como alguém que soube dialogar muito bem com o mercado, com a ideia de “cantor de MPB”, e percebo agora uma conversa com o nosso tempo. Você também enxerga isso?

Catto: Concordo. É engraçado, eu nunca pensei na minha carreira como uma questão de mercado, sempre foi uma coisa muito espontânea. Acho que o fato de ter lançado meu primeiro disco pela Universal fez que isso virasse uma questão. Mas eu sempre fui um artista que tinha naturalmente uma estética ligada a isso. O que mudou muito entre um disco e outro foi o processo. Acho, inclusive, que esse novo dialoga ainda mais com o mercado, ele é ainda mais pop, é o disco mais “comercial” que eu já fiz na vida. Só que Fôlego eu tive uma semana para gravar, Tomada eu fiz em duas, e esse eu tive nove meses. Não tem como alcançar esse nível de entrega em um trabalho se você não tem tempo, se não tem pesquisa, maconha, porre, vivência do trabalho. O que aconteceu com esse trabalho que fala com o tempo foi que eu encontrei uma essência minha que é leve, que tem essa generosidade de ser pop, de ser solar – quem me conhece sabe que esse é meu jeito de ser. E eu tive tempo e disponibilidade do produtor. Eu não sabia quando ia poder gravar um disco, mas sabia que eu precisava de um produtor que ia me acompanhar durante um tempo, que não fosse uma coisa “olha, você vai fazer um disco de tal a tal dia”. Eu precisava de alguém que bebesse comigo, que entendesse a minha viagem, que gostasse das coisas que eu gosto, que tivesse o mesmo ímpeto de investimento emocional que eu tinha com o trabalho. O cara perfeito para fazer isso foi o Felipe. Como eu já conhecia Wannabe Jalva, eu já sabia que ele era o cara. E é alguém da minha cidade, que viveu as mesmas coisas que eu vivi e na mesma época, então é claro que ele vai entender que eu quero cantar um samba do Rômulo Fróes com as batidas eletrônicas, porque isso pra ele é uma coisa natural. Ele entende o que é Placebo, ele sabe o que é Super Xuxa contra o Baixo Astral. Tem uma coisa onírica que é uma coisa da cultura pop do nosso tempo, uma colagem sem fim. A sensação musical que eu tive ao pensar o disco era que ele precisava ter espaço, ter uma atmosfera. Porque eu sei que eu cantor emociono no palco quando estou em um momento de atmosfera, e isso era uma coisa que eu nunca tinha alcançado com a produção musical. A gente fez um trabalho de imersão, entendendo todas as viagens de som e de textura, e tudo era uma coisa muito saborosa de se fazer, sabe? A gente gosta daquele som, então cada timbre de guitarra e cada beat que ele trazia era um gozo. Pela primeira vez, eu tinha tempo de fazer o que eu queria, do jeito que eu queria, no tempo certo, virou uma coisa “it’s my party and I’ll cry if I want to”, sabe? (risos) Aí foi isso, um exercício de não ter limites de criação e de tempo. E aí que eu me senti o artesão da porra, sabe? Porque é claro que tem a produção do Felipe, mas tinha uma intuição [minha] e principalmente uma viagem sonora muito prazerosa de imersão no som – aquele tom daquele timbre de teclado tinha que entrar naquela hora porque eu sabia no meu coração, o que ele fez como produtor foi pegar isso tudo e fazer como um holograma. Eu fico empolgado falando porque o processo foi todo muito divertido.

por lorena dini

MP: Sobre o repertório, ele foi sendo montado à medida que vocês exploravam essa estética, ou desenvolveram o estilo a partir das músicas que queriam gravar?

Catto: Foi uma coisa muito natural e muito sincrônica. Geralmente, quando eu gravo um disco, parece que em algum momento cai uma ficha e tudo já está ali. Eu já tinha uma relação com todas elas. Arco de Luz, eu ouvi no táxi um dia e falei “essa música é incrível, eu amo Marina e quero firmar que eu sou o cara que grava Marina Lima”. Eu nem ia fazer o disco, eu conheci o Felipe, ficou amigo, e eu chamei ele para fazer um exercício de criação no estúdio em cima da música com a Zélia [Duncan], que já estava feita. E foi a partir disso que o disco nasceu, porque ficou tão legal e a gente decidiu evoluir a ideia, de ir para um lugar com bateras bem anos 60, cheias de reverb, quero os baixos assim, quero elementos de glitch eletrônico, mas que não seja um disco modernito, que seja uma coisa de todos os tempos, que seja retrofuturista. E aí começaram as imagens, “eu quero um disco que seja Barbarella, que seja Splash – Uma Sereia em Minha Vida”, comecei a trazer figuras icônicas estéticas, como Cher, David Bowie, Freddie Mercury, os grandes cantores do rock, tipo Robert Plant. E aí o repertório nasceu nesse mesmo movimento, dessa viagem sonora, e eu decidi que o disco se chamaria CATTO, e que começaria com Como um Raio e terminaria com “eu não quero mais pouco, eu quero que você se foda”, eu já sabia disso antes, era claro. Foi uma sensação de sentar e colocar no papel uma coisa que já estava viajando na minha cabeça há muito tempo.

MP: Como é o processo de pegar a composição de alguém e se apropriar daqueles versos, de projetar sua voz nas palavras dos outros como se fossem suas?

Catto: Cara, eu acho isso uma delícia. Eu sempre compus e, em todos os meus shows desde a adolescência, sempre fui intérprete. Essa linha de repertório foi uma coisa que eu aprendi muito no trabalho da Marisa, da Cássia Eller, da própria Marina e do Caetano. A sensação que eu tenho é que eu gosto muito de cantar e gosto muito de criar paisagens e histórias, uma coisa meio cineasta. Esse disco tem uma história sendo contada, e eu nunca poderia fazer isso com outras músicas que não fossem essas. Por mais que eu tenha muitas músicas compostas que estão guardadas no baú, eu não sinto prazer em fazer um disco se não for para ser nessa viagem. Eu não tenho essa ambição, e nem me sinto confortável, de fazer aquele disco em que eu escrevo todas as músicas. Eu não sou um “cantautor”, eu sou intérprete. Essa é a minha viagem, de cantora sapatão (risos).

MP: Posso afirmar que você é primeiramente conhecido pela sua voz. Como é para você hoje se impor como um artista cujas características vão para além da interpretação vocal?

Catto: É muito legal você me perguntar isso, porque é uma grande questão da minha vida enquanto artista e enquanto pessoa. Desde criança eu sei que tenho uma voz. Ela nunca foi meu ponto fraco, sempre o ponto forte. Eu só estou aqui por causa da minha voz. O que eu sinto é que eu sempre fui ligado às artes. A voz, para mim, era o meu porto seguro e eu sabia que aquilo era um grande veículo de comunicação já quando criança. Eu gostava de desenhar, de tocar, de desenhar, de ler, então todas essas coisas mais abrangentes do universo do artista sempre foram a minha grande pira, é onde eu gasto meu tempo ainda hoje. A voz não me envaidece mais, eu cantava em eventos com meu pai quando eu tinha onze anos e minha voz já era muito escandalosa naquela época. Imagina uma criança cantando Whitney Houston – era muito bizarro, e era muito incrível (risos). Até por ser gay, por viver em um tempo em que eu tinha que minimizar tudo, meus trejeitos, minha goticidade. Eu sempre fui muito andrógino, eu andava na rua com doze anos e me chamavam de “sapatão” – por isso que eu gosto de brincar que eu sou uma “cantora sapatão”, porque me confundiam com uma garota lésbica quando eu era criança. E é foda você ter doze anos e as pessoas gritarem “sapatão” pra você na rua, cara, não é legal. Eu tive esse processo todo de contenção de muitas coisas que agora emergiram. Eu tive um resgate da minha autoestima. Fui correr, malhar, meditar, trabalhar coisas internas minhas que me diziam que eu precisava expor mais – não para provar nada para ninguém, porque eu tô realmente cagando, mas porque eu estava infeliz com meu corpo, com a minha imagem, com as minhas roupas. Não tinha cabimento eu estar sempre de camisetão me sentindo gordo, me sentindo mal – não tem problema nenhum em ser gordo, mas eu sofri muito bullying quando era criança e adolescente, eu era gordo, era bicha, afeminada, cantora, artista. E hoje, vendo essa primavera, tudo o que está acontecendo, me deu tanta vontade de estar perto de artistas que estão se expondo de uma forma tão corajosa, como que eu não vou subir naquela esteira, trazer saúde pro meu corpo, trazer loucura pra minha arte? O que aconteceu nesse disco foi que eu sempre fui um artista personagem, um artista esteta, sempre gostei de moda, mas morria de vergonha durante todos esses anos, e eu queria estar sempre discreto, escondido atrás da minha voz – porque a minha voz sim, ela salva a pátria, porque eu canto pra caralho mesmo e tenho um puta bom gosto de repertório. Mas não é só isso, e eu sempre senti muita vontade de passar essa barreira, de fazer um disco como esse, de usar uma calça de sereia em Coney Island com cabelão e jóias. Não porque eu quero ser uma mulher, não é isso, é uma questão de ser um artista, de se enfeitar, é espiritual. E essa é a real, eu sinto que, diante do mundo todo, o exemplo das pessoas que me cercam, dos artistas do meu tempo, fez com que eu me fortalecesse muito, e eu fico muito grato de ter esse momento da minha vida que é de quebra, de exposição, de mostrar para mim mesmo que eu sou capaz, que eu sou um artista sim, o que eu sempre soube. Esse é o problema, quando você fica tão petrificado com medo por causa dos traumas que você sofreu que você não consegue dar o próximo passo. E esse disco começou há muito tempo. Ele é resultado direto do Tomada, porque, apesar dele ter sido feito em só duas semanas com o Kassin, ele foi a experiência terapêutica mais impressionante que eu tive, porque ele sim foi um disco de ruptura, CATTO é a celebração disso. Quando eu fui fazer o Tomada, as pessoas só queriam que eu cantasse Garçom e Saga, tudo o que saía na imprensa era que “Filipe Catto revive a música brega”, era uma coisa muito pejorativa. Porra, não é só isso. Eu fiquei muito puto com o preconceito das pessoas, com essa ignorância. Quando fui fazer Tomada, quis só gravar compositores novos, com Kassin, que é um produtor contemporâneo, e aí sim foi uma quebra. É tudo bem pessoal e eu tô bem feliz, agora eu vou me divertir pra caralho – sexo, drogas e rock’n’roll mesmo, beijos (risos).

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