Entrevista: BNegão

foto por ândrea possamai

Seja com Planet Hemp, com seu Seletores de Frequência ou em inúmeras parcerias nas últimas décadas, BNegão firmou-se como um nome sempre interessante no encontro do rap com outras vertentes da música. Em 2020, o carioca inaugura as atividades em um projeto bastante diferente do som mais nervoso com o qual ficou conhecido, agora cantando Dorival Caymmi.

Começou com o show Bernardo Santos canta as Canções Praieiras (e Outras Histórias do Mar, e agora começa a chegar às plataformas de streaming através da faixa (e clipe) Morena do Mar e de um documentário (ainda em produção) da relação do músico com a obra de Caymmi.

Às vésperas do lançamento do vídeo, Bernardo falou ao Música Pavê sobre o projeto, o legado do compositor e o momento no país no qual este lançamento chega.

Música Pavê: Dorival Caymmi está entrelaçado na cultura popular brasileira ao longo do século 20 como poucos artistas, com um repertório que segue vivo na voz de muitos músicos – e, agora, na sua também. Conta pra gente um pouco sobre a decisão de gravá-lo agora?

BNegão: Essa decisão de gravar veio depois de um bom tempo. Eu só ia fazer o show, sem gravar, porque a ideia era as pessoas ouvirem o original. Mas, desde o primeiro show, muita gente pediu e eu pensei que tinha três músicas com arranjos bem diferentes dos originais – Morena do Mar, que a gente tá lançando agora, Canção da Partida e Rainha do Mar (que sairão depois). Todas elas costumam ter outros instrumentos, e a gente faz como se tivessem sido lançadas no Canções Praieiras (1954).

MP: Chama atenção ver que o título do espetáculo traz seu próprio nome, Bernardo Santos, não como o BNegão de sempre. É porque o projeto tem um cunho mais pessoal para você? 

BNegão: É também por isso, porque tem um cunho pessoal gigante. Na verdade, todas as minhas paradas são pessoais, né? Nesse caso, como é uma quebra muito forte com as coisas que eu sempre fiz, eu preferi [usar meu nome] porque dá a dimensão de que é uma outra coisa, entendeu? Assim, as pessoas não vão esperando outra coisa, não vão esperando uma versão rap do Caymmi, ou sei lá o quê.

MP: O mesmo se repete no formato voz e violão, bem diferente do BNegão que conhecemos há décadas. É um formato bem mais vulnerável para o intérprete, creio. Como foi essa experiência?

BNegão: Então, esse é o show mais difícil que eu já fiz na vida. Qualquer erro fica na cara. Eu não sou cantor, né, sou rapper (risos), mas gosto de cantar, sempre gostei. E, graças a Deus, tá dando certo. Contei com muita ajuda, preparação vocal da galera do Coro Voz, que é um pessoal bem maneiro que tá acostumado a mexer com o pessoal que faz arte urbana, hip hop e tal, e tem a manha geral. E é exatamente isso, uma parada bem vulnerável, fica mais à flor da pele do que qualquer outra coisa que eu já tenha feito. Vai na essência mesmo, direto, sem intermediários, de espírito pra espírito. É responsa.

MP: Conta um pouco sobre este novo videoclipe, Morena do Mar? O que você mais gosta nele?

BNegão: Cara, eu estava indo pra Bahia e combinamos de fazer esse clipe. A ideia foi como fazer a interpretação para vídeo daquelas fotos em preto e branco, como se fosse das antigas, que fiz com a Ândrea Possamai, uma fotógrafa de Brasília que eu gosto muito. Foi filmado em 16mm, acho que ficou muito lindo, o pessoal arrebentou. Não tem o que eu mais gosto nele. O que eu gosto é que ele tá feito e tá lindo demais (risos).

MP: Morena do Mar chega como seu primeiro lançamento após Injustiça. Penso que cantar Caymmi é também um ato político, em favor da cultura brasileira. Como você avalia a oportunidade de lançar este projeto no Brasil como ele está? Qual a “urgência” do brasileiro (re)conhecer Caymmi?

BNegão: Eu acho fundamental mesmo. Faço isso de coração, mas, ao mesmo tempo, como missão. No ano retrasado, eu fui cantar no Lalá, ali no Rio Vermelho (em Salvador), e foi maravilhoso, cantei com Hiran – um dos moleques mais fodas que estão por aí. Cantei música minha, todo mundo cantou. Aí cantei Janaína do Otto, todo mundo cantou junto. Aí pensei em fechar com chave de ouro com Morena do Mar, do Caymmi. Cadê? Ninguém cantou (risos). Em pleno Salvador, ninguém conhecia. Fiquei chocado. Saí de lá pensando que esse projeto, que era só de coração de devoção ao cara que eu acho o grande mestre da música brasileira, acaba virando uma missão também.

MP: Você esteve em alguns dos discos mais celebrados de 2019, como os de Elza Soares e BaianaSystem – só para citar duas de suas parcerias recentes. Como tem sido essa troca com outros artistas neste nosso momento no país? (“Ninguém solta da mão de ninguém” me vem à mente)

BNegão: Cara, isso é uma coisa que me deixa muito feliz. Eu participo de muita coisa, e sou chamado pra três vezes mais parcerias do que eu consigo fazer. Esses dois são exemplos sensacionais porque são pessoas que eu amo muito e acho fundamentais pra cultura brasileira. Elza desde sempre, um avatar da música brasileira, e Baianasystem agora construindo a história deles, que pra mim é a melhor banda do Brasil em todos os sentidos – sua existência é também uma declaração política, a própria construção do som dos caras, brasileiro até o tutano, mas universal também. É maravilhoso ver essa história acontecendo, felicidade total.

MP: Temos falado muito de perseguição a artistas hoje em dia, algo que você já sofreu em sua carreira há décadas. Como você tem observado as dinâmicas da nossa sociedade em relação à arte, e como tem lidado com todo esse contexto?

BNegão: Tá nesse momento, né, de emburrecimento ensandecido. Muita loucura de pseudopastores, que não tem um Evangelismo benéfico, tipo Martin Luther King, que é libertário da mente. Ao contrário, é uma parada escravizadora, com vários pastores bizarros. Tem muito pastor aí que é foda, é só você procurar, mas esses mercadores da fé – empresários que se colocam como Jesus de não sei o quê, mas são um bando de anti-Cristo do caralho, são do capiroto total. E, nesse momento, essa parada tem uma penetração brutal na população em tudo quanto é extrato social. Junto disso, tem uma parada que eu estava até zuando dia desses, falando que é impressionante como não é só no Brasil, mas em várias partes no mundo, parece que aquela galera que fez umas coisas absurdas na Idade Média ficou presa numa zona fantasma depois de morrer e reencarnou todo mundo agora, sacou? É um momento obscuro e bizarro, em que você tem que falar que a terra não é plana. Que porra é essa? (risos) Que situação inacreditável. Nesse momento então é mais importante ainda a gente estar firme e forte na parada, e ir aonde der. Se der para mudar, vamos mudar. Se der só para incomodar, vamos incomodar. Mas deixar barato, nunca (risos).

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