Kamasi Washington e O Culto

fotos por milena ferreira e vitor henrique guimarães/música pavê

A empreitada do Queremos! em trazer para o Brasil nomes relevantes do jazz contemporâneo tem dado bem certo. A série já trouxe nomes como Samara Joy, vencedora de cinco prêmios Grammy, Thundercat (que levou o público à loucura com a virtuosidade de sua banda), e traz ainda no mês de setembro o artista Jacob Collier e a banda Snarky Puppy. Cada qual com sua proposta, com sua própria abordagem sobre o gênero. Foi assim também no último dia 04, quando Kamasi Washington se apresentou no Circo Voador.

Quem abriu o show foi o carioca Jonathan Ferr, que trouxe seu repertório de três álbuns já lançados, encaminhando a um quarto, que sai ainda neste mês. O show contou com a participação especial de Jéfferson Plácido e conseguiu “acender o sol interior” do público com boas performances de toda a banda.

Daí, veio Kamasi. Uma figura xamânica, imponente. Seus companheiros de banda eram o descolado baterista Tony Austin, o tecladista Cameron Graves (que parecia ter saído de uma mistura liquidificada de Massacration com Prince), o trompetista e ocasional MC Dontae Winslow (com sua calça animal print de onça em brilhantes), o contrabaixista Miles Mosley (preparado pra combate a qualquer momento), a vocalista Patricia Quinn (uma presença angelical na lateral do palco) e o flautista e soprano-saxofonista ancião Rickey Washington (mentor e orgulhoso pai de Kamasi).

A proposta de Kamasi e sua banda é espiritual. É algo quase religioso. “Transcendental” também é uma palavra facilmente usável – eu a ouvi logo depois do show quando minha noiva, ainda sem entender o que tinha acontecido, tentava definir o evento ainda com as palavras enroladas e atordoadas saindo da boca.

O repertório teve um foco maior nos últimos lançamentos (Fearless Movement, 2024, e a faixa Vortex, tema de abertura da série/anime Lazarus, 2025), mas também permitiu viagens a tempos mais passados de seu trabalho. E, como de costume, todos os integrantes tiveram seu momento de brilhar. Porque, vejam bem, uma das características dessa proposta espiritual do jazz é explorar os limites um som, uma nota, uma melodia; é se perguntar “até onde isso aqui pode ir?” e tentar responder. Experimentar o instrumento – e instrumentalizar o corpo com este fim – emana um tipo de energia que captura qualquer um que esteja presente, que esteja testemunhando o que quer que nomeie aquilo ali no palco. Eu nomeei de culto, e uma amiga bem completou ao dizer que ali todos éramos irmãos. 

Em Lesanu, Cameron tirou do teclado uma das maiores taxas de notas por segundo que o Circo Voador viu nos últimos tempos – e sem ser em prol de um virtuosismo tecnicista, vaidoso, pois havia muita emoção ali. Dontae e Patrice Quinn, quando não estavam dançando juntos, brilhavam Asha The First, belamente introduzida por Kamasi como “as primeiras notas que minha filha de 4 anos tocou no piano, como se realmente estivesse dominando o instrumento”. Rickey flauteou carisma e talento em Vi Sol Vi Lua, arrancando aplausos demorados – logo depois, enquanto Kamasi solava, Rickey sacou o telefone e começou a gravar o filho e o público com um satisfeito e grato sorriso no rosto; em KO, Miles e Tony levaram o público a um êxtase alucinante e catártico.

Mas, talvez uma das coisas mais fascinantes de tudo tenha sido uma sintonia específica e silenciosa de Kamasi. Porque foram vários os momentos em que era muito claro para o público que estávamos vendo Deus em Kamasi, e que aquele era seu culto. Mas não era raro perceber que Kamasi olhava da mesma forma quando algum de seus companheiros entrava no próprio transe. Ele olhava com atenção e ria, ou então fechava os olhos e se deixava levar pelas notas. Uma força mansa e plena de admiração mútua, que dinamizava uma energia outra que vazava para o público. Talentos diferenciados. Forças da natureza. De qualquer dimensão da natureza.

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