Entrevista: Vanguart

foto por juan pablo mapeto

“Não é só ‘fazer cover’, é um envolvimento muito maior”, disse Reginaldo Lincoln em certo momento de um papo com o Música Pavê em uma tarde que Vanguart tirou para falar com a imprensa sobre seu disco Vanguart Sings Bob Dylan, que chegou às plataformas de streaming nesta sexta, 28.

Como indica seu título, ele traz a banda reverenciando o compositor mais influente em seu trabalho e em grande parte das bandas que ouvimos, principalmente as que transitam em territórios da música folk. Ao longo da conversa, três dos quatro integrantes do grupo comentaram sobre a experiência de levar esse legado para o estúdio, com suas próprias vozes.

Música Pavê: É comum, ao entrevistarmos alguém que gravou um disco tributo, começar perguntando “por que você resolveu homenagear esse artista?”. No caso de vocês, acho que a pergunta seria: “Como não gravar Bob Dylan?”, né?

Fernanda Kostchak: É um “claro que sim”, né? Porque quem conhece a banda sabe que tem a ver com a gente, e mesmo quem conhecer agora vai ver que tem tudo a ver. Acho que a maior brisa nesse lance é perceber como nossa intimidade está acessível com essa obra, com a história do cara, com o eu-lírico dele, com a maneira de pensar a música na época dele e com tudo o que está acontecendo hoje, e também as influências mais objetivas dele, como, por exemplo, nossa formação. Eu existo aqui nessa banda, e um dos canais para isso acontecer é a obra de Dylan, com a vivência folk daquela época, e o violino era um instrumento muito presente nessa cultura. 

Reginaldo Lincoln: Ele talvez seja responsável pela existência do Vanguart. Helio começou a ouvir Bob Dylan na adolescência e começou o projeto pensando no que ele era. É muito louco, a gente sempre se guiou de alguma forma pelas coisas que ele fez. É isso, “como não ser Bob Dylan?” mesmo. A gente nunca pensou que gravaria um disco que não fosse de canções autorais – show é outra coisa, mas um álbum, a gente colocar nosso nome e não ser nossas canções, como assim? 

MP: Penso que era o momento certo para isso na banda também, visto que vocês já tem um público que conhece bem sua identidade e seu repertório autoral.

Reginaldo: Sim, mas o disco veio “meio sem querer”. A gente lançou Beijo Estranho, um ano depois veio o Deluxe com mais três músicas e aí, agora, esse disco. Acho que o mais importante foi tirar a pressão do modo autoral. Talvez o mais difícil de tudo seja compor, escolher as canções, a gente resolver fazer o disco mesmo. Em um momento que tá cada um vivendo uma coisa pessoal também, a gente relaxa e pode curtir esse projeto. Eu tô compondo muito, Helio também compondo muito, e a gente acabou sendo levado por esse disco a começar já a pensar coisas do Vanguart que obviamente vão rolar em breve. Mas não foi planejado, ainda bem. A gente fez o programa no Canal Bis tocando Dylan e veio o convite pro álbum. 

Helio Flanders: A gente percebeu nos últimos anos de banda, que o “momento certo” não existe pra gente, não funciona. Talvez o momento certo pra um disco autoral fosse agora, talvez o momento certo pra um disco autoral fosse em 2015, pós-Muito Mais que o Amor, quando a gente teve nosso maior highlight que era Meu Sol. A gente aprendeu que não funciona assim, então foda-se. A gente gravou Dylan na TV, tá adorando tocar isso e o Rafael [Ramos, produtor] perguntou se a gente não queria fazer um disco. É relativo pensar no “momento certo” se falar de mercado, ou artisticamente, ou na longevidade da banda. Talvez não fosse o momento certo, mas também não seria o momento “errado”. Calhou de ser agora, e o disco é lindo, em nossa opinião, e olha que a gente costuma terminar o processo de gravação odiando muito (risos). A gente tá super em paz com ele, curtindo o material e feliz de continuar como banda. Então sim, é o momento certo.

MP: Já existia toda uma grande familiaridade com essas músicas, até por vocês já terem tocado na TV, nos shows etc. Ao trabalhá-las no estúdio, vocês encontraram novos significados e nuances que não conheciam?

Reginaldo: Como foi um disco gravado ao vivo, algumas coisas rolaram por instinto, meio sem querer, e a gente tentou antes de entrar em estúdio pensar quais seriam as músicas que ninguém gravaria do Dylan e a gente poderia gravar. Tinha uma puta lista e a gente foi experimentando, “vanguartizando” as canções (risos). Isso foi muito importante para o álbum, a gente não ter ficado nem só no Dylan, nem só no Vanguart, mas fazer o que cada canção pedia.

Fernanda: Estar no estúdio é estar com uma lupa em cima do material. A gente refinou essa intimidade com as músicas, e algumas diferentes surgiram. Do meu lado, rolou participar dos backing vocals, que começou de uma maneira bem espontânea e natural. Sou instrumentista, toquei a vida inteira, e participar de uma música desvestida do meu instrumento é uma ruptura muito grande. É quando você deixa de ser a pessoa que toca esse instrumento e você é uma ideia, uma música, uma voz. 

MP: E o que Vanguart aprendeu sobre Vanguart gravando Dylan?

Helio: Que a gente tem que ser mais easy, a gente tem que ensaiar menos, a gente tem que ser mais espontâneo. Eu gravei voz e violão juntos, foi uma libertação incrível. Eu cantei talvez não tão bem, mas bem mais na mosca, bem mais no feeling. Beijo Estranho foi um disco muito trabalhado, e eu gosto dele por isso, mas se a gente tivesse tentado umas vozes mais soltas… sei lá, o Dylan trouxe um relaxamento pra gente muito por conta da estrutura harmônica, por estar cantando em inglês – que pra mim é mais fácil -, que a gente vai levar para os próximos processos. Antes, a gente gravava os violinos e as vozes separados. Dessa vez, a gente quase não gravou nada separado, só quando precisou mesmo. E eu não tô falando pelo purismo, pela vaidade de falar que gravou ao vivo, mas porque o resultado é muito mais legal. A gente pode pensar menos nas coisas. Dylan pensava muito quando ele escrevia, mas pensava muito pouco quando executava, e acho que isso é uma lição a ser levada.

MP: Essa naturalidade ficou evidente para mim até no clipe de Blowing in the Wind, que, diferente de lançamentos anteriores quando Vanguart tinha um novo disco, veio com uma grande simplicidade. 

Helio: É que também o discurso é outro, não precisamos explicar nada. O cara tem um Nobel, né, eu vou falar o que? (risos) Acho importante dizer que as pessoas precisam ler o Dylan. Tem uma tradução boa do Galindo que pode ser uma boa porta de entrada para entenderem por que ele ganhou um Prêmio Nobel, por que ele impactou tantas pessoas. Não é só pela música, é pela expressão, pela inteligência. Para o show de lançamento, eu e o David traduzimos as letras, que passam em português no telão. Por mais que você fale inglês, é uma hora e dez de show, não dá para entender tudo. Então, ali você tem a história de Hurricane, os momentos de Tangled Up in Blue, que mostram como ele consegue falar em primeira e tem terceira pessoa do singular e do plural com os tempos futuro, passado e presente misturados. A própria Blowing in the Wind, você vê a letra e pensa “caramba, ela foi escrita semana passada anti-Bolsonaro?”. São coisas que serão atuais pra sempre, e isso é algo que eu queria trazer para o disco.

MP: Vocês conseguiriam, ainda que resumidamente, comentar o impacto que Dylan teve na musicalidade de vocês?

Helio: Ele é a raiz, ele e Neil Young, a música folk… É a liberdade de ter uma banda e de poder me expressar. Dylan tem uma coisa muito legal que ele nunca tocava a mesma música do mesmo jeito. A gente brinca: “É Heráclito, ninguém entra no mesmo rio duas vezes” (risos). A gente gravou esse disco assim, e foi difícil escolher os takes. Tinha dois ou três, um diferente do outro, e a gente tinha que escolher não “o melhor”, mas o que tinha mais momentos legais. Eram da mesma música, mas eram diferentes.

Reginaldo: As gravações do Dylan são cheias de erros, porque ele explicava como a música era e eles saíam tocando. Então o baixista erra, o cara da bateria erra. 

Helio: Aquela versão de Like a Rolling Stone que tá no Highway 61 foi gravada em um único take, e os caras nunca tinham tocado. O teclado é atrasado porque o Dylan ia dando as notas e ele tentava acompanhar. 

Reginaldo: Isso é uma grande aula.

MP: Penso que vocês darem um passo para o lado e se concentrarem em um repertório que não é o de vocês no estúdio dá também um novo fôlego para olhar para suas próprias músicas, depois dessa “aula”, como você falou. 

Fernanda: Sim, porque entrar no estúdio é sempre um novo treinamento – aquele ambiente, aquela rotina, aqueles níveis de cansaço e aqueles níveis de concentração que fora, talvez, você não tenha. O meu ouvido fica em um estado de atenção diferente de estar no palco. Nesse sentido, transforma por isso, porque você está adquirindo mais vivência e isso te prepara, te dá mais horas de voo para um próximo capítulo.

Reginaldo: O processo criativo nosso é o que faz a gente ser o melhor que a gente pode ser e que faz a gente se foder o máximo que a gente pode se foder. Compor é foda, é uma coisa muito densa, e a gente conflita muito sobre o que a banda tem que ser, porque não é só chegar com qualquer música que Vanguart vai gravar, sabe? Então, a gente sempre pensa e sente muito o que a gente vai fazer – e agora não foi assim, essa dasanuviada foi importante. Foi bom, porque daqui a pouco, muito daqui a pouco mesmo, a gente vai passar por esse processo de novo. 

Helio: E, quando você está escrevendo, é tudo no nosso nome. Isso inevitavelmente passa por vários degraus de vaidade, de autocrítica, de medo mesmo, sabe? Quando você assina, teoricamente você é aquilo. 

MP: E como é a experiência de colocar seu nome em um disco de músicas que não são suas?

Reginaldo: Algumas canções acabam sendo mais Vanguart mesmo. Eu fico pensando que tem canções que têm arranjos mais nossos, um jeito de cantar mais Helio, em outras é um jeitão mais Dylan. Cada canção recebeu o que ela precisava. Não é só fazer cover, é um envolvimento muito maior.

Helio: Meu disco favorito dos últimos tempos se chama Ella Fiztegerald Sings the Cole Porter Songbook. Dylan, talvez, seja o cara com mais gente interpretando ele. E não tô falando de qualquer um, a gente tá falando de Nina Simone, Patti Smith, Joan Baez, Jeff Buckley, Jimi Hendrix, The Rolling Stones, George Harrison… a gente tá falando de um cara que é difícil ficar imune. Acho incrível gravar Bob Dylan, como acho que seria incrível gravar Belchior, Cazuza, Legião Urbana. Acho que a gente tem que celebrar esses caras. Não uma reverência boba de endeusar. Bob Dylan não é nenhum deus não, é só um cara muito foda.

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