Ítallo Retrata seu Brasil, que Também é Nosso, em “O Time da Mooca”
O futebol está muito presente na cultura brasileira, e mesmo quem não o atura precisa dar o braço a torcer, já que o esporte está em nosso imaginário coletivo. Por trás desse movimento, há os mais diversos significados do chutar uma bola e onde ele reside em nossas memórias. É sobre isso que o artista alagoano Ítallo França, ou apenas Ítallo, desenvolve no seu segundo álbum, o Time da Mooca. O artista segue a linha de pensamento do seu primeiro disco – Casa – em contar o que se lembra das suas vivências atrvés de perspectivas diferentes.
Sem medo da exposição dos seus defeitos, angústias e crescimento, Ítallo costura a sua infância com lembranças singelas que conecta o ouvinte no lugar de testemunha daquilo que se canta. O futebol é utilizado como respiro para uma criança sorrir a lado dos seus pares. Revolucionário em trabalhar o que desacelera, confessar vulnerabilidades e saber seu espaço político, a obra prefere apontar o encanto a constatar o drama humano, deixando claro que a sua música nasce para perguntar.
Portanto, não é por acaso que Jorge Ben e Moraes Moreira são influência desse jovem artista que consegue enxergar poesia até mesmo nos comentários burocráticos em programas esportivos na televisão. Ele questiona o ser humano em seu modo de vida atual e expõe preocupação com a infância hoje, mas deixa em aberto as conclusões. Sua parada é experimentar linguagens, sem esquecer da sua origem e condição.
Música Pavê: Como o futebol reverbera na sua arte?
Ítallo França: Conheci o futebol antes da música, em 2002. Foi minha primeira paixão. A ideia de fazer um disco com a temática do futebol veio a partir da música que dá nome à obra, O Time da Mooca, e isto se deu em 2016 quando eu ainda estava imbuído do sentimento do meu primeiro disco, Casa. Talvez por isso O Time tenha sido uma continuação daquilo que eu entendo ser um disco de memórias – a partir de perspectivas diferentes, é verdade, mas ainda assim memórias. E o futebol era a matéria prima daquilo que eu tinha guardado na infância pré-adolescente.
MP: Emicida diz que o periférico, só de estar vivo, já é uma revolução social e, se ainda sorri, a revolução é maior ainda. Em seu novo disco, você narra uma parte da sua vida ligada a questões simples, sobretudo da infância, como estar com o pé ferido por joga bola na rua, mas também deixa claras algumas questões econômicas, como o goleiro pegar a luva emprestada. Dentro desse cenário, podemos dizer que você se enquadra como um sobrevivente. Como conseguiu elaborar um trabalho que dialoga muito com o social sem ter ecos de revolta?
Ítallo: Então, depois de um tempo, eu passei a me incomodar com essa coisa da canção militante, dessas que rezam uma cartilha etcetera e tal. A militância a qual me refiro não tem que ver com as canções de denúncia social, estas têm a minha atenção. O meu lance com arte é expor todos os meus defeitos, as minhas angústias. Gosto da canção confessional, da canção que pergunta – ou melho, que se pergunta. Quando leio um livro ou vejo um filme, tudo que mais me emociona é como aquela história se empenhará para expor um drama profundamente humano: a vida, a morte, o amor, a alegria, o ciúme, a angústia, a euforia, o desespero, o ódio, tantas coisas que me aproximam da minha condição de um vulnerável. Eu não atuo por uma causa, sei dos problemas que um homem do meu perfil passa e, por isso, sigo fazendo o meu trabalho, tentando consolidar uma carreira, como forma de resistir a esses problemas. Na superfície, o meu discurso não ecoa qualquer tipo de revolta, mas vejo tudo que faço como revolucionário.
MP: Existe uma narrativa que denomina o futebol como o ópio do povo, instrumento para alienar as pessoas. O seu disco contraria isso do começo ao fim. Qual futebol inspirou você, o privado que se joga ou a partida que passa pela televisão? E como o esporte pode inserir poesia na vida de um periférico para além do sonho de se tornar jogador de futebol?
Ítallo: Eu acompanho muito o futebol da TV desde sempre e, é claro, passo tempos sem ver também. Sobre isso de alienar, eu acho engraçado. Às vezes é justamente esse fator que me fascina no mainstream do futebol. Tem dias que tô lá assistindo um SporTV ou ESPN da vida e vejo aqueles caras de meia-idade, usando camisa social, discutindo tatiquês enquanto no Brasil a política gera uma nova crise a cada dois dias. Acho aquilo libertador. Fez muito bem pra minha saúde me importar mais com o Flamengo que outras coisas nos últimos meses. Acho que o esporte sempre vai inserir poesia na vida das pessoas, porque, mesmo no contexto de uma disputa, estão ali discutidos alguns valores da vida. As pessoas entendem isso muito bem.
MP: O Time da Mooca conta vivências de uma pessoa que passou a infância com a rua sendo testemunha do seu crescimento. Hoje em dia, com o advento dos jogos eletrônicos e redes sociais cada vez mais no imaginário das crianças, junto a uma privatização dos lares, com a ascensão de condomínios isolando famílias de uma experiência além da sua bolha, você acha que daqui alguns anos, ou décadas, seria possível algum artista realizar algo semelhante como O Time da Mooca, no sentido de se descobrir indivíduo pelas experiências passadas no espaço público?
Ítallo: Eu me preocupo com isso, tenho criança em casa, sei dos problemas de uma criação muito ensimesmada e não sei até que ponto isso é positivo (porque totalmente negativo não é). Nós adultos também sofremos com isso e tá tudo muito novo pra gente também. Acho que daqui a alguns anos a gente vai entender melhor sobre o uso saudável dessas tecnologias e modos de viver/habitar. Respondendo: sim, acho possível.
MP: Sabemos o tamanho do futebol na periferia. Junto a isso, vem o processo do capitalismo emergindo a cada segundo com o consumo desenfreado em diversas frentes, da moda à demanda mercadológica da música. Sobra pouco espaço para outras artes, como literatura, cinema brasileiro e até mesmo músicas fora do mainstream. Como furar essa bolha e conseguir se aproximar do popular de fato? A sua arte mesmo fala sobre uma realidade muito palpável do povo brasileiro, mas o alcance não é o equivalente. Isso é natural ou somente o diagnóstico da questão da desigualdade social?
Ítallo: É difícil. Eu acho que o mercado, grosso modo, acabou engolindo a nossa criatividade e por isso é natural que as coisas mais pop obedeçam um tipo de linguagem comercial em alguns segmentos artísticos, sobretudo na música. Mas, ao mesmo tempo que isso acontece, também testemunhamos o rap, o funk, o brega funk, o trap, que nascem dos guetos e somente depois são absorvidos pelo mercado. Eu vejo a minha música como experimentação de linguagens e talvez por isso o alcance não seja maior. Não sei, talvez seja isso.
MP: No seu canto, sobram sorrisos e boas lembranças na narrativa de uma infância semelhante a diversos outros brasileiros também periféricos, independente do CEP e da região. Quando você se deu conta sob a questão financeira e de raça? Isso era evidente durante a sua infância?
Ítallo: Começando pela segunda pergunta: não era tão evidente, mas também não era oculto. A gente nasce sabendo que pobre só se fode, né? Aos poucos, tomando conhecimento das coisas, percebi com mais nitidez o contexto ao qual eu estava inserido e ao mesmo tempo que isso entristece, também liberta. No Time da Mooca, eu não quis focar nessas questões de uma maneira propositiva. Eu apenas contei as coisas como elas eram ou são. Não houve estudo, pesquisa, nada disso. Tudo que está no disco aconteceu comigo de alguma maneira e se isso representa algum questão sobre a música negra ou periférica é porque de alguma maneira eu tenho essas duas questões na minha história.
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