Entrevista: Clarice Falcão
Tem Conserto impressiona pelo conteúdo pessoal e pela franqueza com que dialoga sobre questões de saúde mental. E impressiona ainda mais quem tem uma ideia caricata de Clarice Falcão, fundada no bom humor de suas músicas mais antigas e em seu trabalho como atriz de comédia, principalmente no canal Porta dos Fundos.
Ouvir o álbum, lançado no dia 13 de junho, é se deparar com uma verdadeira humanização da artista, que relembra os desatentos que ela é muito mais do que um personagem. Seu bom humor está presente em faixas como Mal Pra Saúde, mas o que mais fica da audição – além da surpresa de uma ambientação eletrônica (produzida por Lucas de Paiva) diferente de seus trabalhos anteriores – é o conteúdo intimista de músicas como Esvaziou e Minha Cabeça.
Falando ao Música Pavê por telefone, Clarice comentou um pouco sobre o processo criativo por trás do disco e a relevância de se conversar sobre os temas presentes na obra.
Música Pavê: Clarice, tenho a impressão de que Tem Conserto é um trabalho que apresenta uma identidade sua que nem sempre foi vista nos lançamentos anteriores. Penso que a escolha de Minha Cabeça, uma música sobre como você se vê, como primeiro single foi feita para reforçar essa ideia.
Clarice Falcão: Acho que você tem toda a razão. Como eu tenho ciclos – lanço disco, depois faço outras coisas já pensando no próximo -, em três anos eu mudo muito, não só o que eu penso, mas o que eu escuto, o que eu tô curtindo. E nesses três últimos anos, eu mudei bastante como pessoa mesmo e me deu uma vontade de falar de outros assuntos e de buscar outras sonoridades. Acho que Minha Cabeça é uma boa ponte entre o trabalho antigo e o de agora, é uma música que me descreve muito, quase uma autobiografia – pensei até em dar esse nome pra ela, Autobiografia. Acho que ela é uma ponte entre a sonoridade de antes e a de agora, porque ela tem uma doçura e uma melancolia que outras músicas minhas já tiveram.
MP: Imagino que seja necessário se afirmar quando as pessoas podem se contentar com uma ideia tão limitada sobre quem você é.
Clarice: Eu me lembro de me sentir muito distante em 2013 do que as pessoas achavam que eu era. Nem sei como dizer exatamente, lembro de achar muito mais legal cantar as músicas que falavam sobre assassinar alguém de forma doce e delicada, mas me vi presa nesse personagem, a minha pessoa ficava perdida ali no meio. Entrei num parafuso justamente por isso, chegava ao ponto das pessoas perderem a ironia das letras e levarem a sério, acharem que aquilo era uma puta música de amor, mas não, era música de maluca. Parece que as pessoas vão te vendo esporadicamente, a cada disco. Eu tenho família longe e tem isso, parece que no natal seguinte as pessoas vão te ver como você era no anterior. Aí você tem que chegar e dizer que, nesses últimos anos, isso e aquilo aconteceu, eu mudei etc.
MP: Notei que a palavra “eu” aparece bastante ao longo das músicas, dá a impressão de ser mesmo um disco que te expõe mais do que os outros.
Clarice: É um “eu” sem escudo, pois é. Pra mim, a maior dificuldade e o maior orgulho foi ter passado pelo escudo da ironia, do humor. [Os anteriores] tinham muito de mim, mas eu me zuava, era quase uma personagem de mim mesma. Nesse, a minha tentativa era descer esses muros todos e falar mais honestamente. E tem a coisa da vulnerabilidade, acho muito bonito ver um artista vulnerável, em carne viva. E sentia que eu estava sempre muito protegida pelo escudo do ser engraçada, do ser uma piada. Gosto de fazer piada, gosto de rir, mas acho que, agora, tento ser muito honesta, não irônica.
MP: Penso que era importante estabelecer esse senso de pessoalidade no disco para tratar o tema de saúde mental com a seriedade que ele precisa, né?
Clarice: Exatamente. Como eu convivo com isso há muito tempo na minha família, é um assunto muito importante pra mim. Meu avô se matou, minha vó morreu de overdose de remédio, enfim, a família toda batalha com isso. É um tema muito delicado e deve ser tratado. A música serve pra isso, é muito bom não se sentir sozinho. Era hora de falar disso. Eu lancei Minha Cabeça e as pessoas vieram me falar que se identificavam, e eu também sempre usei música para lidar com as minhas coisas.
MP: É interessante como você passa por vários processos terapêuticos com a música – quando compõe, quando lança e quando recebe o retorno das pessoas.
Clarice: E é muito bonito, porque tem duas obras de arte, a que você cria e a que os outros recebem, e essa segunda não é sua. Tinha gente que levava umas músicas de humor a sério, porque pra ela significava algo sério, e parte da beleza de criar é ver o que isso cria nos outros.
MP: Gosto que o disco chama Tem Conserto, ou seja, ele é também esperançoso desde o título. Era essa a intenção?
Clarice: Total, achei muito importante compor essa última música não só pro disco não ficar pessimista, mas pra não ser uma ode à depressão. É importante falar desses assuntos, mas eu precisava terminar o disco dizendo “pera aê, tem conserto sim”.
MP: Ainda sobre o tema da depressão, você nota algum senso de responsabilidade para tratar desses assuntos por ser uma pessoa em evidência – ou, em termos atuais, uma influenciadora?
Clarice: Eu acho que eu tento não botar um peso enorme nisso, pra não entrar na nóia de tudo o que eu faço, tudo o que eu falo… Enquanto você for verdadeiro consigo, consistente com seus próprios valores, você tá sendo o melhor influenciador que você pode ser. É o que eu tento fazer, pensar bem antes de fazer um novo trabalho, olhando pro que eu acharia disso se eu fosse ouvir e sobre o que eu posso falar.
MP: Ouvindo o disco, fiquei tentando adivinhar se a opção pela ambientação eletrônica era algum tipo de desafio criativo que você quis passar ou se foi uma escolha com base no que você tem ouvido agora. Como foi abraçar essa novidade?
Clarice: Isso já tem uns dois anos, quando eu comecei a ouvir música eletrônica de outra forma. Eu tinha até um certo preconceito, e eu comecei a ouvir mais e frequentar a cena eletrônica mesmo e vê-la não só como música, mas como uma cena que é muito interessante, é muito política. Isso me influenciou muito. Eu achava que não tinha nada a ver com meu trabalho, porque eu sou muito de letra e a eletrônica pode afogar a letra se não for feita com cuidado. Eu sei que é maluco, que é ousado, mas decidi fazer, aí chamei o Lucas [de Paiva], que eu nem conhecia direito – ele é namorado da minha amiga, podia ser aquele namorado da amiga e daria tudo errado (risos), mas ele é muito sensível, então foi muito bom de trabalhar, a gente fez tudo com muito cuidado. Não é fácil falar de depressão numa música de pista, mas é isso que eu acho maneiro. Já tem muita música de depressão com violão, acho que fazer um house me instiga, me dá vontade de fazer mais coisas novas.
MP: E o que você está pensando para o show desse disco? Porque imagino que, mesmo sendo o Tem Conserto ao vivo, entrará também parte do repertório anterior, né?
Clarice: A gente tá fazendo o possível pra chegar naqueeeele meio termo, te remeter às músicas antigas por outros ângulos e ela não ser totalmente diferente, mas também não ter dois momentos no show, sabe? A gente já fez algumas experientações em uns vídeos ao vivo, que a gente fez mais pop, e acho que a gente tá conseguindo. São três synths, vai ser uma syntharada (risos), vai ser muito legal.
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