Pelados e as Experimentações em “Contato”

Pelados celebra a coletividade e a experimentação musical em seu novo álbum, Contato. O terceiro disco da banda trata de sentimentos e eventos universais da vida no planeta Terra. As faixas são uma mensagem para ser transmitida ao espaço em pop, rock e várias misturas musicais.
Em entrevista para o Música Pavê, Helena Calil (baixista) e Lauiz (tecladista) contam sobre a concepção do disco e o estilo criativo da banda. “Nós somos só cinco pessoas fazendo música juntos. Ainda bem que estamos fazendo isso juntos, porque eu nunca conseguiria pôr a cara à tapa assim sozinha”, comenta Helena.
Música Pavê: Contato é seu terceiro álbum de estúdio. O disco teve o papel de ser uma sequência ou foi algo mais disruptivo na trajetória da banda?
Lauiz: Eu acho que foi uma sequência.
Helena Calil: Eu acho que foi uma sequência, mas também teve algumas quebras. Em relação a Foi Mal, o disco anterior, teve uma mudança de processo. A espinha dorsal da banda é essa pira de se autoproduzir… tanto que tivemos uma ruptura maior de Sozinhos para Foi Mal, do que de Foi Mal para Contato.
Lauiz: Em Sozinhos, tivemos a nossa primeira experiência de estúdio. Então, quando chegou a hora de fazer Foi Mal, queríamos fazer algo diferente. O que mais gostamos de Foi Mal foi a novidade de se gravar. Esse processo de gravação deu super certo e sentimos que as composições ficaram melhores. Por isso, em Contato, mantivemos essa logística e, no geral, os mesmos equipamentos, mas as gravações foram feitas de uma maneira mais profissional. Claro que, ao longo do tempo, nós vamos trocando os aparelhos do estúdio, mas a nossa prática é mais: “vamos criar com o que temos”. Algo que é engraçado é que o fato de Foi Mal ter sido tão disruptivo, abriu as portas para que Contato fosse uma sequência e, ao mesmo tempo, fosse diferente. Se você for pensar, é até uma questão meio paradoxal, ele teve que ser diferente para poder dar essa continuidade.
MP: Entrando nessa questão dos paradoxos, a palavra “contato” tem dois sentidos principais: um mais trivial sobre o relacionamento entre pessoas e outro mais místico, de um encontro extraterrestre. Contato é um disco sobre trazer o extraordinário para o que é trivial ou o trivial para o que é extraordinário?
Helena: Caraca… (risos). Eu achei uma ótima pergunta
Lauiz: Eu acho que… é uma pergunta que é meio pegadinha (risos). Acho que é trazer o extraordinário para o trivial, Pelados é mais sobre isso. Tem um lado do disco que somos nós mandando uma mensagem para o espaço, e outro somos nós do espaço olhando a Terra. Tem essas duas mensagens.
Helena: São os lados A e B. Vicente (guitarrista) teve até uma ideia, quando estávamos montando a ordem do disco, de chamar boy meets girl de boy meets girl (o planeta Terra visto da janela) porque ele acha que esse é o momento em que a nave está decolando. Voltando na questão da lírica, acho que é isso mesmo de trazer o extraordinário para o trivial. É também quebrar o que é esperado, até mesmo nos fonogramas. É trazer umas quebras interessantes e tentar jogar com o próprio limite de nós mesmos nos entendendo. Somos cinco pessoas que têm referências parecidas e, ao mesmo tempo, têm referências completamente diferentes. Batemos muito a cabeça uns com os outros por cada um querer defender sua ideia para cada música. O fonograma que mais mostra isso é star trek primeiro Contato que é uma música composta só de samples do próprio disco, uma auto-referência. O principal motivo para essa música estar no álbum é fazer uma preparação para a última música. Vicente teve a ideia de pegar uma notinha que está escondida pelo álbum todo, no mesmo tom, e, a cada 9 segundos, desafinar a nota até chegar no tom da última música que é instruções para descongelar o gilberto gil no espaço. Então, ficamos pensando em como trazer isso, como transformar o fonograma em algo diferente… é trazer o extraordinário pro trivial mesmo.
MP: Já que você entrou nessa questão das referências, vamos falar um pouco sobre a parte criativa. O disco tem várias canções com títulos e temáticas diferentes, como enel e planeta oxxo. Como foi o processo de criação do álbum? De onde surgiram essas ideias?
Helena: Lauiz pode começar faland,o porque ele é o dono da primeira composição do disco, modrić. Ela foi composta em 2022, arranjada em 2023 e é a música mais “bandal” do disco.
Lauiz: Na verdade, é meio errado isso, porque a maioria das músicas não fizemos como modrić. Foi um processo super normal ,mas que, para nós, raramente acontece: fiz a demo e fomos formando o arranjo as vezes que tocávamos a música ao vivo. O que nós costumamos fazer é colocar nossas ideias de bases e letras em um drive da banda e, quando alguém quer fazer uma música, olhamos essas ideias e vamos juntando ou criando coisas novas a partir delas. Inclusive, é por isso que as nossas composições ficam com muitos autores… O que é bom, mas, durante o processo, acaba criando um clima um pouco mais tenso, porque são muitas pessoas lutando por suas ideias. Queremos muito provar que as nossas ideias valem a pena.
Helena: Mas eu gosto disso. É muito curioso que, olhando a ficha técnica, as composições são de muitos autores, só que quase nunca elas são compostas com essas pessoas juntas. Um exemplo legal disso é estranho efeito. Estávamos arranjando os pelados sabem demais e eu falei: “Ah, eu estou ouvindo muito The Kinks. Tem essa música The Strange Effect que eu queria trazer de referência para o disco”, e eles entraram na pira de samplear The Kinks, mas a banda não tinha dinheiro para esse sample, então ficamos pensando em como fazer isso. Na criação de Estranho efeito, eu peguei a bateria e a melodia de uma demo do Théo (baterista) de 2020, criei mais uma melodia e juntei com a progressão de acordes e a melodia e The Strange Effect, do The Kinks, convertidas de menor para maior. Depois, eu ainda mandei para Manu (vocalista) e nós criamos a letra. Ou seja, a música acabou com três participações muito loucas na criação. É uma grande colagem. É interessante falar que tinham marcado duas semanas de junho, do ano passado, para gravarmos, e em março a única música pronta era modrić, então corremos muito para fazer as composições… foi bom ter uma data.

MP: No disco, percebemos vários efeitos, loops e synths. Como foi o processo de experimentação sonora na construção das músicas?
Lauiz: Nós queríamos digerir as coisas experimentais que fazem parte das nossas referências e transformar em pop. Eu acho que essa é uma parte do dever do pop, e a tendência é criar um pop mais estranho (risos). Para nós, é muito importante fazer isso, então ficamos procurando uma maneira de cada arranjo ser da própria música e, principalmente, do próprio fonograma. Depois, isso vira um quebra-cabeça no “ao vivo” (risos), mas eu acho importante ter um timbre que serve especificamente a canção e ter elementos que, à primeira vista, não sejam musicais, mas que agregam ao arranjo. As pessoas que mais admiramos fazem isso e, como esse é o disco que queremos mandar para o espaço, temos que falar dessas pessoas. O disco tem um pouquinho de Brian Eno, de David Bowie, de Kim Gordon, e outras referências brasileiras também. Quando eu vi o que a galera do Mundo Video estava fazendo no fim do ano passado e até outras bandas de amigos, eu falei com a banda que não poderíamos ficar para trás desse movimento, pode-se dizer, eletrônico. Se bem que, agora, a música eletrônica já está meio velha, né (risos)? É uma coisa mais atual que traz bastante sample. Uma coisa que também me deixa feliz é que as músicas não soam iguais umas às outras, e isso serve muito bem à construção do disco.
Helena: Uma coisa que Lauiz é muito bom em fazer, porque ele é engenheiro de som, é tentar colocar todas as ideias juntas. Além de ser o poeta da banda, ele é uma ferramenta essencial para equilibrar essas cinco pessoas tentando emplacar a própria ideia. Se alguém tem um timbre na cabeça para uma música, esse timbre será procurado. Por exemplo, para enel, queríamos um timbre bem estalado e crocante… aí Vicente e Lauiz disseram: “Temos uma mesa muito merda que vai criar esse efeito”. Então, gravamos a música e [ela] passou por essa mesa bem ruim com a saturação alta junto da maquininha de sujeira… Qual é o nome certo da maquininha de sujeira (risos)?
Lauiz: Meus pais tinham umas caixas de som bem antigas, da década de 1980, com um amplificador pequenininho. Essas caixas não são para gravar música, mas, se você pega um sinal e passa por elas, ele soa muito ruim depois (risos), mas dá uma personalidade. Ficamos tentando trazer esses detalhes diferentes. Também tem uma mensagem de que você quer que seu som soe da hora, isso é o mais importante. Eu acho que, no Brasil, temis um complexo eterno de que o equipamento mais caro vai fazer a melhor música. Aí, você vai ver os melhores discos da história… ninguém sentou e falou: “Eu vou comprar o equipamento mais caro para fazer a melhor música”. Ninguém precisa disso. Hoje em dia, o mercado musical está completamente saturado de coisas desnecessárias, então vale mais fazer com o que você tem. Fora que, em um cenário em que se tem tudo e que se quer gastar um milhão de reais para compor um disco, acho que não conseguiria compor nada.
Helena: Uma ótima forma de resumir isso foi quando Théo gravou a bateria nos primeiros dois dias de gravação. Ele pegou uma caixa que estava na casa do Lauiz, com a esteira estourada, e virou a esteira pra cima na hora de tocar boy meets girl. Por isso que é um som diferente. Ele também usou o meu tamborim e ficou experimentando com os chocalhos de temperos que temos. Acaba sendo um laboratório. O home studio faz experimentarmos com o que temos.
MP: É muito legal quando os músicos realmente se propõem a experimentar em cima das composições e isso tem um papel importante no processo criativo. Isso leva a uma pergunta mais individual: qual música vocês mais gostaram de criar?
Lauiz: Isso vai de pessoa para pessoa mesmo. Eu quero ouvir a Helena.
Helena: Nossa! Eu tenho uma memória muito gostosa de music is supposed to be fun. Nós tínhamos uma ideia inicial, que veio do Vicente, de uma música de dois acordes e estávamos tentando entender como tornar cada ciclo de acordes interessante. Foi a música que mais foi criada conosco tocando. Nos encontramos várias vezes antes de junho para montar os projetos das músicas e music era para ser mais “bandal”, mas isso não aconteceu. Acabamos usando uma base pronta do Gambitt, um órgão brasileiro do Lauiz, para montar a estrutura da música. Depois, fizemos várias camadas. Todos trouxeram tudo que tinham em casa para a gravação de Contato. Eu tinha umas castanholas que Théo insistiu em colocar. Depois, cada um fez uma linha de synth e a música foi ganhando forma. Já na primeira vez que montamos, a música ficou super dançante e eu fiquei pensando como ela conseguiu ficar com a cara de todos da banda. Eu tenho um afeto de lembrar da montagem dessa faixa. Foi gostoso, não nos “bicamos” tanto quanto em outras do disco. E você, Lauiz, qual é a sua?
Lauiz: Eu não sei, é muito difícil. Acho que tem uma coisa meio mágica quando esses processos são bem coletivos. Você trazer uma ideia para a banda e ver essa ideia mudando, umas vezes é um pesadelo e outras é um sonho. Esse sentimento dá vontade de imediatamente fazer outro disco, porque eu quero ver as pessoas mexendo com a minha música. Eu adoro! Isso aconteceu com modrić, com os pelados sabem demais, com whatsapp 2… e eu lembro de ter um sentimento de: “Nossa! Que ideias boas que vocês tiveram!”, e isso me fez sentir muito melhor sobre essas músicas que eu fiz. Acho que a coletividade funcionou muito bem nesse disco.
Helena: Em enel, isso também ficou muito transparente. Lauiz teve uma ideia e sem explicar muito bem falou para Manu que ela seria responsável por gravar a música, e disse para Vicente que eles dois ficariam comentando a música em outro microfone. Então, enquanto Manu cantava a letra, eles ficaram conversando no fundo e xingando a música.
Lauiz: E, no fim, ficou legal (risos).
Helena: Foi muito espontâneo.
MP: O disco tem músicas em inglês e em português como, por exemplo, estranho efeito. Tem alguma razão específica para isso ou foi uma questão estilística?
Helena: Nós não tínhamos essa ideia de propositalmente colocar músicas em inglês no disco. A primeira música composta em inglês foi boy meets girl, uma demo do Vicente de 2020. É legal ficar brincando com a lírica em inglês, é outro tipo de som. No verso de estranho efeito, rachei o bico quando Manu cantou “electric pulsation”. É tão o Brasil falando inglês, sabe?
Lauiz: Eu gosto dessa vibe paulista falando inglês misturado com português.
Helena: estranho efeito também tem uma referência a The Kinks, quando Manu fala “strange effect on me”. Como já ia ter essa referência, ela começou a brincar mais com essa questão da língua de trazer um inglês para o brasileiro.
Lauiz: Acho que também tem o lado metafórico do disco… Como esse é o álbum que vamos mandar para o espaço, isso remete àquelas antenas americanas que ficam mandando sinal para todos os planetas da galáxia para ver se alguém responde. E estamos jogando esse disco nas redes sociais, no Spotify, no Whatsapp… meio “por favor, escute o disco”. Ter essas letras em inglês é uma poesia cômica porque, teoricamente, as letras em inglês facilitam a compreensão do disco para um número muito maior de pessoas no mundo. Quando começamos o albúm, não tínhamos ideia que íamos acabar com tantas partes em inglês.
Helena: O disco também tem vários samples em inglês. Vicente e Lauiz ficaram uma tarde inteira ouvindo os vinis com as comunicações do Apollo 11 e escolheram vários pedaços para colocar distorcidos nas faixas.
MP: Para a última pergunta, vou aproveitar o seu gancho do Apollo 11 e o sinal enviado para o universo. Se Contato fosse encontrado pelos alienígenas, qual seria a reação que vocês esperariam deles?
Helena: Se eles curtirem, (risos) espero que eles dancem.
Lauiz: Acho que eles iriam odiar. Não sei nem se eles gostam de música. Imagina… eles nem devem ter ouvido (risos). Espero que o disco não seja o motivo pelo qual eles decidam aniquilar a raça humana.
Helena: Como se dissessem: “Isso foi a gota d’água!”.
Lauiz: Brincadeiras à parte, tem um lado cafona em querer passar uma mensagem para a eternidade. A mensagem importa mais para quem está mandando do que pra quem vai ouvir. É uma coisa meio desesperada tentar catalogar todos esses sentimentos e referências quando, provavelmente, os alienígenas não vão entender nada.