Entrevista: Laura Lavieri

fotos por karin santa rosa

Foram dez anos que separaram o início da carreira de Laura Lavieri como cantora e Desastre Solar, seu primeiro álbum solo. A artista, que conhecíamos como a segunda voz no trabalho de Marcelo Jeneci, entrega agora um trabalho de onze faixas que mostram diversas nuances de sua musicalidade, em par com a produção brasileira atual.

Com produção de Diogo Strausz e lançamento pelo selo slap, o disco teve também um processo vagaroso desde o momento em que a paulistana entendeu que se dedicaria à sua gravação, há três anos, tendo entrado em estúdio há um ano e meio e passando desde então por um processo de financiamento coletivo. Por telefone, ela contou ao Música Pavê sobre as escolhas estéticas e o momento em que o álbum chega, tanto em sua vida quanto no mundo.

Música Pavê: Depois de tanta espera por um disco seu, a gente dá o play em Desastre Solar e a primeira faixa é instrumental. Isso é uma brincadeira com cara de anticlímax, ou um convite para entrarmos mais no disco?
Laura Lavieri: Ela é uma introdução, é uma questão de conceito do disco. Eu demorei pra fazer um disco solo porque eu nunca vi graça em carreira solo, gosto de fazer as coisas em conjunto, gosto de banda, de criar junto. E é muito recorrente você ver cantoras muito ligadas em seus personagens, na exploração da imagem, com a figura feminina. Eu não vejo graça nisso também. A ideia era o disco ter uma história, uma narrativa, uma coisa pra contar, e eu ser mais um veículo pra transportar essas coisas. O disco chama Desastre Solar também um pouco por isso. Sou eu me preparando e preparando as pessoas pra qualquer tipo de frustração… também (risos), na verdade esse é o décimo quinto significado (risos). Eu sou da opinião que a expectativa sempre vai ser frustrada, porque a realidade traz algum tanto de surpresa, então, por mais que o que aconteça seja parecido com o que a gente espera, sempre tem alguma coisa que a gente não podia calcular, sempre tem um nível de frustração. Eu fiquei pensando nisso e vi que eu estava fadada à frustração. Porque a galera gosta muito de mim, mas também está esperando algo muito parecido com o Jeneci, e, se eu for fazer um disco, eu não vou fazer como ele faria. Então, de alguma maneira, tenha alguma coisa inconsciente de fazer uma pegadinha com isso, mas foi uma vontade de introduzir a pessoa nesse universo, porque eu tive a preocupação de fazer um disco que soasse como uma unidade, que construísse uma narrativa dentro dele, e você pudesse ouvir e embarcar em uma viagem nele como um todo.

MP: Sobre expectativas, eu imagino que seja difícil conciliar o que as pessoas esperam também porque você transita entre públicos muito diferentes, dos que te conhecem com Jeneci até o pessoal do Escritório. Não deve chegar uma única expectativa até você, mas várias.
Laura: (Risos) É, e é meio por isso que eu também odeio definir que estilo que é o disco. Eu gosto de música, e meu gosto realmente é amplo. Eu tenho motivações diferentes pra gostar ou não das coisas, pra mim o que interessa é se a música me emociona, se ela é verdadeira em algum sentido. Isso também foi um desafio pra fazer o disco. A gente não sabia quantas “Lauras” a gente daria conta, em quais facetas, quais estilos, a gente iria apostar, sabe? Foi difícil, de tantas que eu queria gravar, definir mais ou menos o universo do disco, porque ele tinha que fazer sentido como unidade.

MP: E como foi o processo de escolher o repertório, de sacar quais músicas que outros escreveram e agora você teria como “suas”?
Laura: Foi muito maluco. Fiz muita pesquisa, testei muita coisa em show, fiz até algumas demos, ensaiei coisas com amigos e, no fim, praticamente todas as músicas entraram em cima da hora (risos). Acabou que o critério ficou sendo as músicas que a gente conseguiu entender que fariam sentido juntas, que fariam sentido ser gravadas naquele momento. Meu trabalho de intérprete opera bastante nesse sentido, de, no resgate de uma música que já foi gravada, fazer que a regravação seja significativa e se justifique, que a interpretação traga alguma coisa nova – ou pela original ter sido gravada há muito tempo, ou em um tempo muito diferente. Essa mudança traz um novo sentido ou numa roupagem diferente de um conceito musical e de arranjo, ou simplesmente na questão do feminino em oposição ao masculino. Marcos Vale cantar Tira a Mão e eu cantar isso, um homem e uma mulher, é muito diferente. Das inéditas, a do Jeneci eu já conhecia, gostei muito desde que ouvi pela primeira vez e ela ficou guardada na minha gaveta. E, na hora da gente gravar, eu tava achando que estava faltando uma música mais dramática e romântica, e a letra dialogava com o momento de vida que eu estava passando. Quando eu comecei a espalhar que eu queria fazer um disco, as pessoas começaram a oferecer composições. Alberto Continentino chegou um dia antes da gente entrar no estúdio com O Sol no CéuGui Amabis me deu Mais um Whisky, que fez pensando em mim; Tudo Outra Vez foi uma que o Lucas [Oliveira] fez pra mim, a gente tinha uma relação muito íntima, eu tinha muita admiração por ele, mas por causa dessa relação que eu fui conhecer o compositor, porque ele não tinha muita coisa lançada. Foi uma consequência natural, a música tinha muito a ver com a nossa história, não tinha como não gravar. Me Dê a Mão eu pedi pro Jonas [Sá], foi uma encomenda. Tanto Gui, quanto Jonas e Alberto são compositores que eu admiro muito, então tem o trabalho de escolher a dedo os autores contemporâneos com quem me identifico e que precisam ser amplificados para além do público deles. É louco, eu fico tentando dar uma justificativa bonita, mas tem isso do que você falou, da autoralidade, de pegar para mim uma coisa do outro. Esse é o crivo. Se eu ouço a música e ela me emociona, eu vi um sentido muito forte naquela música como se ela fosse minha… é meio simples assim.

MP: Por mais simples que seja, é extremamente subjetivo. Isso de “essa música bateu em mim”, a música vira “sua” mesmo.
Laura: Sim. O Alberto, que é um dos meus maiores ídolos (risos), desde que eu falei que ia fazer o disco, ele me mandou várias músicas, umas cinco. E eu não conseguia me identificar com nenhuma, eu ficava muito mal, como eu ia falar pra ele “não, obrigada” (risos) e também ficava achando que tinha algo muito errado comigo, mas é mesmo algo muito subjetivo.

karin santa rosa

MP: Sobre a estética musical, eu consigo ver o disco dialogando muito com o Brasil de hoje, com as referências do que a gente hoje, mais do que nunca, entende como herança da música afro-descendente no pop, do soul e disco ao samba. Quando eu vejo Tira a Mão, por exemplo, tem uma essência do que é muito brasileiro e muito contemporâneo ao mesmo tempo. Como foi achar a cara que essas músicas têm? Saber que este é seu primeiro disco influenciou esse processo?
Laura: Não teve um método, meio que foi acontecendo. Primeiro, eu fiz essa escolha de sair de São Paulo. O motivo principal disso era o disco, porque eu conheço muita gente boa e não sabia como escolher quem estar comigo. Comecei saindo da zona de conforto, eu pensei que fazer um disco com as pessoas que estavam à minha volta, soaria como tudo o que já existe, como o que eu já tinha feito. Quis vir para o Rio tocar com outras pessoas, ver se teria outro sotaque. Também tem a ver com nossa decisão dele ser “solar”. Acho que desenvolvi com Jeneci uma estética romântica mais melancólica, mais introspectiva, e até o meu papel como cantora era muito mais “pra dentro”, muito mais suave. O que me levou à necessidade de fazer o disco foi uma depressão e uma doença de pele autoimune grave, eu tive que me tratar e entendi que em última instância isso era fazer um disco. Nessa transição, sair de SP, que é mais cinza, sair de um lugar mais introspectivo e melancólico com Jeneci, foi uma decisão até por uma questão terapêutica (risos). Decidi que seria solar, mais extrovertido, mais palatável, mais feliz, de alguma forma. Acabei experimentando tocar com muita gente, fiz umas cinco bandas diferentes, tocando diversos repertórios diferentes também em estilos, pra entender também qual era a onda. Eu sempre quis cantar um samba-reggae, eu falava pro Diogo “ah, eu sempre quis cantar um blábláblá, sempre quis também esse outro blábláblá”, e muitos desse “sempre quis” ficaram de fora. Por exemplo, eu tenho uma veia mais pra esse lado do Escritório, porque adoro rock, punk, esse lado underground mais sujo que seria difícil traduzir em um disco solar. Fiquei triste, ia entrar uma música do Júpiter Maçã que não rolou encaixar. Tem isso, você forma uma banda, uma sonoridade, e chega uma hora que não tem como adequar tudo ali dentro. Com as pessoas que eu reuni, com as músicas que eu reuni, as coisas se formaram desse jeito. É totalmente verdade o que você falou, essa influência toda da cultura negra é muito forte, porque é uma vertente que sempre me nutriu, me influenciou. Ai é isso, você bota Alberto Continentino no baixo, fica um pouco difícil de sair disso (risos). No caso de Tira a Mão, ela entrou quase na hora de entrar em estúdio, a gente nunca tinha tocado e fez o arranjo lá no estúdio mesmo. Eu falei “pronto, não acredito que vou ter meu samba-reggae” (risos).

MP: Eu vejo que a gente que trabalha com criatividade foge do conceito “limite”, mas, ao mesmo tempo, é o que a gente mais precisa pra produzir. O limite é produtivo.
Laura: Sim, totalmente. Uma frase que me guia muito é uma do José Miguel Wisnik: “A liberdade é a consciência do limite”. Se você não sabe realmente onde começa e onde termina o território, não é liberdade, é uma perdição. Se você sabe que começa aqui e termina ali, você sabe que pode fazer o que quiser nesse espaço. E é muito louco você ter falado isso, porque a minha doença foi de pele. Em muitas medicinas alternativas, a pela é vista justamente como o órgão que te limita com o mundo externo. Eu tive psoríase, minha pele abria e ficava em carne viva. O meu limite acabava, eu virava quase uma mistura louca com tudo. Por isso foi terapêutico fazer um disco: Achar os meus limites e poder transitar entre eles.

MP: Voltando ao assunto de Tira a Mão, faz sentido gravar essa música em 2018, com a mensagem que surge a partir dela. Quando você foi começar a divulgação do álbum, a primeira faixa foi Respeito. Ou seja, há um diálogo muito claro com essas questões tão relevantes no país hoje. Como foi trabalhar essa intencionalidade de discurso?
Laura: Talvez tenha sido a parte mais difícil. Voltando àquele papo de ter que me emocionar com as coisas para poder trabalhar com elas, eu me toco muito com esses assuntos. Não sou uma pessoa de política partidária, nunca fui, e tem sido um momento difícil de viver porque toda essa crise do sistema político é uma coisa que, pra mim, é difícil de se engajar porque eu nunca acreditei nesse sistema. Eu fico olhando e pensando “gente, mas é óbvio, isso nunca funcionou e nunca vai funcionar”. Fico com muita dificuldade de me posicionar e de fazer alguma coisa. Quando ouço músicas como essas, elas são literais. E tem esse sentido, de estar tudo tão perdido, tão distante dos valores que importam, tudo tão bagunçado, tão sem limite, sem respeito, que elas são o maior ato político que eu poderia fazer de fato. É amplificar uma mensagem. Eu não vou falar do PT ou de corrupção, eu vou falar sobre uma coisa muito básica, porque parece que é isso que ninguém entendeu (risos). Quando você vê o tamanho da palhaçada e da confusão que a gente vive, você fala “caramba, vamos voltar pros temas básicos, vai” (risos). Foi até um acalanto. Eu pensei sobre isso, eu sabia que tinha a minha dor pra resolver com esse disco, que teria questões românticas e supostamente supérfluas pra falar, mas como fazer um disco em 2018 e não me posicionar? Não dá para cantar só sobre pássaros, flores e amores. Foi uma sorte encontrar essas músicas, seria difícil eu me apropriar desses discursos mais políticos se não fossem essas canções, que são amplas, de uma política do dia a dia, são questões éticas. Foi fácil de abraçar, porque me representa e representa um papel político que eu posso ter, que eu posso encarar.

MP: É interessante como existe um paralelo sociológico entre o conceito “voz”, de você ser uma pessoa que vão ouvir o que você falar, com o fato de você ser uma cantora e intérprete, então sua “voz” é seu principal instrumento de trabalho. É mesmo um trabalho de encontrar o que você entende como mais relevante para as pessoas ouvirem.
Laura: Totalmente, e foi uma coisa que eu percebi sobre o papel do intérprete. É engraçado, a gente vive um tempo em que a autoralidade é quase um pré-requisito, você tem que cantar a música que você faz, e nem sempre foi assim. Na verdade, foi ali em meio a todas as questões da ditadura que mudaram um monte de leis e um monte de paradigmas que mudaram também essa dinâmica do autoral. Elis Regina, que era uma grande intérprete, falava sobre isso, que mudou a lei e, pra ganhar mais dinheiro, os compositores começaram a cantar e os cantores, a compor. E ela falava que era triste, porque agora tinha um monte de disco e gente cantando bem uma música ruim ou cantando mal uma música boa. Foi uma coisa que eu demorei pra entender, achava que eu só faria um disco quando começasse a escrever minhas músicas. Na verdade, a gente é um povo vira-lata que não conhece a própria história, que não sabe o valor da cultura e da história, porque isso não foi ensinado, foi roubado desde o começo do país. É muito importante como você conta uma história. Tem muitas histórias nossas que estão esquecidas porque a gente tem essa “falha de caráter cultural”. É muito importante sim recontar algumas histórias. É bacana pra caralho você poder criar algo novo, mas tem um monte de história que já foi contada e que ninguém ouviu. Eu lancei como single Quando Alguém Vai Embora, de Cyro Monteiro e Dias da Cruz, dois sambistas importantíssimos e que poucas pessoas conhecem. Todo mundo falava “você que compôs?” e, quando eu falava que não, as pessoas ficavam decepcionadas. Mas muita gente veio me falar que depois sacou o trabalho dos caras e achou demais. A gente precisa retomar as histórias e ter cuidado em como a gente conta as histórias. Esse papel de dar voz a um discurso e a uma história é importantíssimo. E é muito louco, porque minha relação com esses compositores, mesmo os que eu não conheço tanto, até parece que a gente criou um pacto de pegar o que elas criaram e ter essa responsabilidade de amplificar isso. É uma responsabilidade mesmo.

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