“Entre a Terra e o Sol”: A Outra Banda da Lua em Nova Fase

foto por sarah leal

Transformação é um processo intrínseco à experiência humana. E a vida é, de fato, feita de mudanças: pequenas, grandes, internas, externas, simples e profundas. “O que eu preciso te contar é que, nessa vida, tudo se transforma, de dentro pra fora”, lembra A Outra Banda da Lua. É com essa mensagem de que Tudo se Renova que o sexteto mineiro encerra Entre a Terra e o Sol, seu mais novo disco, fruto de um processo coletivo de experimentação, criatividade e ressignificação artística.

Repleto de significados e atravessado pela necessidade de transformação, este trabalho marca um novo capítulo após a saída de Marina Sena, uma das fundadoras da banda. Para essa fase, Edssada (voz e guitarra), Matheus Bragança (voz e baixo), Mateus Sizilio (voz, bateria e synth), André Oliva (voz e guitarras), Davi Ramos (bateria) e Daniel Martins (percussão) passaram por um processo de reinvenção pessoal e coletiva que deu origem ao álbum, lançado pelo selo Alá Comunicação e Cultura em 3 de outubro.

“Perder Marina é perder a camisa 10 da seleção. No começo, tivemos bastante dúvida sobre o que íamos fazer e como íamos fazer. Mas, desde o princípio, tínhamos em mente continuar. Porque, apesar de Marina ter esse protagonismo, éramos muito coletivos na construção da banda e nas composições. Todo mundo compõe. Tínhamos certeza de que íamos conseguir chegar a um lugar, mas não sabíamos como. Esse disco foi a busca disso”, fala Matheus Bragança ao Música Pavê

Nos contornos de uma nova fase

Mantendo vivas as raízes do Sertão e do Norte de Minas Gerais, o trabalho apresenta uma reinvenção coletiva potente, com pluralidade de sons, diversas estéticas e elementos que se conectam entre si. Essa transformação foi resultado de um longo processo de criação que conferiu à banda uma identidade singular e bastante característica. 

Durante a pandemia, A Outra Banda da Lua realizou uma pré-produção que durou quase um ano, experimentando músicas e caminhos diferentes. Bragança conta que os integrantes foram amadurecendo ao longo do processo de criação de Entre Terra e o Sol, entendendo o que conseguiam fazer e onde queriam chegar esteticamente depois da saída de Marina Sena.

Segundo o músico, no consciente coletivo do grupo, eles foram descobrindo as possibilidades que tinham. “Acho que encontramos na coletividade a resposta para essa nova fase. Várias vozes assumindo a frente, todo mundo participando do processo e criando”, explica Bragança.

Davi Ramos complementa: “[Na banda] tem essa coisa de trazer um pouquinho das influências de cada um. O disco todo reflete isso. Cada um com suas influências, e essas influências dão a cara para as músicas”.

Junto ao guitarrista André Oliva, Bragança assume a produção do disco, que foi gravado nos estúdios Ilha do Corvo, em Belo Horizonte, e Casa Amarela, em Montes Claros (norte de Minas Gerais). Inclusive, este último é um espaço significativo na história do grupo e que atravessa todo o processo de criação. 

“No quarto do estúdio [da Casa Amarela], foi onde ficamos dias e dias e dias, madrugadas, ouvindo músicas, trazendo influências de cada um, tocando. Nessa época, o estúdio vivia cheio, tinha uns 20 instrumentos espalhados. E foi uma terapia. Virei uma chave, assim, enquanto músico. Foi muito bonito de ver”, conta Davi Ramos. 

Dois movimentos, uma narrativa

Nesse disco, há dois movimentos principais, muito bem marcados sonoramente. Um início mais solar, com uma atmosfera mais leve e aberta, e um encerramento mais noturno, com uma sonoridade mais densa. Esses dois momentos criam uma narrativa complexa, intensa e que reflete as influências de cada um dos seis integrantes. 

“Na elaboração do projeto, já tínhamos visto esse nome, Entre a Terra e o Sol, porque estávamos brincando com essa coisa da lua nova e de uma fase nova. […] E, olhando para as músicas, enxergamos esses dois comportamentos entre elas. Então brincamos com isso: com o momento solar e com o momento noturno. E também há essa ideia do lado oculto da lua: o lado que tem luz e o lado que tem sombra”, fala Matheus Bragança. 

Ainda, o músico completa: “No final, acho que conseguimos amarrar bem a narrativa do trabalho, que abrange a caminhada da banda, mas também se mistura com a busca pessoal nossa nesse processo de se reconstruir e de se permitir buscar novas possibilidades”.  

Pelo coletivo e pelo individual

No novo disco, somos apresentados a 12 faixas. Cada uma com suas particularidades, mas que remetem às pluralidades individuais e coletivas que atravessam a banda. Todas as canções carregam, de alguma forma, o carinho e o apreço pelo sertão do Norte de Minas Gerais, região que inspira e molda a identidade d’A Outra Banda da Lua.

Como consequência do processo coletivo de criação, as músicas se tornaram espaços de diálogo entre experiências pessoais e vivências compartilhadas. Para Davi Ramos, Ardo Árido foi a faixa que mais marcou a sua trajetória nesse processo.

“Ela já está numa pegada mais voltada para minhas influências, um pouco mais rock, mas ficou especial pelo momento em que eu estava. Como eu estava enferrujado por causa da pandemia, eu ia muito para a Casa Amarela, ficava uma semana lá, subia para o estúdio e começava a tocar. Ela tem um pulso mais para frente, era um desafio para mim. E eu ficava horas lá tocando ela”, fala. 

Mas essa não é a única razão de Ardo Árido ocupar um lugar de destaque para o músico. Como Davi Ramos conta, a letra ganhou um significado ainda mais especial porque foi escrita no histórico Corredor Cultural de Montes Claros, reforçando a conexão da banda com o espaço e com os amigos artistas locais (Marina Sena, Fábio Parrela e Jão das Artes, que também assinam a composição da canção).

Para Matheus Bragança, a música do disco que mais ressoou com ele foi O Homem no Tempo. Composta por Edssada, a partir de uma poesia de Ana Terra, a faixa reflete sobre a modernidade e os impactos desenvolvimentistas na natureza, situando a narrativa no coração do Norte de Minas, na Lagoa Azul. 

“Ela permitiu que acessássemos um lugar imagético, com vários momentos, nuances e climas. Contamos ainda com a participação do percussionista Johnny Herno, da escola de Naná Vasconcelos, que trouxe uma riqueza incrível ao processo”, conta Bragança.

A canção acabou ganhando um significado ainda mais profundo para o músico durante a pós-produção, em um momento em que ele se sentia um pouco “saturado”. Na época, o músico lia Cosmos, de Carl Sagan. A leitura, segundo Bragança, ajudou a ampliar seu próprio entendimento acerca da faixa.  

É justamente nesse equilíbrio entre luz e sombra, terra e cosmos, intensidade e suavidade que o sexteto parece ter encontrado o seu novo caminho. E Entre a Terra e o Sol é apenas o começo dessa etapa. 

Do norte de Minas para o Brasil

Na discografia, A Outra Banda da Lua traduz, com muito primor e capricho, a cultura geraiszeira, especificamente do norte de Minas Gerais. A presença do sertão mineiro aparece do sotaque das palavras ao acento das melodias, resgatando uma tradição que, como diz Matheus Bragança, ainda precisa ser mais olhada pelo Brasil. 

Segundo conta o músico, a influência do movimento catrumano, estudado pelo antropólogo João Batista, reforça a ideia de que o Norte de Minas é o berço de uma tradição particular, distinta do Sul de Minas, e que se reflete na própria essência da banda – e, claro, na sonoridade que o grupo apresenta. 

“O sertão mineiro, o Norte de Minas, na literatura, é muito falado na obra de Guimarães Rosa, mas, no restante, é uma incógnita. A cultura daqui não conseguiu alcançar tantos espaços ainda. Temos Marina como expoente, que conseguiu mostrar um pouco disso. […] [Mas] espero que esse disco consiga furar a bolha e alcançar novos ouvidos, porque acho que a gente tem muito a agregar, trazendo essa visão geraiszeira, catrumana, norte-mineira, e a história do nosso estado por outra ótica”, diz Bragança. 

E há uma série de elementos regionais que perpassam pela obra do sexteto. Afinal, a presença da cultura local está em cada um dos integrantes. “Está muito intrínseco. Na maneira de falar, na maneira de cantar, na maneira de enxergar a música, pela cultura que consumimos e agregamos durante a vida”, pontua Matheus Bragança. 

Ainda, como diz Davi Ramos, até mesmo o sotaque revela a influência geraiszeira. “Não só o sotaque falado da palavra, mas o sotaque musical, a assinatura musical, do jeito que colocamos as ideias [em música]. O jeito de sentir o acento da música”. 

Dialogando com a tradição da música norte-mineira, o disco também reflete os múltiplos atravessamentos do grupo. Um exemplo é Tudo se Renova, faixa em que a influência indiana se manifesta fortemente por meio do sitar e das referências individuais de Edssada. 

“Eu, particularmente, acho que o mercado da música pop, em geral, tende a absorver influências de outros nichos, de lugares que não são convencionais. É uma tendência, pelo menos na minha visão, absorver coisas que não foram exploradas: lugares, culturas que não estão no mainstream”, reflete Bragança. 

Um universo audiovisual próprio

As muitas camadas de Entre a Terra e o Sol vão além da música. O disco se desdobra também em oito visualizers, dirigidos por Tainá de Castro e Caril, e gravados em Pirapora, às margens do Rio São Francisco, e em Montes Claros. Protagonizados por Maíra de Sá e Ramon Francisco, os vídeos dão corpo às histórias e aos elementos que permeiam o álbum.

Como conta Bragança, o processo audiovisual ocorreu quase em paralelo à criação das canções, resultado da atuação do coletivo Outra Banda da Lua, que reúne, além dos músicos, Tainá e Caril. Vindas do Norte de Minas, elas ampliaram o olhar artístico do grupo, trazendo uma perspectiva visual que enriqueceu o trabalho e integrou diferentes linguagens. 

Próximos passos

Desde o início do processo de Entre a Terra e o Sol, A Outra Banda da Lua tinha o objetivo de alcançar o circuito de festivais e tocar pelo Brasil. 

“É um grande desejo nosso levar essa fase nova para o ao vivo, adaptando o repertório, trazendo o que desenvolvemos nesse laboratório, mas sem perder a essência que sempre foi característica das nossas apresentações. No ao vivo, você pode transformar e seguir por vários caminhos, sem ficar preso ao que a obra é”, explica Bragança.

Além dos shows, a fase atual também é marcada pela criação e pela composição. Novos singles e trabalhos já estão sendo planejados. “Estamos cheios de música guardada para fazer e para lapidar”, revela Davi.

Seja no ao vivo ou no streaming, Entre a Terra e o Sol materializa esse novo momento d’A Outra Banda da Lua, refletindo as singularidades do Norte de Minas, as experiências individuais, os encontros coletivos e as experimentações artísticas, reafirmando a identidade da banda e sinalizando os novos passos do grupo. 

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