Maré de “Uma Onda em Pedaços” Traz Passado de Cícero que se Quebra no Agora

foto por lucas vaz

Como se define um disco brasileiro? Talvez não apenas pela mistura de gêneros, nem pelo sotaque ou pelo violão bem marcado – mas pela forma como ele absorve as memórias e transforma tudo isso em música viva. Cinco anos após o lançamento de seu último trabalho de inéditas, Cícero retorna com Uma Onda em Pedaços, disco que, antes de querer explicar alguma coisa, parece interessado em sentir. O artista carioca se mostra menos preocupado em provar algo e mais comprometido com a fluidez do processo criativo. Há um desprendimento evidente, como quem já encontrou seu lugar e agora deseja apenas habitá-lo com liberdade.

É um disco com gingado, mas sem pressa. Traz brasilidade sem caricatura, e expande as referências sem se curvar a nenhuma. Cícero continua sendo um poeta das entrelinhas, mas, desta vez, há algo em foco: o tempo. Não o tempo como cronologia, mas como matéria sensível que molda as palavras. É um trabalho feito de pausas e ondas sonoras que não precisam, necessariamente, se fechar.

Em entrevista ao Música Pavê, o músico faz uma viagem sobre os anos em que viveu o analógico e como o passado reflete o seu presente musical. Um disco brasileiro, enfim, porque pulsa.

Música Pavê: Uma Onda em Pedaços é um nome muito potente. Por que essa escolha? Seria uma metáfora para viver um turbilhão de coisas, mas que se descarregam em partes?

Cícero: É bem isso. Essa ideia de que a vida é uma onda em pedaços, uma sucessão de coisas acontecendo ininterruptamente, por isso, uma onda. São várias coisas acontecendo ao mesmo tempo, em vários pontos diferentes. E eu achei que não só a vida, mas um relacionamento, ou um álbum, tudo isso é uma onda em pedaços. É uma forma de enxergar o todo.

MP: E como foi pra você viver essa construção do álbum? Já que você falou que ela aconteceu em partes, o que mais te marcou nesse processo?

Cícero: O tempo. O tempo que levei entre o meu último álbum e esse foi o maior que já fiquei sem gravar na vida. Comecei a gravar no ensino médio, com 17 anos, e fui lançando de dois em dois anos até a pandemia, quando houve uma reflexão muito grande na minha vida. Fiquei cinco anos sem lançar, então acabaram ficando muitos pedaços de vida, de fases diferentes, representadas no mesmo álbum. Como os outros álbuns vinham sempre ano sim, ano não, havia uma linearidade, um trajeto mais organizado. Esse ficou com um espaço muito grande e muita coisa aconteceu. O álbum acabou com essa cara de cacos de anos diferentes, que se organizam nessa forma de ser uma onda única, que é a vida de uma pessoa. Então, acho que o grande lance foi esse: o tempo.

MP: Estava justamente pensando nesse intervalo em que você ficou sem gravar. Você sente que esse período mudou, de alguma forma, a maneira como você compõe suas músicas?

Cícero: Não sei se mudou a forma como eu componho, mas mudou a minha cabeça no geral. E isso acaba refletindo na forma como eu componho também. Foram muitas mudanças de 360 graus, sabe? Então, acabou que o disco também mudou. Mas, por outro lado, é a mesma pessoa fazendo. Acho que também tem muita similaridade. É um disco que trata bem sobre o tempo passando. Acho que esse é o foco da questão.

MP: Com certeza. Dá pra perceber bastante a presença do tempo – do passado, do futuro, do presente – em tudo que você trabalhou nesse disco. E o que eu notei também é que ele tem um certo gingado, uma leveza, que talvez a gente não associe imediatamente aos seus trabalhos anteriores. Você também consegue diferenciar esse álbum dos outros em termos gerais?

Cícero: Eu acho que é a continuação da resposta anterior. Como eu mudei muito, não só pelo que aconteceu nos últimos cinco anos, mas também pela idade. Isso influencia bastante. Eu vou fazer 40 agora, e comecei a gravar discos com 17. Então, o temperamento vai se adaptando, as lentes mudam, a gente redimensiona problemas e soluções. Acho que a leveza desse disco vem mais do ponto de vista sobre as circunstâncias do que, tecnicamente, do arranjo ou do som. Claro, esses aspectos também me interessam muito – fazer arranjo, gravar, mexer com o som –, mas o processo de fazer disco foi ficando mais leve pra mim com o tempo. Quando você tem 20 anos, sente que precisa provar muita coisa pro mundo. Tudo é muito intenso, muito na carne. E não que esse disco não seja, mas é mais como uma acupuntura do que uma quiropraxia. Estou sendo mais pontual nas coisas que quero trabalhar, em vez de fazer um carnaval emocional. Canções de Apartamento é o disco de um cara de 20 e poucos anos lidando com aquele caos emocional, hormonal, existencial. É muito angustiado, eufórico, cheio de projeção. E essa é a graça dele. Já Uma Onda em Pedaços tem um gingado em relação às circunstâncias. Provavelmente, quando eu fizer um disco aos 60, ele vai ter outro temperamento. Acho que minha função vivo é produzir. E o que eu vou produzir, não tenho tanto controle. A vida que eu vivo vai criando o temperamento dos álbuns. O que tento é me manter vivo – acima de tudo – e criativo. Nunca deixar que a vida atrapalhe a minha criatividade. Eu nasci um ser criativo, como todo mundo. Toda criança é criativa. Mas, com o tempo, quando a gente vai ficando jovem, adulto, velho, vai diluindo essa pulsão criativa. O que tento fazer é proteger isso com decisões, às vezes mercadológicas ou comerciais. Como me manter mais na minha, não me superexpor, não entrar demais no jogo do mercado, da publicidade, das turnês, dos números, dos plays. Porque isso, às vezes, me esvazia como ser criativo. Começo a ficar muito burocrata, muito cerebral e criatividade, pra mim, não é cerebral. É intuitiva. Esse disco fala disso na primeira e na última música: sobre intuição. Sobre organizar as coisas mais pelas sensações do que pelos planos. E eu tô tentando isso. Esse disco foi mais organizado pelas sensações do que pelos planos. E agora estou realizando o que ele vai me trazer de vida. O que eu vou viver por causa desse disco, sabe?

MP: E com tantos anos de experiência na música, agora que você falou sobre preservar a criatividade, queria saber: como você enxerga os desafios atuais para manter esse tipo de produção, esse impulso criativo, com tantas pressões do mercado? O que você identifica hoje como as principais lacunas para conseguir fazer o seu trabalho do jeito que idealiza?

Cícero: Hoje em dia, isso não me atrapalha. Mas eu consigo ver que a nova geração está muito frita, porque a tecnologia está sendo muito imperativa na vida dessas pessoas. Por exemplo, eu não ligo de não ter muitos plays, muitas visualizações, muitos seguidores. Isso realmente não mexe com o meu emocional. Desde que eu possa pegar essas músicas e tocar ao vivo no palco, com uma galera amarradona, tá tudo certo. E desde que eu sou jovem, tem sempre uma galera amarradona. Às vezes são 20 pessoas, às vezes 50, às vezes 2.000, às vezes 10.000 num festival – mas a quantidade de pessoas nunca mexeu comigo. O que mexe comigo é a vida: meus relacionamentos, meus parentes, meus amores, meus afetos, meus amigos, meu dia a dia. Porque eu vivi muito tempo no analógico, e vejo mais onda e graça nessa vida. Sair na rua, conhecer uma pessoa do zero. “Ah, que pessoa legal, deixa eu ver qual é o papo, deixa eu ver o que se trata, deixa eu tocar, deixa eu sair”. Hoje, a rua virou a Internet, né? É o lugar para onde as pessoas vão se conhecer, se identificar. Quando eu publico algo nas redes, eu estou dizendo: “isso é o que eu faço”. Mas uma pessoa da nova geração, quando entra na Internet, está dizendo: “isso é o que eu sou” e isso é muito significativo. As redes sociais ganharam um peso muito grande na vida contemporânea das pessoas mais jovens, e isso me preocupa. Porque no fim das contas, são as big techs que estão cuidando da dopamina e do bem-estar de todo mundo. E quem está por trás disso são meia dúzia de caras brancos, ricos, multibilionários, que não têm nenhum interesse em movimentar cultura, pensamento, valores… nada. Estão só pela grana. Então, você não pode entregar sua cabeça para esses caras. Só que quem tá chegando agora entra no TikTok, entra no Instagram, e aquilo ali vira o mundo inteiro pra elas. É ali que elas se sentem validadas. Isso me preocupa, mas, ao mesmo tempo, acho que é um movimento pendular, como acontece com toda tecnologia nova. Quando chegou o rádio, quando chegou a televisão, foi assim também. As tecnologias chegam trazendo muita coisa ruim, mas depois a gente vai domesticando. Tenho um pouco de fé que a inteligência artificial, por exemplo, não vai nos lobotomizar. Acho que ela vai virar uma máquina de lavar, uma cafeteira, como qualquer outra invenção. A nossa geração está ferrada, porque está no meio do deslumbramento com a tecnologia. Mas com o tempo, as próximas crianças vão olhar e falar: “calma aí”. Acho que vamos, aos poucos, organizando as tecnologias que criamos. Somos a natureza, e tudo o que fazemos também é. O robô também é natureza, porque foi criado pelo homem, que é natureza. A formiga faz o formigueiro, o joão de barro faz a casa dele. Acho que tudo, nessa simbiose caótica, tende a se organizar. Não estou dizendo que isso não gere problemas sociais, mas não acho que a sociedade vai implodir por causa da tecnologia. Talvez por causa do calor, das mudanças climáticas, de guerras ou de bombas nucleares. Temos muitos motivos possíveis para acabar. Mas não vai ser o smartphone.

MP: Pois é, hoje, vivemos esse momento de observar o presente e imaginar futuros possíveis. Mas, voltando um pouco para a produção do disco: você escreveu, compôs e produziu todas as faixas, né? Como foi esse processo de habitar tantas etapas? Teve algum momento em que você precisou se escutar mais como artista e menos como produtor, ou o contrário?

Cícero: Foi um processo muito compartilhado com amigos e afetos. Meu caminho tradicional era chamar Vovô Bebê aqui em casa. Ele gravou praticamente todos os baixos do disco. Eu mostrava as músicas pra ele, ouvia o que ele sentia, o que comentava. Também chamava o baterista e trocava ideia. Mandava, por exemplo, uma faixa para [Felipe] Pacheco escrever os violinos, falava: “queria um violino assim, assado”, e cantarolava a melodia. Não foi uma coisa de gravar tudo sozinho, produzir tudo, tocar tudo – apesar de eu já ter passado por essa fase. Acho que no começo eu tinha essa pulsão de ocupar todos os aspectos de um disco, porque ainda estava descobrindo quem eu era. Queria saber que som eu tirava, queria pintar o quadro sozinho pra depois olhar e pensar: “ah, é assim que eu pinto”. E aí, como já fiz isso em um disco, dois, três, quatro, cinco, seis… agora eu já sei como eu pinto. E fico querendo pintar junto com outras pessoas, sabe? Esse disco foi muito isso: eu produzi, fui engenheiro de som, mas chamei o trombonista, o trompetista, o baterista, o baixista. Conversava com eles, mostrava as músicas e tentava escutar mais a opinião e a musicalidade de cada um, em vez de chegar dizendo “o piano tem que ser isso”. E, ainda assim, continua soando como um disco com a minha personalidade. Mas também dá pra sentir a personalidade do pianista, do baixista, e eu acho que isso enriquece a obra. Com 20 e poucos anos, eu queria fuçar tudo: o piano, o baixo, o violão, a guitarra – para entender o som que eu tirava de cada coisa. E isso resultou em discos com seus próprios carismas. A Praia tem o carisma dele, Canções tem o carisma dele, Sábado, Cosmos, Albatroz e esse agora tem o seu também.

MP: Você falou sobre como o álbum foi construído a partir de trocas e compartilhamentos, e queria falar especificamente da faixa Sem Dormir, que nasceu de uma memória dividida com Duda Beat. Qual foi o papel dessa memória coletiva na composição da música?

Cícero: Foi muito importante. Nos conhecemos há muitos anos, desde antes dela começar a cantar, tocar, gravar e eu também. Nos conhecemos em 2010, então tem uns 15 anos. Vivemos muitas coisas bonitas juntos. Fomos amigos, fomos tudo. Quando ela começou a carreira dela, eu me vi em algumas das músicas que ela fazia. Conversamos sobre isso, e eu senti vontade de compor uma música a partir do mesmo ângulo de uma memória que ela usou para criar Pro Mundo Ouvir ou Todo o Carinho, por exemplo. Eram pontos de vista diferentes da mesma história. Ela lançou aquele disco em 2018 e eu estava morando em Portugal. Ouvi e fiquei comovido. Comecei a escrever, mas aí veio a pandemia, e tudo ficou mais caótico. Mas isso fez bem para Sem Dormir. Com o tempo, fui burilando os arranjos, pensando: “aqui podia ter violino”, “aqui precisa entrar um beat”. Chamei Tomás Troia para criar essa parte com o beat porque percebi que, se eu levasse a música sozinho, ela iria pra um lugar, mas a personalidade da Duda levaria pra outro. E eu queria que a fusão das personalidades estivesse ali, não só a voz dela. Então, foi isso. Algumas músicas ganham com o tempo. Outras perdem – têm uma urgência, e se você espera, perde a força. Mas, em Uma Onda em Pedaços, só entraram as que ganharam com o tempo.

MP: Em que momento você sentiu que estava pronto para transformar essa vivência fragmentada nas músicas do disco?

Cícero: Nesses últimos cinco anos, fiz várias músicas que, na hora, achei incríveis. No ano seguinte, já não gostava tanto. Isso aconteceu muito nos primeiros discos. Hoje ouço e penso: “se eu tivesse dado mais tempo, talvez teria feito um arranjo melhor, escrito um verso diferente”. Com Uma Onda em Pedaços, olhei para esse período de cinco anos e pensei: “o que conta esse recorte?”, porque, para mim, os álbuns são como tatuagens no tempo. É como se você marcasse aquilo no templo da vida. E Uma Onda em Pedaços é isso para mim: de 2020 a 2025, o que aconteceu? Cara, eu fiquei fragmentado. Em muitos sentidos. Dois relacionamentos muito profundos terminaram. A mulher que criou minha mãe faleceu na pandemia. Três tias minhas também. Meu pai está enfrentando uma doença muito difícil até hoje. Foram muitas frentes de dor, de perda. E, ao mesmo tempo, também teve muita alegria: conheci pessoas, me apaixonei, vivi inícios bonitos. Teve começo, fim, luto, recomeço. Foram cinco anos que pareceram outra vida inteira. E aí, como transformar isso num álbum? A única coisa que consegui dizer foi: está tudo em pedaços. Quando ouço o disco, consigo ver esse recorte temporal. Agora estou fazendo o vinil, porque a ideia é justamente essa: que a onda seja em pedaços. As músicas no Spotify são um pedaço. Estou fazendo vídeos curtos que se relacionam com as músicas, são outro pedaço. Os vídeos longos, os clipes, serão mais um. No vinil, por exemplo, coloquei uma foto minha com três anos, no Carnaval de 89. É o começo do arco da coisa toda. Estou ainda juntando os pedaços desse projeto. Comecei no início do ano e ainda estou organizando. É como dizer: “olha aqui o que eu fiz”. Acho que por isso coloquei aquela foto da infância. E o disco começa com “Queria eu ser um pássaro nave”, porque, de certa forma, essa pulsão criativa me acompanha desde o início da minha percepção de mundo. A vida vai dando e tirando em pedaços. Você ganha, perde, se apaixona, se despede. E no meio disso tudo, tento manter esse pedaço que é o Cícero-artista, o que faz música, que é só um pedaço de mim, mas um pedaço que eu tento proteger. A criatividade também nasce disso, mas tem algo ambíguo aí: se você protege demais, acaba sufocando. Então é preciso viver, mesmo que doa. Esse projeto me pegou de um jeito. Acho que demorei cinco anos porque precisava me apaixonar por ele. Quando fiz Canções de Apartamento, Sábado, Praia, Cosmos, Albatroz, me entreguei. Era o que havia de mais importante pra mim naquele ano. Depois, os anos passam, você ouve o disco e pensa: “legal, mas podia ter cantado melhor aqui, escrito melhor ali”. E aí dá vontade de fazer outro, achando que dessa vez vai acertar. Hoje, Uma Onda em Pedaços é a melhor coisa que já fiz na vida. Fui com corpo e alma. Agora, quando as pessoas ouvirem e eu for pra estrada, a turnê vai ser outro pedaço. Tocar ao vivo, conhecer pessoas é mais um recorte. Esse momento tem sido sobre organizar os pedaços do disco e da vida. E, curiosamente, uma coisa tem ajudado a organizar a outra. A arte e a vida funcionam como uma gangorra: às vezes um sobe e o outro desce, mas às vezes os dois sobem ou descem juntos. E acho que agora estou num momento em que os dois estão se organizando.

MP: É bonito ver como as coisas se reinventam. Em cada álbum você se reinventa de uma forma. Você acha que está bom – no seu último álbum, por exemplo, você achava que estava bom – mas, na verdade, ainda tem muito mais para explorar. Então, é interessante observar como tudo vai se transformando.

Cícero: Acho que quando você ouve sua última obra e acha que é a melhor coisa que já fez na vida, você meio que parou. Eu sinto que é muito importante ouvir os meus discos de cinco anos atrás e pensar: “poderia ter feito melhor”. Esse sentimento é muito valioso pra mim. Gosto de Canções de Apartamento, Sábado, A Praia, mas, se eu tivesse achado que Canções de Apartamento era a melhor coisa do mundo até hoje, eu estaria até hoje fazendo o mesmo tipo de música. Estaria me repetindo e isso não seria interessante pra ninguém: nem para mim, nem para o público. Canções de Apartamento é único porque ele é único mesmo. Não vai ter outro. Assim como Sábado, Praia, e agora Uma Onda em Pedaços. Quando você lança um disco, as pessoas ainda estão acolhendo aquilo, ainda não se entregaram completamente. E aí o tempo vai dando significado. Eu via muito isso quando ia pra faculdade, no meu primeiro namoro. O tempo faz a obra envelhecer e ganhar força na vida das pessoas. Eu sei que Uma Onda em Pedaços também vai bater assim, em pedaços. Amanhã, alguém começa a namorar e ouve muito tal música. Ou termina, e ouve outra. Esse disco carrega essa compreensão de que ele precisa de tempo pra existir na vida das pessoas. Ele já nasce assim, já nasce “coroa”, digamos. Eu não tenho mais a urgência de que ele seja um hit, ou que alguma música estoure no Brasil. Já passei dessa fase. Eu só quero que, quem ouça, goste. Que aquilo vá se infiltrando na vida da pessoa, e que a vida dela dê significado ao que ouviu. Ela vai viver coisas – coisas que eu nem sei – e alguma música pode virar a trilha sonora daquilo. Pode cair numa playlist no Spotify e, de certa forma, eu vou colaborar com o corpo sensível daquela pessoa. Mais do que querer número, público, dinheiro ou status, eu quero oferecer uma porta para uma sensibilidade possível. Porque a máquina da vida contemporânea vai transformando todo mundo em seres produtivos. Você tem que entregar, entregar, entregar, o tempo todo. Mas não nascemos só para ser produtivo. Também nascemos para sermos acumulativos, para viver, para sentir. A evolução não vem só da produção desenfreada. Vemos isso nas redes sociais, que exigem que você produza conteúdo todos os dias. Mas tá todo mundo exausto, porque não dá para produzir conteúdo todo dia. Você precisa viver para ter conteúdo. Precisa de ciclos, de tempo, precisa se alimentar. O conteúdo vem da vida. Se você passa a vida só gerando conteúdo, acaba ficando sem vida e sem conteúdo. A máquina exige algo que é anti-humano. Acho que essa compreensão já começou a chegar. Já não estamos mais tão deslumbrado como quando essas tecnologias chegaram.

MP: Cícero, para finalizar, tenho uma pergunta que talvez seja um pouco difícil de responder, mas fiquei pensando bastante nela durante nossa conversa. Tem aquele trecho em que você canta: “o passado segue adiante”. A partir disso, você acha que Uma Onda em Pedaços é um retrato fiel do agora? Porque você falou que o disco fez muito parte de você, de tudo que você fez. Você acha que esse álbum é um retrato seu no presente ou ainda é uma forma de tentar se lembrar de quem você era no passado a partir desses pedaços?

Cícero: Então, eu acho que esse disco é quando eu tento desconstruir essa noção de presente, passado e futuro – o que é algo que está passando, o que é algo que vai acontecer – para mim hoje isso é um jogo mental, um lugar mental. A frase que você citou, “o passado segue adiante”, tem muito a ver com isso. Esse disco já é sobre o passado, porque, enfim, já gravei, ele está pronto. Mas ele também vai me trazer vivências futuras. Eu posso conhecer pessoas, vou tocar em lugares, estou aqui dando uma entrevista hoje e vou dar outra amanhã. Ou seja, esse disco ainda está alterando meu futuro e existe a partir do momento em que está pronto em todo o presente. Então, eu não sei, eu consigo olhar para Canções de Apartamento e ver esse disco como um retrato do meu presente, porque vejo ali coisas que ainda tenho em mim e penso: “caramba, isso tem 15 anos e eu ainda não perdi”. Então, isso é meu presente. Mas ele também me informa sobre meu passado, e eu já nem acho mais que aquilo é só passado. Então, para mim, ele é passado e presente. Acho que uma das características da arte – e quando você estuda arte academicamente, mesmo que não seja minha linha de raciocínio – é a atemporalidade. Ou seja, uma obra não consegue ser situada no tempo por si só. Você pode perceber que algo é antigo, mas a obra em si não carrega códigos que tirem seu significado com o passar do tempo. É tipo um videocassete hoje em dia, que ninguém usa mais, nem tem onde colocar. Então, se olhar por esse ponto de vista, o disco é um retrato do passado, do presente e do futuro, ao mesmo tempo.

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