Entrevista: Jair Naves
Ao longo dessa década, o nome Jair Naves sempre trouxe uma grande força poética em seu trabalho, seja em letras, em interpretação ou em composição. Não foi diferente no recém-lançado Rente, seu terceiro álbum solo.
Como comentado ao longo desta entrevista, o disco vem após uma turnê de reunião com sua antiga banda, Ludovic, e também após o projeto NavesHarris, no qual ele toca e compõe com sua esposa, Britt Harris. Vivendo agora em Los Angeles, Jair veio a São Paulo para uma pequena temporada de divulgação do lançamento, e conversou com o Música Pavê por Skype.
Música Pavê: Ouvindo Rente, deu pra sacar que eu-lírico é o mesmo dos outros discos, a gente reconhece você para além de sua voz. Pensando na linha do tempo que sua carreira tomou, com Ludovic, com NavesHarris e com os álbuns solo, você imaginava quando lançou seu trabalho de estreia que estaria agora lançando um terceiro?
Jair Naves: Acho que eu não imaginava. Os discos que eu lanço são uma coisa de entrega total, uma coisa muito do momento. Eu já tive algum lançamento na vida que eu senti que não tinha me dado 100%, não tinha dado completamente o meu melhor, é uma sensação que eu não gosto. Para mim, um disco só acaba quando eu analiso e vejo que ali tem tudo o que eu poderia fazer de melhor naquele momento. Conheci pessoas recentemente, talentosíssimas, que têm um monte de músicas guardadas, dizendo que não querem lançar nada sem saber seu próximo passo. Isso não existe na minha forma de produzir, de trabalhar. Então, quando eu lancei o primeiro disco, certamente eu queria que tivesse um terceiro, porque eu não me vejo parando de fazer isso. Mas eu não podia prever nem ter certeza. Espero que tenha um quinto, e um sexto, mas… sei lá. Especialmente com as mudanças de quadros políticos e econômicos, a gente não sabe o que vai acontecer com a cultura e quais serão nossas condições de trabalhar. Enfim, eu não prevejo muito, e acho que essa entrega total do momento acontece em todos os discos. Se esse tiver que ser o último, estarei orgulhoso dele, e é o que eu pensei em relação a todos eles.
MP: Temos notado um deslocamento do centro da música idependente do Brooklyn, em Nova York, para Los Angeles, cidade para onde você se mudou há algum tempo. Como é para você estar lá, criativamente falando?
Jair Naves: Essa resposta é um pouco complexa. Para a parte criativa, ajudou muito, porque tive um contato mais próximo de artistas que eu admirava – não em um contexto pessoal, mas de poder vê-los em lugares pequenos. No momento em que eu cheguei, eu fiquei um pouco desorientado. Apesar de ter sido uma mudança planejada, ela foi repentina, então eu aproveitei muito para estudar e conhecer a cultura local em um primeiro momento. Eu fui para Los Angeles “por acaso”, porque por acaso conheci, me apaixonei e me casei com uma pessoa que mora lá. E estar lá me deu uma percepção de trabalhar com cultura que eu nunca tive antes e, pro bem ou pro mal, eu tenho um romantismo que carrego comigo, uma coisa de seguir muito minhas próprias regras, criar minhas próprias regras, e tenho uns certos pudores que algumas pessoas lá não tem. É a Meca da indústria, do mercado, com todo o peso que essas palavras carregam. Então, as pessoas lá têm uma visão muito objetiva e mercadológica. Foi um pouco assustador no começo ter esse intercâmbio com os artistas de lá, e aprendi muito. Essa visão acaba acrescentando porque, bem ou mal, é o que eu faço para viver também, mas foi um pouco assustador sair do cenário independente e undergroundíssimo do Brasil, ou de São Paulo, e aprender os valores de lá e como as pessoas lidam com isso. Ainda estou aprendendo, quero produzir mais com pessoas de lá e tudo o mais.
MP: Ainda sobre a mudança para LA, retomando a questão de como o eu-lírico de Rente parece familiar para quem conhece seu trabalho, penso aqui que você parece ter vivido aquela máxima de que “quando você se muda para outro país, você leva seus problemas com você”. Você passou pelo confronto consigo mesmo para perceber que ainda é lá nos EUA quem era no Brasil?
Jair Naves: Isso é a mais pura verdade. É engraçado, eu percebo nas pessoas que não são tão próximas de mim uma noção de “ah, ele tá bem, tá na Califórnia” e as pessoas subestimam as dificuldades de adaptação. É quase um “ele tá num lugar melhor agora”, aquele papo quando as pessoas morrem (risos). Na verdade, quando você muda para um lugar de cultura e idioma diferentes, onde você nunca esteve antes, por mais que eu tenha uma esposa lá, você só tem a si mesmo em muitos aspectos. Esse olhar internalizado é muito crítico também, você acaba descobrindo coisas sobre si com as quais você não tem contato na sua cidade, porque você está na sua zona de conforto, você acorda no “automático”, porque o seu corpo já sabe para onde ir e o que fazer etc. É um tipo de solidão muito específico. Eu acabei conversando com outras pessoas que me mandaram mensagens dizendo que também tinham se mudado para países novos e é um tipo de isolamento muito específico. Tem coisas que eu não enfrentava antes com a minha personalidade. Eu não sou a pessoa mais sociável do mundo, e lá eu tive que trabalhar nisso, por exemplo. O que eu faço musicalmente é muito mais ligado ao meu idioma do que eu imaginava ser. Acho até um pouco intransponível, sabe? Tô querendo fazer um clipe com um pessoal de lá, e as pessoas pedem para eu traduzir as letras e a gente percebe quanta coisa se perde na tradução. E nisso que você falou, eu levei comigo muito da aflição e do medo do que poderia vir a acontecer politicamente aqui. Essas coisas da esfera política me tocam de um jeito muito especial, só que dessa vez o que aconteceu fere questões de humanidade, de empatia e de civilidade que são muito sérias. Talvez, se eu estivesse aqui o tempo todo, o disco não tivesse esse teor tão acentuado. Mas por estar lá, por estar muito preocupado com as pessoas que conheço aqui, mesmo que não sejam tão próximas – vocês, as pessoas da banda, as pessoas que vão aos shows -, você vê as postagens das pessoas e pensa “será que tá tudo bem? Será que vai começar uma onda de violência que vai atingir quem eu gosto de alguma forma?”. Eu levei esse baita problema comigo.
MP: E como foi lidar com essa distância durante esse período todo?
Jair Naves: Não foi fácil. Aqui, eu já teria me sentido muito fraco e sem capacidade de mudança nenhuma, mas lá… Não sei se é culpa, mas eu me sentia mal por não estar aqui, sabe? É claro que não teria nada que eu pudesse fazer, ou que qualquer um de nós poderia fazer, para mudar o âmbito geral das coisas. Ainda assim, fiquei bem incomodado, bem fragilizado. Embora estivesse longe, eu me sentia muito próximo também e parte de um grande número de pessoas que estavam descontentes, mas não conseguiam achar um atalho para o diálogo, para o convencimento – só agora que algumas pessoas estão percebendo o quanto esse caminho é equivocado, levando a um caso de isolamento internacional etc. Então, não foi fácil.
MP: Enquanto ouvia Rente, fiquei pensando que só consigo explicar o seu som usando termos muito subjetivos, e imagino que não seja o único. Como que, com o passar dos anos, a leitura que os outros fazem da sua música moldou como você mesmo enxerga o que faz?
Jair Naves: É uma ótima pergunta que nunca me fizeram, mas é muito presente. Eu me lembro quando saiu o primeiro disco solo, as pessoas reagiam com certo choque quando viam o título do disco e eu me lembro que, depois de ler várias resenhas – e felizmente ele teve uma aceitação muito boa -, fiquei incomodado com as pessoas vendo um peso nas minhas palavras e um lado excessivamente melancólico. Lembro disso ter ficado comigo e ter se refletido no Trovões a Me Atingir, que eu considero um disco um pouco mais leve. Olhando em retrospecto, talvez tenha sido influenciado por isso. Eu não sei se molda muito, porque eu nem acho que eu tenha tanto controle, principalmente sobre as palavras. Eu aprendi que, se eu tentar racionalizar demais o que eu estou dizendo, acabo criando um bloqueio, ou filtro. E eu, por mais que leia tudo o que sai, não acho que isso reflita em algo do tipo “ah, que caminho eu vou seguir agora?”, ou “vou levar em consideração essas críticas, construtivas ou não, para ser melhor”. Eu não sei, acabo fazendo isso para mim mesmo e eu nunca tive a pretensão de ser um artista de números muito expressivos no quesito popularidade. Acho que, se eu seguisse esse caminho, definitivamente não trabalharia do jeito que eu trabalho. Acaba sendo aquela coisa de você escrever sua mensagem em uma garrafinha, lançar e torcer para que um dia alguém pegue aquilo e se identifique. É uma visão totalmente romântica, e até ingênua, mas é um lado pueril que deixa as coisas ainda divertidas para mim.
MP: Entre o último disco solo e este, você fez shows com Ludovic e também com NavesHarris. Você consegue enxergar essas experiências influenciando o processo criativo de Rente? Digo isso porque parto sempre do princípio de que tudo aquilo que passamos exerce algum tipo de influência no que criamos.
Jair Naves: Consigo sim, e acho seu comentário extremamente sensato. É isso: Quando me perguntam sobre influência, esperam que eu cite nome de músicos, discos, livros ou filmes, mas vai muito além disso. Dessa conversa, eu posso pegar coisa do seu vocabulário que eu ache interessante e usar isso para construir uma frase. Tocar as músicas do Ludovic depois de tantos anos fez com que eu enxergasse a importância de conexões mais rápidas. O último disco tinha introduções muito longas, as músicas tinham durações longas também. Tentei buscar alguma coisa mais rápida e, olhando com já algum distanciamento hoje, consigo reparar que quase metade das músicas começa já com a voz. Acho que a sonoridade de uma ou outra música também remete a Ludovic. E sobre NavesHarris, compor com a Britt, ouvir suas ideias, me trouxe um apreço pelas melodias que eu nunca tive tanto, ou não tinha consciência. Ela é uma ótima cantora, que cria melodias muito envolventes, e eu vi que as pessoas aqui, mesmo se não soubessem exatamente o que ela tava cantando, ficavam muito envolvidas com as linhas melódicas. Acho que isso, inconscientemente, me fez mudar meu jeito de cantar, uso uma voz que eu não costumava usar muito – menos empostada, em muitos casos mais sussurrada. Busquei usar todo o leque de possibilidades que minha voz pode ter, e isso vem muito dela, com certeza.
MP: E sobre a capa de Rente – que eu achei muito linda -, me conta a história dela?
Jair Naves: Então, a artista Renata De Bonis é amiga minha já há um tempo e, por acaso, ela estava passando por uma situação parecida, de acompanhar seu companheiro no exterior, e a gente foi trocando impressões durante a realização do disco. O conceito foi dela. Eu tenho a minha interpretação, de Rente ser de uma proximidade muito grande que até te impossibilita de analisar com propriedade o que você está disposto a analisar. O que eu gosto da imagem é que parece que você está muito perto. Em algum momento, me lembra as visões que você tem das pálpebras fechadas. Fico feliz que você tenha gostado, gosto também de como as pessoas fazem suas projeções na capa.
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