Entrevista: Lucas Santtana

foto por flora negri

Será que algum de nós já se recuperou por inteiro das eleições presidenciais de 2018? Seguida por um ano particularmente doloroso em todas as áreas que compõem a nação (como meio ambiente, economia, saúde, educação, cultura e, é claro, política), não foi fácil tratar as feridas abertas por tantas violências nas relações interpessoais (online ou não) no período eleitoral já tendo que, na sequência, lidar com o grau de horror nas notícias.

Para se tratar em meio a isso, Lucas Santtana optou pelo que ele faz melhor (e já conquistou nossa atenção há tantos anos): Música. Ele sentou e compôs as músicas que fazem parte do recente O Céu É Velho Há Muito Tempo, um disco gravado em voz e violão que trata de forma introspectiva e sensível o viver no Brasil desse fim de década.

Às vésperas do show de lançamento do álbum (SESC Vila Mariana, em São Paulo, no dia 17), o músico baiano falou ao Música Pavê sobre as escolhas criativas presentes na obra. Após o show na capital paulista, Lucas realizará turnê por outras nove cidades brasileiras ao longo de janeiro e fevereiro.

Música Pavê: Ao ouvir O Céu É Velho Há Muito Tempo, quem acompanha sua carreira é relembrado de uma das suas maiores características – a de ser um músico que canta sobre o que está observando no momento, muito atento ao hoje, quase um “cronista”. Você se percebe assim também?

Lucas Santtana: Eu acho que sim. Procuro estar sempre conectado ao que está acontecendo, de forma que o disco seja apenas uma extensão da minha vida naquele momento. Tem disco como O Deus que Devasta Também Cura, que eu fiz depois de uma separação de um relacionamento de muitos anos e representa aquele momento. Já esse novo foi inevitável depois das últimas eleições. Ele é quase uma terapia pessoal, intuindo que muitas pessoas estavam passando pelos mesmos tipos de sentimentos, questionamentos e observações. Às vezes, meus discos são mais pessoais e, em outras, são de questões mais externas – que não deixam de ser internas também, porque as questões políticas estão dentro também.

MP: Tem sido difícil demais não se deixar afetar, né?

Lucas: Sim, mas eu penso também que política é uma coisa que você faz diariamente na sua cabeça. Tem várias decisões que você toma no seu dia a dia, no seu trabalho com os colegas, que muitas vezes são questões éticas, ou do seu ponto de vista, e são momentos em que você tem que tomar decisões de abrir de uma forma ou de outra. Isso também é política, sabe? Porque lidam com questões morais e tal. Existe o lado externo, de lutas políticas em campos progressivos, mas também é uma coisa de você com você mesmo o tempo todo.

MP: Voltando ao assunto, achei interessante você definir o novo disco como uma terapia pessoal porque algumas músicas me pareceram servir como ressignificações. Brasil Patriota, por exemplo, chega em uma época em que a bandeira teve seu uso deturpado. Já Um Professor Está Falando Com Você traz na letra várias ressignificações a temas que também se perderam no meio do caminho.

Lucas: Brasil Patriota eu fiz porque tenho a impressão de que uma boa parte da população não tem o menor afeto pelo país, uma parte grande da classe média. E isso foi muito incentivado pelos jornais depois das eleições de 2014, esse apartheid de “nordestinos, pobres e negros votam assim”, “entre os ricos, se vota assim”. Então, para muita gente, o país deveria ser lugar de gente loira, de olho azul, eles querem viver como se fossem norte-americanos. Só há um sentimento de patriotismo na Copa, ou quando vem o Bono Vox e levanta a bandeira no show do U2. Mas não há solideriedade, ou afeto. Por isso que, quando tem chacina, muitos respondem nas pesquisas que está certo. No outro dia, divulgaram um vídeo de moradores do Morumbi que diziam que deveriam entrar em Paraisópolis e “fazer uma limpeza ali”. É a ideia de uma limpeza étnica. Já vi no aeroporto pessoas incomodadas porque tinha uma pessoa pobre ali que não sabia nem abaixar a mesinha no avião. É uma falta de comprometimento e de entendimento de qual povo você faz parte. E Um Professor foi pelo motivo que você fala mesmo, de como as coisas estão de ponta cabeça. A gente tem uma justiça completamente corrompida e politizada. Ficam acusando as escolas – “escola sem partido” -, como se fossem de esquerda, e o Judiciário, o único lugar que deveria ser totalmente neutra, é totalmente corruptado por gente de direita.

MP: Sobre o formato mais minimalista do disco, lembro daquela máxima que diz que a maneira como uma ideia fala mais alto é o sussurro. Tive a impressão de que você concorda com isso e soube, em meio a tantos gritos, comunicar essa mensagem da melhor maneira.

Lucas: Sim, eu poderia ter gravado com banda – tem músicas que poderiam ter uma grande potência de som para acompanhar o discurso -, mas achei que a gente já está vivendo um momento de dificuldade de escuta na sociedade. Todo mundo só quer gritar sua verdade, eu achei que era hora de falar baixo mesmo. Quando lancei o clipe com a Duda [Beat], depois também o Ninguém Solta a Mão de Ninguém, recebi muitas mensagens dizendo “pena que você falou do Lula, mas, mesmo assim, adorei a música”, sabe? Talvez, se eu tivesse falado aquilo de outra maneira, a pessoa não teria ouvido, ou teria feito um comentário mais agressivo. Da maneira com que é falado, a pessoa discorda, mas ela aceitou ouvir, e gostou. O intuito era ir por baixo da gritaria e chegar às pessoas de outra maneira.

MP: Tenho para mim que o voz e violão foi também um formato que denunciou melhor a melancolia desta época. Talvez se os arranjos fossem para uma grande banda, como você disse, esse sentimento poderia ter sido esvaziado.

Lucas: Eu compus essas músicas logo após as eleições, era um sentimento realmente de muita tristeza. Mas acho que esse é um dado meu, minhas músicas costumam ser mais melancólicas mesmo – sempre ouço isso dos amigos. Deve ser uma coisa minha que se manifesta ali. E como meu trabalho sempre teve isso de ser muito verdadeiro, de eu fazer sinceramente o que quero, não ir pelas modas e não sei o quê, é natural que o que eu seja ali se manifeste mesmo.

MP: Pois é. E no caso de O Céu É Velho Há Muito Tempo, eu não sei dizer se termino a audição do disco otimista ou pessimista. Você tinha em mente que a obra fosse uma coisa ou outra?

Lucas: Não. Eu tinha em mente falar sobre o que eu estava observando na sociedade e o que eu e meus amigos estávamos sentindo. Foi mais, como você falou, ser um cronista e criar um painel do que estava acontecendo. O título do disco é otimista, né? Ele fala que o céu e as entidades da natureza estão aí há muito tempo, já viram coisas como o nazismo começar e terminar. O que eu falo sempre é que o grande exercício que eu sinto no momento é se preparar psicologicamente para o tempo. Pode ser que essa onda de extrema direita dure só mais três anos, e uma ala progressista vença as próximas eleições, ou pode ser que ela dure vinte anos. Um ano só desse governo foi muito aterrorizante, todo mundo exaurido ao final do ano passado. Então, a gente deve se preparar porque, talvez, isso dure muito tempo – a gente não sabe. Acho que esse é o grande exercício interno: Combater, mas, ao mesmo tempo, ter isso em mente, que isso pode durar muito tempo. Porque essa extrema direita de agora tem essa coisa dos algoritmos e da imprensa de um jeito muito diferente da Ditadura Militar. É um governo “democrático”, “dentro das instituições”, mas que pratica essa comunicação que é quase uma tortura mental. É uma sofisticação de ditadura muito bem feita.

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