Muntchako: “A África e o Nordeste têm tudo a ver!”
Fela Kuti e Luiz Gonzaga sempre estiveram como duas das principais influências do trio brasiliense Muntchako, formado por Samuel Mota (guitarra, synths, programações e produção musical), Rodrigo Barata (bateria e beats) e Macaxeira Acioli (samples, beats e percussão). O que faltava para esses dois grandes ícones se unirem nas obras da banda era apenas o nome: Fela dum Gonzaga.
E foi realmente daí que surgiu esse novo projeto: “justamente da sacada desse nome, que também traz todo um conceito”, explica Samuel. Em Fela dum Gonzaga, Muntchako mexeu nos baús de Fela e Gonzagão, recortou, colou e criou em cima. E, assim como os dois grandes nomes da música mundial, os três batem no peito para reivindicar o seu som afrolatino, no primeiro single, Waka Morena, lançado hoje (15), em que misturam a Nigéria, o Brasil, afrobeat, highlife, baião, trap e um tiquinho de carimbó. A faixa incorpora Waka Waka (umas das primeiras gravações de Fela Kuti) mesclada com Vem Morena (clássico trabalho de Gonzaga).
E é nessa pegada e nessa potência que o trio indica como vão ser os próximos lançamentos: os singles Pagode Russo e Colonial Mentality. Essas três músicas vão integrar o disco Fela dum Gonzaga, previsto para ser lançado em 2023.
Para “apurar o caldo” e trazer ainda mais potência às obras, o trio convidou dois outros irmãos de música: Juninho Ferreira (sanfona) e Esdras Nogueira (sax barítono). “Os meninos chegaram com dois pés para somar e foi foda misturar essas bases eletrônicas com orgânico e ter ali o resulengo da sanfona, que tu já vai mexendo o ombrinho, e o peso do sax de Esdras, aquele barítono pesadão nos riffs”, relata o percussionista.
A banda está se apresentando com o show Fela dum Gonzaga desde março e já fez alguns shows em Brasília e ainda vão passar por São Paulo, Belém, Belo Horizonte, Recife, João Pessoa e Natal. As datas serão anunciadas em breve.
Em entrevista ao Música Pavê, Samuel (Samuca) e Macaxeira contaram sobre a ideia do projeto, os pontos de encontro entre esses dois grandes nomes da música mundial, o single Waka Morena, o “Muntchako 4.0”, que inicia em 2023, e outros assuntos.
Música Pavê: Como surgiu a ideia de misturar Fela Kuti e Luiz Gonzaga?
Samuca: Como quase tudo que aconteceu no processo criativo do Muntchako, sempre existiu uma questão inusitada, uma certa brincadeira despretensiosa, que a gente caiu para dentro, vestiu a camisa e levou a sério, no sentido de se dedicar e transformar em uma obra, em uma música. Isso aconteceu muito ao longo da nossa história, do nosso processo da banda, e, não diferente, Fela dum Gonzaga surgiu justamente da sacada desse nome, que é um nome que também traz todo um conceito. Foi o Barata que teve essa ideia e foi uma ideia que casou muito com o que Muntchako pulsa, com o que tem a ver com a nossa história, com nossa pesquisa sonora, com o que a gente vibra musicalmente. A gente, inclusive, iniciou Muntchako pensando em ser um projeto de estudo de afrobeat, mas, ao longo das primeiras levas musicais, a gente foi abrindo para outros cantos, para a música latina, para o funk carioca, a música paraense e várias outras misturas que foram acontecendo. Porém, Fela dum Gonzaga sintetiza muito esse nosso pulsar, esse nosso desejo de pegar essas músicas que tem uma coisa com a terra, com a raiz, no sentido da batida, daquela energia que vem de dentro e que acaba movendo a pista também. E juntar a África e o Nordeste tem tudo a ver, então.
MP: O que Fela Kuti, com o afrobeat, e Luiz Gonzaga, com o baião, têm em comum?
Macaxeira: O pertencimento. Essa coisa de bater no peito, ter a voz do seu povo. Eles foram entidades que quebraram barreiras, paradigmas, brigaram com gravadoras e foram pessoas de pulso muito forte, de personalidade forte. Tanto Luiz Gonzaga com suas questões, de todo sofrimento do povo nordestino, a seca, ele botou seu gibão e foi para a “cidade grande”, botar o seu gogó e cantar sua terra, assim como Fela. Ele voltou de Londres e fez: “não, eu preciso voltar para a minha terra, porque se eu não fizer isso, quem vai fazer?” Então, os dois têm essa energia do pertencimento, de bater no peito e de estufar o peito e vamos, vamos nessa, a gente é isso e eu vou cantar minha vida, para minha vida ser reconhecida. Eles têm muito essa fortaleza e esse embate com a mídia, de quebra mesmo.
MP: E Waka Morena, como surgiu e por que escolheram ela como apresentação do projeto Fela dum Gonzaga?
Macaxeira: Quando a gente começou a pesquisar o repertório e decidir as músicas, eu peguei uma caderneta em branco e fui escutar tudo que tinha de Gonzaga e tudo que tinha de Fela. É música demais, homi, é música pra tacar com pau. Muita coisa boa ficou para o lado de fora. A gente teve que fechar os olhos, jogar na parede e o papel que ficasse estatelado a gente escolhia (risos). Waka Waka é uma das primeiras gravações de Fela Kuti, é uma música que tem pouco registro, e quando eu puxei e vi, falei: “Rapaz, a gente tem que gravar essa música”. Ela está no degradê, na cúspide do highlife e do afrobeat, tem um suingue gostoso e a gente se identificou muito com ela logo de cara. E Vem Morena… quem nunca arrastou um chinelo e cheirou um cangote e chegou em casa e ficou pensando no sorriso da morena e ficou escutando: “Vem morena, pros meus braços, vem morena, vem dançar, quero ver tu requebrar”. Eita, é uma música eternizada pelo gogó e pela sanfona de Gonzagão. Então, a gente decidiu misturar as duas. Waka Waka, por um lado, foi muito bom, porque ela não tem nenhum registro aqui no Brasil, então os direitos autorais veio meio que de forma aberta, a gente pode gravar. E quando a gente decidiu produzir e misturar essas duas grandes entidades, a gente pensou: “A gente vai caminhar mais para esse lado, mas a gente não vai fazer nem afrobeat nem baião”, embora os dois estejam ali presentes, você sente a energia deles. A gente quis realmente misturar, bagunçar o negócio, tanto é que Waka Morena é uma das músicas mais fora da caixinha que a gente tem. Ela chega a causar estranheza, algumas pessoas acham ela muito underground, porque ela tem a energia do trap também. Mas, enfim, a gente decidiu soltar ela justamente para impactar mesmo, ninguém aqui tá para ficar explicando gíria, né? Ela tem um balançado também, na última parte ela entra na energia do carimbó, eu tinha acabado de chegar do Pará, tinha ido fazer umas pesquisas lá, dos instrumentos, da cultura popular, das mestras de carimbó, então, comprei um curimbó com um som gostoso.
MP: Como vocês definem essa mistura de baião com afrobeat, de Fela com Gonzaga, que vocês estão fazendo? O que é o resultado dessa mistura?
Samuca: Essa junção é uma fusão de forças. Fala de música africana e música brasileira, pegando na raiz. O afrobeat – no caso, um estilo musical nigeriano que se universalizou, mesclou com a cena mundial e muita gente passou a incrementar o afrobeat e o modo de pensar a musicalidade mântrica que ele tem – foi incorporado em vários sons, principalmente na Europa. Até hoje existe muita banda de afrobeat lá. A música brasileira bebeu muito de suas origens africanas. Historicamente, tem muita coisa, até do próprio baião e suas origens que vão bater lá na África. Então, quando a gente fala dessa junção, é óbvio que tem suas peculiaridades, as suas sonoridades distintas, mas é algo que, para nós, além de termos tido um processo criativo muito prazeroso e muito interessante, sempre mexendo no baú de Seu Lula e de Fela Kuti com muito respeito, buscando honrar esses dois grandes ícones, dois grandes reis. Essa junção, na verdade, a gente sempre também gosta de misturar com a nossa pegada, que tem a ver com o inusitado, com misturar com algum outro ritmo, algum elemento outro inesperado, a questão da surpresa, do irreverente. Tem música de Luiz Gonzaga, por exemplo, que a gente está fazendo puxando uma levada de funk carioca. Tem música de Fela Kuti que a gente mistura com reggae roots e a gente vai fazendo essas mesclas.
MP: Em seu primeiro disco, vocês tiveram a produção de alguém de “fora”, alguém que não era integrante do trio, Curumin. Agora, em Fela dum Gonzaga, a produção está sendo assinada por Samuca. Por que decidiram por alguém de “dentro” como produtor? Como tem sido?
Macaxeira: Cara, sou suspeito de falar de Samuquinha, acredito que Barata também. Certamente, Samuca está entre os principais produtores musicais de Brasília, hoje. É um cabra rochedo, que tem uma sensibilidade musical muito aguçada e a gente tem uma afinidade muito boa dentro de estúdio, ele cuida do grosso e do acabamento também, a gente vem só para quizumbar ali. Tem muito dedo da gente, é claro, mas ele é o cara que bota a massa e sobe o alicerce, vai rebocando a parede e a gente chega só com um quadrozinho, assim: “Ei, bora botar esse quadro aqui?” (risos). Samuca assina a co-produção do primeiro disco, assinada por Curumin. Ele assina a co-produção junto com Muntchako. Na verdade, a maioria das nossas músicas têm a produção de Samuel Mota mais Muntchako. Ele é um cara que pesquisou muito sobre as melodias, a energia mântrica do afrobeat. Samuca consegue levantar uma música muito rápido, ele tem criatividade para dar e vender. Ele também assina a mixagem, em um ano difícil, em que a gente teve que produzir com o que tem, mas foi Samuquinha que fez tudo: bateu a massa, subiu os alicerces, rebocou parede e a gente só chegou e botou o armador de rede e os quadros.
Samuca: Foi algo muito desafiador e muito empolgante ao mesmo tempo, prazeroso, porque os dois têm muito material incrível. Luiz Gonzaga tem muita coisa gravada que a gente não conhece, dentro da nossa superficialidade do conhecimento da obra dele, assim como Fela Kuti. Então, a primeira coisa que acontece é você desbravar a obra gigantesca de dois gênios, de dois mestres. Uma das primeiras coisas que bate é a reverência e o respeito que a gente quer ter com a obra deles. A gente quer trazer, ao mesmo tempo, algo diferente, algo inusitado e mostrar que, sim, África e Nordeste tem muita a ver, a musicalidade é muito possível, de uma maneira fluida, de uma maneira muito interessante. Em alguns momentos, eu fui pré-produzindo sozinho, em casa, porque o grosso do trabalho se deu no momento de lockdown, de super isolamento, então, muita coisa eu ia fazendo sozinho, ia mandando para o pessoal e o pessoal ia opinando. Depois, a gente começou a ter uns encontros na casa do Maca (Macaxeira), em um momento em que a gente estava ainda bem restritos de fazer encontros, se encontrava de máscara e aquela coisa toda. Ficava mais eu e o Maca, o Barata também colava às vezes. Depois, teve a produção do show e o resultado desse show é o que a gente está gravando em estúdio, com alguns acréscimos, claro, mas é essencialmente o que a gente produziu para o show. E para a gente foi um exercício que, se deixasse, surgiria um álbum Fela dum Gonzaga 2 facilmente, porque, realmente tem muito pano pra manga o material desses dois mestres. E para além, de tudo, existiram várias estratégias para se trabalhar o conceito do projeto, em alguns casos foram misturas mais explícitas, em que pegamos riffs, temas melódicos de um dos dois, e colocamos na base musical da música do outro. Em outros momentos, foi através das citações sonoras, temas melódicos da sanfona, característicos em músicas do Luiz Gonzaga, que a gente transcreveu para o sax, para representar a sonoridade de Fela Kuti. Especialmente, isso funcionou muito quando também fizemos o contrário, quando foi a sanfona fazendo temas de Fela Kuti nas músicas dele, isso deu uma vibe incrível.
MP: Vocês já têm previsão de lançamento para o disco? Vão vir alguns outros singles antes do disco? Que novidades podem adiantar?
Macaxeira: Agora, a gente segue em turnê, com show previsto em São Paulo, Belém, Belo Horizonte, Recife, João Pessoa, Natal e logo logo a gente vai soltar as datas. Quanto ao lançamento do disco, a gente está aguardando alguns editais, nós demos entradas em alguns editais para prensar o vinil, estamos aguardando respostas de alguns selos e certamente esse vinil vai ficar para 2023. Devido à correria de vida, algumas escolhas, Barata talvez deixe Muntchako em 2023, e eu e o Samuca já chegamos a nos reunir e ensaiar só os dois, então tudo indica que a gente vai para o “Muntchako 4.0”, que vai ser apenas os dois no palco. A gente está nesse momento de transição, da gente se entender, entender como vai ser isso. No início, a gente ficou um pouco perdido, tentando entender como iria ser, Barata é um grande brother e está com a gente desde o início, é um cara que faz a correria da produção, dos contatos que ele tem, mas enfim, a gente entende que ciclos se abrem e ciclos se fecham, então tudo indica que a gente siga só os dois no palco. A gente perde um pouco o orgânico do palco, dessa coisa que a bateria traz, o chimbal e os pratos, mas em compensação a gente traz mais o peso do eletrônico, da batida segura, e a gente está muito feliz com o que a gente conseguiu criar em estúdio. Então, a gente está centrando a energia no Fela dum Gonzaga, vai concluir esse projeto, vai deixar ele aberto, não vamos fechar as portas, mas em 2023 a gente vem com essa nova roupagem do “Muntchako 4.0”, que são só os dois no palco e vai vir com a energia mais eletrônica, mais pista, e a gente está feliz também, porque são fases e ciclos. E claro, a gente vai manter Barata do lado ali, é irmão, é brother. E é isso, na estrada algumas pessoas vão ficando no ponto de ônibus, algumas pessoas vão seguindo e a gente segue viagem.
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