Jacintho e a identidade latino-americana em “Tropical Desespero”

Tropical Desespero é uma obra que se apresenta em muitas camadas, tanto sonoras quanto de significado. O álbum de estreia do artista paulista Jacintho traz conceitualmente um diálogo com a música dos países vizinhos ao nosso (e outros menos próximos territorialmente, mas culturalmente análogos) em uma estética pop e contemporânea – nascida também da produção dividida por Felipe Cordeiro e Rafael Barone (Liniker & os Caramelows).

Falando ao Música Pavê, Jacintho explicou que o disco nasceu de sua relação com a própria identidade latino-americana. “Como brasileiro, acho muito difícil a gente se compreender e por um processo de ressignificação de nossa compreensão como latino-americano”, conta ele, “a gente não se deixa pertencer ao continente, nossa história não deixa. E esse movimento anti-Brasil, que a gente está vivendo de uma maneira muito calorosa hoje, é reflexo do que foi plantado no decorrer da nossa história, com um processo de colonização plena, de embranquecimento da nossa população”.

“Eu venho da periferia de uma cidade pequena do interior [de São Paulo], e a minha vida inteira eu convivi com pessoas que tinham como referencial histórico o avô que veio da Itália, daí abriu um comércio. Tinham que falar que tinham o sangue italiano, ou o sangue alemão. E eu nem sabia onde minha avó tinha nascido. E a maior parte da população brasileira também vive esse processo e não sabe de onde é, fica tentando criar laços europeus, ou norte-americanos, e a gente não consegue se ligar no nosso processo como brasileiro ou como latino-americano”.

Artista não só na música, essa sua história por busca de uma identidade começou a partir de uma residência artística vivida na Espanha, quando percebeu pela primeira vez o quanto compartilhava, em vivências e cultura, com os colegas de países próximos. Seu projeto naquele momento tratava da invisibilidade de pessoas em situação de rua, e “todas as obras dos outros artistas latino-americanos que estavam lá tinham relações conflituosas – o silêncio da mulher, o silêncio como sinônimo da violência, a violência gratuita… Foi quando comecei a criar todas essas relações e percebi que isso era o que me fazia latino-americano e o que me fazia conectar com o chileno, o colombiano, o cubano, enfim, com qualquer outro cidadão dentro desse território”, explica Jacintho.

No Tropical Desespero, minha principal proposta é inserir o Brasil dentro desse cenário latino-americano e perceber que essa identidade só nasce através da violência e do sofrimento – o que nos une a qualquer outro povo latino é o processo de exploração e de diáspora que se passou em todos os nossos territórios da América Central pra baixo. O cenário político atual brasileiro é só um reflexo do que foi plantado há muito tempo”.

Antes do álbum, suas pesquisas já anunciavam um pouco do que o recém-lançado disco traria, como diálogos de ritmos latinos com o brega e o arrocha. Ao lado dos produtores, Jacintho quis trazer uma dinâmica antropofágica de pegar o que há de folclórico na música em um formato mais pop, sem ignorar os ritmos mais periféricos – “que na América Latina são o reggaeton e o funk”, como ele explica.

Ao mesmo tempo em que eu queria fazer algo diferente, eu queria fazer algo que chegasse às pessoas, que fosse de fácil consumo, de fácil acesso e interpretação – independente do que interpretassem”, conta o artista. “Quando a gente fala de música latino-americana, a gente sem querer tá falando de música popular. São ritmos folclóricos que foram se estabelecendo e tomando novas formas conforme os processos de urbanização. Não dava para [o disco] não ter uma veia pop, por mais que eu estivesse pesquisando música fundamentada e tradicional. Queria trazer essa adaptação do reggaeton e do funk, que está mais clara em algumas faixas, e o pop está sempre ali”.

A identidade do brasileiro no contexto da América Latina pode ser o conceito que move Tropical Desespero, mas existe também um forte conteúdo pessoal nas músicas – a própria identidade do artista é comentada, resultado de longas conversas com sua avó materna para entender de onde ele veio. “Tive que reconhecer esse processo em mim”, conta ele, “por mais que eu tenha feito essas pesquisas, eu cresci em um ambiente que tocava só música pop – no sentido de popular mesmo, eu cresci ouvindo sertanejo e brega. Por mais comercial que sejam, para mim, essas músicas são muito da terra, porque eu cresci nesse lugar”.

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