Entrevista: Luedji Luna

Muita coisa aconteceu desde que Luedji Luna falou ao Música Pavê pela última vez. Não só ela passou pela transformação de se tornar mãe, a cantora desenvolveu sua musicalidade em caminhos diferentes daqueles que ela comentou na época que pensava em seguir, o dos beats e produção eletrônica.

Gravado no Quênia ao lado de Kato Change (que assina a co-produção com a cantora), Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água apresenta uma sonoridade consideravelmente diferente do que esperávamos a partir de sua fala. Em flertes com o jazz, é um trabalho que abraça o som orgânico feito por banda, sem os beats eletrônicos, nem os batuques de seu primeiro álbum, Um Corpo no Mundo (2017).

Falando novamente ao Música Pavê, a artista comentou as quebras de expectativas que a obra trouxe e o belíssimo filme, dirigido por Joyce Prado, que acompanha seu lançamento.

Música Pavê: Relendo nossa última entrevista, você comentou de uma vontade de trabalhar mais com beats e música eletrônica. Ao ouvir Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água, percebo que ele não é o disco que eu imaginava que você faria. Como foi o processo de definir a estética dessa obra?

Luedji Luna: Um Corpo No Mundo foi um disco fundamentado na percussão. Tinha dois percussionistas na banda e outro na produção, então ele traz essa sonoridade. Depois de três anos circulando com ele, acabei namorando com o rap, fiz o EP de remix Mundo, fiquei flertando por aí… Eu estava em uma pesquisa do afrobeat, do afro house, namorando essa nova geração de artistas africanos. Mas eu sou uma pessoa de banda, do orgânico e, apesar de ter feito essa pesquisa, de ter namorado com essa música mais produzida, achei que seria uma ruptura muito brusca não ter essa coisa de banda, que é o que me formou musicalmente como identidade. Acabou indo mais pro jazz, pra um rolê diferente da sonoridade de Um Corpo no Mundo, até porque o set tá diferente – tem teclado, tem bateria. Eu acho que tem sentido ter remix para algumas dessas canções, algumas delas já nascem com essa característica, mas foi uma escolha estética de ir para um caminho mais orgânico e trabalhar com banda mesmo.

MP: É interessante como o novo disco já começa direto me levando às cordas, não à percussão, na primeira faixa. Você queria já nos primeiros momentos da obra propor uma quebra de expectativas e comunicar que ela está em um lugar muito diferente do álbum anterior?

Luedji: Sim, eu acho que Um Corpo No Mundo era muito sobre uma crise de identidade, uma busca pela África ancestral, e eu trouxe muito essa África diaspórica, que se ressignificou. Então tem Cuba, tem afrobaianidade, tem muito disso. Já nesse segundo disco, eu fui para a África literalmente – foi um disco gravado no Quênia -, e busquei a África que ficou, que permaneceu, uma África moderna que está lá produzindo, rica em ritmos e em diversidade musical. É um pouco sair desse lugar que a gente já tem um estereótipo, essa relação de África com a percussão, com os ritmos do candomblé, que é o que a gente tem como herança. A minha questão de Um Corpo no Mundo já está resolvida, agora eu quis buscar outras Áfricas.

MP: Falamos bastante até agora sobre quebra de expectativas e eu queria te perguntar: O que você percebe que as pessoas esperam da artista Luedji Luna?

Luedji: Eu sentia que as pessoas esperavam um álbum tão bom quando o primeiro, eu senti essa pressão. Como ele foi um disco que impactou bastante, abriu caminhos para a minha carreira e é um disco muito querido, apesar de não ser tão conhecido – ele é conhecido, mas tem gente que não conhece (risos) -, ele teve certo alcance e tem um público cativo que me respeita por conta desse primeiro trabalho. Então, eu sentia que as pessoas (o público, o crítico), esperavam um disco tão bom quanto ou melhor que Um Corpo no Mundo. É uma grande pressão para quem só quer fazer um disco e ficar de boa (risos), mas eu deixei pra lá e só fui honesta com a música mesmo, fazendo o que ela demandava, e saiu como saiu.

MP: Outra coisa que me chama atenção na obra é saber que você é uma grande vocalista e preferiu fazer um “disco de banda”. Percebo existir no Brasil uma certa expectativa de que as cantoras vão apenas soltar a voz, e você – como co-produtora também – optou por fazer um álbum mais jazzístico. Como você observa essa dinâmica?

Luedji: É, culturalmente se pensa a mulher nesse lugar. A gente tem grandes intérpretes, as divas da MPB etc., mas eu sempre fiz questão de demarcar o lugar da mulher na composição, de assinar o meu próprio discurso, ser dona da minha própria narrativa, mais até do que “ser cantora”. A minha relação com a escrita é anterior ao canto. Eu escrevo desde criança, é uma questão muito pertinente à minha existência no mundo, é como eu me expressava e ainda me expresso hoje. O canto veio depois, com vinte e poucos anos, que eu decidi cantar e fui fazer aulas, é uma relação ainda em construção. Acho importante eu disputar esse lugar da escrita, porque existe realmente um silenciamento das vozes, a gente vive em uma sociedade que não escuta a mulher, e sobretudo a mulher preta. Então, quando eu venho pra esse trabalho autoral, em parceria com outras cantoras e poetas femininas, pretas, é muito na afirmação desse lugar. E na produção também, a gente tem esse hiato da mulher ficar muito nesse lugar da intérprete, que musicalmente é até muitas vezes desrespeitada. A relação é complexa entre a cantora e os músicos, que geralmente são homens também – é um mundo muito machista. Eu já sabia o que eu queria em termos de discurso, mas também em termos de som, de estética. Então, eu fiz questão de assinar a produção ao lado de Kato, um indivíduo muito sensível. Eu gosto de músico livre, a gente foi pro estúdio e a gente groovou. Quando você percebe que a banda está brilhando no disco, é porque eles estão livres, estão sendo música. A gente gravou tudo ao vivo, todo mundo juntão, e isso dá outra característica para o som, né?

MP: Você comentou a questão da escrita, e tem poemas no disco também. Como você sabe qual palavra vai ser cantada e qual será recitada?

Luedji: Isso eu não sei! Nesse disco, estou muito como letrista, só tem duas músicas que eu musiquei, dois poemas (de Dejanira Rainha e Cidinha da Silva), mas boa parte das outras canções são escrituras minhas que fui fazendo nas viagens e turnês e fui mandando para os músicos. As que eu achei que ficariam legais com música, viraram música. Acho que a gente só sabe na feitura, é um processo que a gente descobre empiricamente. Não tem como bater o olho numa poesia e falar “hmm isso é música”. Às vezes, tem até uma estética que parece que vai dar certo pelas rimas, mas às vezes não dá, sabe? É só mesmo fazendo para saber.

MP: É claro que eu quero conversar com você sobre o filme também. Primeiro, gostaria de entender a linha do tempo: O que veio primeiro, a intenção de fazer um filme ou as músicas que acabaram nele?

Luedji: Eu tinha as músicas primeiro. Eu estou há um ano maturando esse trabalho, fiz três shows experimentais vendo como eu me sentia com as canções e como o público recebia, por isso foi tão fácil ir para o estúdio. Então, já tinha as canções e escolhi as que já tinham esse roteiro pronto, já tinham uma história, porque o disco é sobre isso, as minhas histórias e meus afetos, né? Então, escolhi as canções que já eram um roteiro por si só, e escrevi tudo na minha viagem para o Quênia.

MP: O filme é uma compilação de videoclipes. Não tem falas, não tem legendas, é todo posto à interpretação de quem vê. Ao mesmo tempo, você parece ter uma mensagem muito clara a ser contada. Como é trabalhar essa dinâmica?

Luedji: Acho que a Joyce tem essa capacidade, pelo fato de ser uma diretora mulher e preta que tem intimidade comigo por já trabalhar comigo há quatro anos, de traduzir muito bem a minha música em imagem. É muito difícil as pessoas não compreenderem o discurso, é um trabalho muito coeso. Mas até a própria música, quando vai pro mundo, cada um traz para si, se apropria. [Joyce e eu] dialogamos muito sobre tudo, até sobre as lentes, é um trabalho muito horizontal. Então, quando o disco vai para a imagem, tem pouca brecha para outras interpretações ou confusões. Sinto mesmo que o olhar dela é uma extensão do meu trabalho.

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