“De Las Nieves”: Antônio Neves Insere o Brasil na América Latina

O multi-instrumentista Antônio Neves experimenta com novo alter ego em seu álbum instrumental De las Nieves. O disco, que pode ser experienciado como um filme sonoro, conta a história de um órfão latino-americano nascido entre a fronteira do Brasil e do Uruguai. A história de De las Nieves é contada em ordem cronológica e tem muitos momentos marcantes, como o seu abandono em um orfanato, sua passagem pela profissão de caminhoneiro, os dramas e frustrações da vida adulta e, por fim, a realização do sonho de ser músico. 

Ao decorrer do álbum, Antônio expõe as diferentes fases da vida de De las Nieves em onze faixas carregadas de simbolismos, sentimentos e uma ambientação minuciosa. Em entrevista com o Música Pavê, o multi-instrumentista comentou a construção de seu personagem, mencionou as peculiaridades da criação desse universo musical e explicou  a importância dos alter egos para seu processo criativo.

Música Pavê: Este álbum acontece todo pela perspectiva do personagem De las Nieves. De onde surgiu esta figura central do disco?

Antônio: Foi um pouco uma homenagem para a minha família, que tem uma parte gaúcha, e também eu tenho muito esse lance de sentir que o Brasil é afastado da América do Sul, da América Latina, no geral. Se você conversar com um uruguaio ou um argentino, o Brasil é visto como distante. A diferença de línguas dificulta. Não chega para nós um artista, nem novo nem antigo, da Venezuela. Eu não conheço nenhum, por exemplo, da Guiana ou da Colômbia. Tem essa vontade de integrar a música brasileira dentro da música da América Latina. Tanto que temos choro, mas também temos uma milonga, alguma coisa meio bolero e meio salsa para trazer essa união. E esse cara, De las Nieves, é de Santana do Livramento e ele é órfão. Então, ele não sabe nem de que lado da fronteira ele nasceu… se ele é uruguaio ou brasileiro.

MP: Aproveitando essa questão da união, de ter esse cenário da América Latina como um todo, o disco conta com vários músicos de diferentes países da América Latina. Qual foi a importância desses músicos para a construção da atmosfera do disco?

Antônio: Foi essencial. Quando eu tinha 20 anos, eu era trombonista na Banda Fanfarrada, que tocava bastante música latina e tinha um trabalho muito legal levando a fanfarra para as crianças das favelas por meio das UPPs no Rio. Depois, pudemos tocar com esse projeto na Colômbia e lá eu conheci essa galera que tocou comigo no disco. Foi por meio desses caras e de outras viagens que eu fiz para o Chile, o Uruguai e a Argentina que eu pude ter mais contato com outras culturas e estilos musicais latinos.

MP: Como é essa questão dos personagens e alter egos pra você? É algo aflorado?

Antônio: É aflorado, sim. Eu já tenho outro alter ego que eu faço shows aqui no Rio, Snow Tony. Esse é o cara mais do rock’n roll, mais doidão e underground. Ele é um falso heroi, tipo o Dom Quixote da guitarra. Ele acha que ele é um Guitar Hero, mas ele é meio atrapalhado, e tem De las Nieves ,que é um cara mais sério, tem toda a história da vida dele. Desde o meu primeiro disco, essa coisa do alter ego é algo que eu gosto de brincar porque ela me ajuda a fazer o que Antônio Neves não faria. Eu sou zero ator, mas esse é um trabalho parecido com o de um ator entrando em cena. Você tem que interpretar uma nova pessoa.

MP: Quando li sobre o disco e sobre a história de De las Nieves, me questionei se isso ia transparecer. Aí, quando ouvi o álbum, consegui perceber toda história pelas músicas. O conceito estava todo ali.

Antônio: Isso surge de trazer o ambiente das cenas. Como o barulho da fogueira, que te leva para um lugar escuro, ou o barulho de um bar cheio com copo caindo e gente falando. Por mais que essa música do bar tenha uma letra, o disco não deixa de ser instrumental. Isso é para tentar fazer uma sinestesia com o ouvinte, colocá-lo na cena, mais do que só apresentar um tema instrumental. Acho que, hoje em dia, as pessoas não estão com muito tempo para entender um tema instrumental, principalmente a galera da minha idade, da nossa geração. Se a pessoa não for da música, ela não vai prestar atenção. 

MP: E, falando da sonoridade dos lugares, de tentar levar as pessoas, como foi o processo de construção desses sons? Foi um processo exploratório?

Antônio: Tiveram umas coisas que gravamos, mas outras saíram de vídeos da Internet. Para os barulhos do caminhão, pegamos uns vídeos malfeitos que tinham uns barulhos de caminhão bons, barulhos de buzina, do caminhão ligando… Foi uma pesquisa. Não chegamos a gravar tudo, então, para os ajustes, acabamos mudando o pitch ou colocando algum efeito. Em cada música, eu sabia a cena que eu queria e os barulhos que precisava ter.

MP: Dentre as faixas do álbum, tem uma que destoa dessa temática latina em origem, que é The Shadow of Your Smile, um standard de jazz. O que essa música significa na jornada de De las Nieves como músico?

Antônio: Contextualizado rapidamente, a primeira parte do disco, que vai até Donde Está Mi Jefe, mostra a vida de De las Nieves a partir do momento que ele foi abandonado em um orfanato, onde ele é criado por uma senhora chamada Dolores. No final do lado A, De las Nieves já é adulto e trabalha como caminhoneiro há um tempo. Ele percebe que se sente frustrado porque o sonho dele sempre foi tocar violão. The Shadow of Your Smile  é o começo do lado B do disco. Representa o dia que De las Nieves acorda e decide tocar a música que a Dolores ensinou para ele antes de morrer, que é The Shadow of Your Smile. É o momento que ele pega o violão e começa a se reconectar com a música. Essa reconexão acontece aos poucos durante o lado B.

MP: Sobre as participações, como foi o processo de escolha dos convidados para fazer parte desse universo musical que não é só seu, que tem uma história própria?

Antônio: É um universo mesmo… Eu até falei em uma entrevista ontem sobre como trabalho. Eu sou antibanda e a favor de panelas. Porque eu sou antibanda? Porque só dá briga, briguei com um dos meus melhores amigos por causa de banda e ficamos sem nos falar por seis anos. Esse meu amigo é Eduardo Santana, que toca com Afrojack e que tocou comigo com Marisa Monte. Ele canta uma das vozes de Donde Está Mi Jefe? e me ajudou a fazer a ordem do disco. Voltando para por que sou a favor da panela, ela é inevitável. Antigamente, eu falava “A panela de fulano de tal é foda, eles só tocam entre si”, mas isso é inevitável. Você vai sempre trabalhar com pessoas que você tem afinidade além da música, porque ela é muito mais do que uma coisa técnica. A técnica é algo que eu nem penso, eu vou mais pelo afeto, pela amizade. Quando você é amigo da pessoa, também é muito mais fácil de comunicar o que você quer, porque o entendimento é rápido. Essas participações do disco foram gravadas em 15 minutos. Pegaram a ideia, gravaram e depois fomos tomar uma cerveja (risos).

MP: Você comentou que acha que as pessoas não têm paciência pra música instrumental. Você acha que tem alguma coisa faltando ou tem alguma coisa sobrando na música instrumental hoje em dia?

Antônio: Pessoalmente, acho que a música instrumental é sempre associada à técnica. Tem aquele padrão: tema, improviso, tema e fim. Por isso, fica muito mais atrativo para quem é músico e está envolvido com improviso, escalas e coisas assim. O mercado instrumental acaba sendo muito raso. Eu, como Antônio Neves fora dos alter egos, faço pouquíssimos shows aqui no Rio de Janeiro, porque tem poucos lugares para fazer. Faço muito mais shows em São Paulo. Nunca saí desse eixo para fazer meu trabalho. Nunca fui para Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre… porque é muito difícil fazer isso acontecer. Acabam nos colocando nessa estante do “jazz Brasil”, que eu não sei se ajuda ou se atrapalha. Se você falar: “Olha esse disco do Antônio que é de jazz brasileiro”, muita gente vai pensar: “Ih, não quero ouvir essa porra, não” (risos). Mesmo que tenha muita gente prosperando nesse meio, o que é muito legal, o Brasil sempre elege uma pessoa como referência por instrumento. Por exemplo: Hamilton de Holanda vai ser o melhor bandolinista brasileiro até ele morrer. Não vai pintar outro com esse status, por mais que existam um milhão de bandolinistas foda no Brasil. Tudo na música instrumental vira essa briga técnica de ter que mostrar virtuosismo. E eu não quero entrar nessa briga, ela não tem nada a ver com a música que eu faço. Prefiro continuar fazendo meu trabalho independente e fazer o que eu quiser, do que ter que seguir os caminhos que o mercado pede. Já fiz disco de hardbop misturado com samba funk, disco de rock progressivo… esse último foi em formato de filme. Gosto de variar. A próxima coisa que eu fizer vai ser muito diferente de De las Nieves.

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