Leitieres Leite e Moacir Santos: Homenageados em Disco Duplamente Póstumo

Em outubro de 2021, perdemos um dos nomes mais importantes da música instrumental brasileira. Letieres Leite foi mais uma vítima da covid-19, aos 61 anos, deixando por lançar o álbum Moacir de Todos os Santos, que, para nossa sorte, foi finalizado e distribuído pela gravadora Rocinante no último 19 de maio.

Ao lado da Orkestra Rumpilezz, que regia desde 2005, o maestro faz uma homenagem ao artista pernambucano Moacir Santos (1926-2006), relendo sete das nove canções da obra Coisas‘ (1965). O disco tem participação de Caetano Veloso, que canta na renomada faixa Nanã – Coisa nº 5, e de Raul de Souza, trombonista também falecido em 2021, em Coisa nº 4.

O álbum, além de ser póstumo e tributo – ou seja, uma homenagem de um artista falecido à outro falecido anteriormente -, tem algumas outras peculiaridades que chamam atenção: a gravação com três máquinas de fita de 24 canais funcionando simultaneamente, um documentário sobre o álbum, com participação do próprio maestro baiano, e a escolha das canções do álbum Coisa.

Sobre estes assuntos, o Música Pavê bateu um papo com Sylvio Fraga, diretor artístico e produtor do álbum, ao lado Pepê Monnerat e pelo próprio Letieres Leite, a quem descreve como “um especialista em dar amizades aos outros”. O disco foi gravado no Estúdio Rocinante, por Pepê e Edu Costa. Sylvio também é diretor do documentário, ao lado de João Atala e Michel Atallah.

Música Pavê: Fiquei curiosa sobre a forma que o disco foi gravado. Vi que usaram gravadores de fita magnética de forma simultânea. Conta um pouco sobre este processo

Sylvio Fraga: Letieres tinha o desejo de gravar a Rumpilezz na fita, como ele fez conosco no disco de seu quinteto. Mas, para a Orkestra, foi necessário sincronizar três máquinas para a gravação acontecer ao vivo (todos tocando juntos). Essa proeza – até onde eu sei, inédita – é mérito do meu sócio e diretor técnico Pepê Monnerat. Inclusive, fizemos uma obra no estúdio para acomodar a Orkestra, construindo mais três salas de um deck-varanda que dava para a mata. Assim, o maestro pôde reger (e dançar) de frente para os músicos. 

MP:  Em 2018, foi feito o convite a Letieres Leite para gravar o projeto que, antes, tinha acontecido em forma de show. Você participou de toda a produção do disco, acompanhou toda a gravação e dirigiu artisticamente ao lado do próprio Letieres. Como é, nesse momento, ver um projeto tão bonito ser concretizado e não ter mais a presença do idealizador dele para o lançamento?

Sylvio: No caso desse disco, fiz o convite junto com o Pepê, que também o co-produziu. Isso aconteceu durante a gravação do quinteto. Quando Letieres mencionou esse show com as Coisas, Pepê e eu pulamos da cadeira e pedimos para ele fazer o disco conosco. Uma certa irresponsabilidade, pois o estúdio não estava preparado para receber a Rumpilezz. Letieres era muito generoso na hora de confiar na capacidade do outro: ele aumentava essa capacidade, a potência de quem estava ao seu lado. Foi um dos grandes privilégios da minha vida estar em constante diálogo com ele, vivendo de perto o sonho dele de realizar esse disco que era tão importante para ele em tantos sentidos. Um pequeno alento é que ele pôde ouvir a mixagem final. Mas confesso que é bem difícil curtir esse lançamento sem ele. Escrevo de Salvador enquanto gravamos o disco do grupo Aguidavi do Jêje, comandado pelo Luizinho do Jêje, que conheci através do Letieres. Luizinho saudou o maestro no Xirê e nos emocionamos muito. Letieres me deu grandes amizades. Ele era especialista em dar amizades aos outros. 

MP: O disco tem um roteiro diferente da disposição das canções intituladas Coisa, de Moacir Santos. Como se deu a escolha dessa sequência das faixas?

Sylvio: Letieres escolheu as faixas em que ele enxergava um caminho claro para a utilização de uma linguagem estruturada no sistema de claves das matrizes africanas – sem ter que “forçar uma barra” para moldar a composição original para a visão dele. Além disso, todas as Coisas não caberiam nos 40 minutos de um LP. Acabou que a seleção natural do maestro casou com o tempo na mídia física. Quanto à ordem em si, como o disco é uma seleção das Coisas, nunca nos pareceu necessário seguir a ordem. A ordem final não havia sido decidida entre nós antes da morte do maestro, mas ele tinha deixado várias pistas em relação a isso em conversas e áudios.

MP: Vi que você também dirigiu o documentário sobre o álbum que foi exibido no canal Arte 1. Como e quando surgiu a ideia deste documentário e como foi dirigi-lo? Ele ficará disponível em alguma plataforma posteriormente?

Sylvio: O filme foi feito a seis mãos, ao lado de João Atala e Michael Atallah. A ideia era fazer um registro não só da gravação do disco, mas também escutar todo o pensamento de Letieres por trás das invenções dele dentro das Coisas – e isso se estendia naturalmente para a missão de vida dele, que sempre lastreada na intensa busca pela beleza, era também uma missão pedagógica e militante pelas causas do antirracismo. O roteiro não era claro de antemão. O documentário estreou no Arte 1 e terá algumas reprises. Depois de dois anos ele irá para o YouTube da gravadora. 

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