Fernando Motta Transita Entre o Efêmero e o Indelével em “Movimento Algum”

Após alguns anos, Fernando Motta está de volta com o disco Movimento Algum, que saiu nessa terça-feira (27). Mas, entre o trabalho novo e seus últimos lançamentos – Quebra Asa, Vol. 1 (2022), gravado em colaboração com Jonathan Tadeu e Vitor Brauer, e o elogiado Ensaio Pra Destruir (2021) -, o músico mineiro sempre esteve, apropriadamente, em movimento.
Entre inspirações vindas de exposições de arte, milhares de anotações no bloco de notas e boas horas brincando com acordes e riffs no violão, Fernando continuou enriquecendo seu universo onírico e poético, que bebe tanto de vertentes do rock alternativo – como shoegaze, dream pop e emo – quanto da elegância melódica de Beto Guedes e do Clube da Esquina.
O resultado, nas palavras do próprio autor, é um disco “que te abraça, te envolve e te hipnotiza”. Contando com participações de Paira e terraplana, Movimento Algum evita rótulos fáceis para construir um lirismo muito próprio e transitar com fluência entre abstrações para ouvir de olhos fechados, vocais etéreos, sonoridades densas e, por vezes, ritmos que convidam a dançar.
Para entender melhor os processos de composição e gravação do álbum, o Música Pavê bateu um papo muito legal com Fernando Motta, que incluiu sua trajetória, colaborações com outros artistas, Happy Mondays e mais.
Música Pavê: Fernando, para começar eu queria que você me contasse um pouco sobre Movimento Algum, seu novo disco. Como surgiu a ideia do nome, do conceito e das sonoridades?
Fernando Motta: No meu processo, normalmente eu começo a fazer algumas músicas e elas acabam abrindo temas. Nas primeiras composições, vi que essa ideia de movimento era algo muito presente. Todas as músicas têm a ver com movimento, ou têm essa palavra e eu gostei da própria sonoridade dela. Então, vi que isso estava se repetindo.
Foi um caminho natural, porque acho que os títulos dos meus trabalhos contam uma história. O primeiro chama Andando Sem Olhar Pra Frente. O segundo é Desde Que O Mundo É Cego. O terceiro, Ensaio Pra Destruir. E, agora, Movimento Algum. Ou seja, se juntar os quatro, eles quase formam um poema.
Ensaio Pra Destruir é muito um disco sobre rompimentos, sobre perceber situações que eu não quero repetir. Mas, passado algum tempo, você vê que algumas coisas voltaram a ser como antes. Alguns ciclos se repetem. E eu achei esse trocadilho bem poético, esse movimento, mas que é um movimento algum. O álbum tem muitas músicas com esse propósito. A primeira faixa é Volver. Depois, lá no meio, tem uma que se chama Reprise. Eu trabalhei bastante com essa ideia de repetições, de lugares que se revisitam. O conceito é um pouco parecido com o de Ensaio, mas, naturalmente, pelas questões que você está passando em cada momento, as coisas se diferenciam.
MP: Falando em Ensaio Pra Destruir, você começou a compor o disco durante a pandemia, o que deve ter impactado o seu processo criativo. Agora, a pandemia passou, mas o mundo continua caótico. De alguma maneira, isso te influenciou em Movimento Algum?
Fernando: Sim, sem dúvidas. Por ser um compositor solo, eu acho que tenho muito essa visão de acontecimentos bem específicos da minha vida, mas eu também não gosto de ser aquela coisa meio rasa, do tipo “olha o singer-songwriter triste lá, o sad boy with a guitar“. Minhas músicas vêm muito dessa percepção: de coisas que acontecem comigo, de pessoas que conheço, de como você é tratado em determinada situação. Não sei se é uma coisa tão política assim, mas o estado do mundo acaba perpassando tudo isso.
Claro que fazer arte já é uma coisa política. Conseguir fazer isso sem incentivo é sempre um desafio. E muitas das minhas músicas também trazem uma questão de pertencimento, de onde você se vê bem recebido e de onde você não se vê bem recebido. O meio artístico tem muito disso também. Temos que nos ajudar mais. Às vezes, eu noto inclusive uma certa rivalidade, algo até desconcertante. Então, eu falo da própria percepção de querer ser uma pessoa melhor, de querer conviver com pessoas melhores e de ser mais carinhoso, mais receptivo. E acho que isso, no fundo, passa pela nossa situação política.
MP: Sim, total. Você não compõe como uma banda punk faria, por exemplo. Sua música aborda mais sensações.
Fernando: Sim, e eu tenho músicas mais pesadas, por exemplo Paranoia, que eu gravei com eliminadorzinho (no EP Lapso) e também fala um pouco sobre pertencimento, que é um tema bem recorrente para mim. O próprio fato de você gritar e de vomitar as palavras faz com que as pessoas associem a faixa a uma coisa política, mesmo que a letra não seja exatamente política ou partidária. É mais detectável quando você canta com raiva, com o fígado.
MP: Com certeza. Aproveitando que você falou sobre essa linguagem mais punk, você tem planos para gravar uma sequência de Quebra Asa, Vol 1 (disco gravado em parceria com Jonathan Tadeu e Vitor Brauer)?
Fernando: Não, acho que foi só aquilo mesmo. É um disco bem cru, pois foi o resultado imediato daquele processo: fizemos, gravamos e acabou. Às vezes eu até olho para ele e falo: “Queria ter gravado isso aqui de forma diferente, essa outra coisa também”. Músico nunca vai achar que o trabalho está completo, mas eu gosto desse senso de urgência do Quebra Asa. É bem legal, faz parte também.
MP: Não sei se você concorda, mas achei Movimento Algum seu disco mais próximo do shoegaze, porque ele tem muitas camadas e timbres densos. Como foi esse processo de gravação? Foi muito desafiador?
Fernando: É engraçado, porque eu acho que os singles remetem muito a shoegaze mesmo. Aliás, eu nem tinha percebido que Espelho era tão shoegaze assim. Mas, depois de um show da banda Paira, em São Paulo, eu estava conversando com Roberto Kramer (produtor musical), mostrei a música e ele me respondeu: “Caralho, é shoegaze de synth”. E, realmente, quem ouve os singles acha que vai ser um disco muito nessa pegada, mas eu não acho que ele seja tão shoegaze assim.
Roberto também falou uma coisa que eu concordei: “Fernando, não tem jeito de você fazer uma coisa e não ser shoegaze. Tá no seu jeito de tocar, nas melodias que você gosta”. Mas acho que talvez Ensaio Pra Destruir seja mais shoegaze. A perspectiva de autor é diferente.
Outro exemplo é Elegia, música que eu gravei com Paira. Eu não achava que era muito shoegaze, mas um dos primeiros comentários que eu recebi foi: “Nossa, a voz da Clara (Borges) combina muito com essa shoegazeira aí”. E eu estava pensando mais em Stone Roses – que acaba sendo um pouco shoegaze também.
Mas, aproveitando o gancho para falar sobre o processo de gravação, quem me apresentou ao Thiago Klein (produtor do disco) foi Eduardo Praça (que usa o nome artístico Apeles). Ele achou que nossos estilos combinariam. Em uma das primeiras conversas, Thiago me falou: “Olha, eu já percebi que você gosta muito das demos que você cria e, às vezes, tenta levar isso para o resultado final”. E claro que isso é um erro. Inclusive, uma vez eu entrevistei Alex G para a Revista Balaclava e esse foi um dos pontos em que nós rimos muito. Começamos a trocar muita ideia sobre as demos que tínhamos no celular. Ele começou a me mostrar os sons dele e eu disse: “Aposto que você é igual a mim – fica ouvindo a demo mil vezes e depois não consegue desgarrar dela no estúdio”.
Voltando à gravação de Movimento Algum, Thiago me falou que o sentimento da demo continuaria, mas as músicas seriam muito bem produzidas. Então, o processo foi esse, de gravar tudo com precisão, mas de manter não a cara de demo, mas sim o sentimento, bem do jeitinho que a gente gosta. É o lo-fi proposital, não aquele que não foi gravado direito. E isso deu trabalho sim. Comecei a fazer as músicas em 2023 e fiquei quase um ano gravando.
A gravação teve início no carnaval de 2024. Como eu não sou de São Paulo, ficar indo e voltando era complicado. Então, quando tinha feriado, nós já deixávamos tudo esquematizado para fazer o máximo de coisas possíveis. Mas, às vezes, cansa, então fizemos tudo com calma. É o oposto da urgência de Quebra Asa.
MP: Queria te perguntar sobre o single Água-forte, que você gravou com terraplana. Eu sei que vocês até já excursionaram juntos, mas como surgiu a ideia de convidar o grupo para essa música específica?
Fernando: Essa foi uma música que eu falei: “É shoegaze mesmo”. É engraçado, porque eu faço a maioria das músicas no violão, só que já imaginando o que ela vai virar. E eu gosto muito dos meninos do terraplana – Vini, Sté, Wendeu e Cassiano são muito amigos meus. Principalmente com Vini, eu troco muitas influências. Ano passado, nós ficamos viciados em uma banda chamada Been Stellar, lá de Nova York. Estamos sempre mandando música um para o outro, às vezes coisas velhas mesmo, mas que descobrimos recentemente.
Quando eu fiz Água-forte, falei: “Cara, essa música ia ficar muito doida com terraplana” e já mandei para ele no WhatsApp, perguntando se tinha chance de gravarmos a faixa juntos. Ele mostrou para o resto da banda e todos gostaram. Então, quando eles tocaram no Sesc Pompéia no ano passado, eu achei que seria uma boa oportunidade, porque o estúdio do Thiago Klein fica lá do lado. Fomos para lá e, como a música já tinha um caminho quase traçado, fizemos algumas tentativas e tomamos algumas decisões juntos. Nessa sessão mesmo, já gravamos várias coisas em definitivo, como a guitarra e o baixo. Então, eles voltaram para Curitiba e eu para BH, e gravamos as vozes depois. Foi tudo muito natural.
MP: Ainda falando sobre essa música, o conceito de água-forte é muito interessante, essa coisa até paradoxal de tentar registrar uma impressão, algo que é meio fugidio e transitório. Acho que é uma ideia que tem muito a ver com o seu trabalho, você concorda?
Fernando: Eu acho total isso também. É aquela coisa do bloco de notas do celular, sabe? Muitas letras eu tiro disso. Me lembro que Água-forte foi assim. Eu estava numa exposição de arte aqui no CCBB e tinha umas pinturas em água-forte. Aí eu falei: “Cara, esse nome é muito forte, essa pintura é muito bonita”. Aí só anotei “água-forte” e resolvi fazer uma música com esse nome e um paralelo com esse processo em que você faz uns sulcos no metal e depois o desenho sai em uma folha.
Eu pensei muito em levar essa ideia para um poema ou uma música, em falar sobre essa relação muito forte, muito intensa, que marca e fica guardada na memória. Fica impressa, mas também pode ser passada adiante e outra pessoa também pode passar isso para frente.
Gosto muito de pensar em alguns títulos antes da música mesmo. De fazer uma música para chamar “isso”. Em Ensaio Pra Destruir, tem até uma faixa que chama Salvo Engano, e é exatamente isso. Eu queria fazer uma música chamada salvo engano. Eu gosto muito de, às vezes, bater o olho no título de uma faixa e já meio que ter uma previsão do que ela pode ser.
MP: Seu processo de composição não parece ser muito linear. Você pega uma referência de um lado, outra de outro…
Fernando: Principalmente as letras, porque eu anoto muita coisa. Meu bloco de notas é uma loucura. Aí, às vezes, você tem que dar uma olhada lá, uma filtrada. Já fiz música em vários ambientes diferentes: na academia, viajando, no ônibus. Então, é bom ter as anotações ali. Quando estou disposto e inspirado, vou fuçando e juntando as coisas. Eu adoro esse quebra-cabeças, é muito terapêutico.
Mas, sobre músicas e melodias, o processo é mais linear. Normalmente, quando eu começo, já chego até o fim da melodia e faço a letra depois. Mas, enfim, nem tudo é sempre assim. Ontem mesmo, estava aqui com amigos para ver o jogo do Galo e do Cruzeiro. Então, já pegamos o violão e começamos a gravar. Numa dessas, sai alguma coisa. Eu gosto de deixar tudo gravando, porque depois eu vou lá, ouço e falo: “Nossa, isso aqui era bom mesmo”. E aí dá para trabalhar mais depois. É quase a mesma coisa do bloco de notas.
MP: Suas colaborações são muito legais. Como você faz para criar algo em conjunto e, ao mesmo tempo, preservar a sua individualidade e a do artista parceiro.
Fernando: Isso passa muito por conseguir ter uma visão da música já um pouco para frente, porque às vezes você faz um som no violão, mas já tem tantas ideias fervilhando na cabeça que fica até difícil de passar para um produtor ou para outra pessoa. Direto, eu faço composições que já sei como é que teriam que ficar lá na frente. Com eliminadorzinho foi assim, na faixa Paranoia, que eu fiz no violão.
MP: Essa não dá para imaginar no violão.
Fernando: E pior que tem uma demo dela com violão no SoundCloud. Não sei se está no ar ainda, mas tinha. E aí, falei: “Pô, que banda que daria certo com isso? eliminadorzinho, na hora”. Eu estava numa fase de fazer músicas mais pesadas e rápidas, porque acho meu segundo disco parado demais. Na época, fez sentido, mas depois eu queria mostrar um outro lado de energia e de shows. Pensei em eliminadorzinho de cara e nós já chegamos trabalhando as músicas, deu muito match.
Sobre preservar a minha identidade e a da outra banda, isso é essencial. É um critério prioritário. Não sou só eu cantando ali. É preciso construir uma identidade conjunta, uma intersecção de elementos que faça sentido. Com Paira, foi isso também. Difícil pensar a princípio: Fernando Mota com Paira? Ué? A música que fizemos juntos tem um ritmo tipo acid house, baggy, meio Stone Roses. Eu já tinha uma música muito assim, Elogio à Destruição, de Ensaio Pra Destruir. É meio Ride também e Happy Mondays, que eu amo. Isso é algo que eu gosto muito quando o shoegaze faz, de colocar um ritmo dançante sem ficar forçado. Até My Bloody Valentine tem isso para caralho, mas eu sempre acho complicado citar eles. É um erro tentar fazer qualquer coisa parecida, porque é impossível, os caras são muito fortes. Então, às vezes você já tem uma referência que sabe que vai casar bem com a outra banda e cria uma intersecção a partir disso.
MP: Você escolhe parceiros que tenham uma sensibilidade parecida com a sua também.
Fernando: Sim, até o baixista do disco também foi bem assim, Lucas Gonçalves (Maglore). Ele tocou na maioria das faixas. Eu não conhecia ele, mas Thiago falou: “Lucas vai amar essas suas músicas, vai pirar nas harmonias de voz e fazer os baixos que você está esperando”. Porque eu também amo muito The Beatles, é uma das minhas principais referências. E quando ele começou a tocar, ficou perfeito. Casou perfeitamente. Então, Thiago teve uma visão.
MP: No ano que vem, fará dez anos que seu primeiro disco foi lançado. Como você enxerga a sua trajetória desde então? Quais são as diferenças, semelhanças e até rupturas com o Fernando daquela época?
Fernando: No começo, você está descobrindo o que pode fazer com a música. E tem várias coisas que você pode fazer sem deixar de ser fiel a si mesmo. Nessa época, eu achava que seria desonesto comigo se colocasse tal coisa em tal faixa. Depois, você vai percebendo que incorporar novos elementos e somar com outras pessoas não faz com que você perca a sua essência. É uma coisa legal pensar nessa construção toda. Assim, eu posso fazer o próximo disco adicionando várias outras coisas sem deixar de ter a minha cara.
Eu lembro que eu até tinha pensado: “Será que eu invento um outro nome de artista?”. Então, troquei ideia com algumas pessoas. Quando ouviu o disco, dedeco (André Pádua, Paira), me disse: “Nando, que viagem. Não precisa mudar o nome do projeto, isso é totalmente Fernando Motta”. Então, acho que com o passar do tempo, fui aprendendo que essa fidelidade que você tem à sua essência não vai desaparecer do nada. Pelo contrário, poder mostrar outras influências, como os ritmos mais dançantes que comentamos, isso é muito fiel também, é o que eu realmente gosto e ouço no meu dia a dia. Antigamente, eu ouvia muito sadcore, real emo, coisas do tipo. E hoje, eu não ouço mais tanto esses estilos. Eu gosto, não estou falando mal, mas não curto mais fazer péu-néu-néu (Fernando imita frases de guitarra), esse trem meio math rock. São influências que ficaram para trás. Não são ultrapassadas, só não fazem mais sentido para mim. Isso é uma mudança, ouvir outras coisas e conseguir incorporar isso ao seu som.
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