“Concerto 1”: Cícero Busca “o Belo e o Vulgar” em Formato Orquestrado
“É só rodopiar em busca do que é belo e vulgar” – os versos de Tempo de Pipa que apresentaram Cícero ao mundo em 2011 ganham nova força uma década e meia depois na abertura de Concerto 1. O álbum, lançado hoje (22) nas plataformas digitais, passeia por dez músicas dos cinco discos lançados pelo artista até hoje, adornadas por arranjos orquestrais.
O projeto chega aos nossos fones após uma turnê de mesmo nome, que passou por 23 estados brasileiros. “A ideia não era fazer esse disco. Era só o show, ser efêmero”, contou ele ao Música Pavê, “mas eu fui vivendo com os áudios dessa orquestra e casa e pensei ‘não faz sentido isso ficar no meu HD, só para mim’”.
Quem escuta a obra na ordem proposta, relembra o início de tudo com Tempo de Pipa, os novos rumos sonoros que Capim-Limão propôs lá no lançamento de Sábado (2013) e o estilo Cícero de fazer música em canções como A Praia e À Deriva. Ao chegarmos em Miradouro Nova Esperança, outros versos saltam à audição: “Cheguei onde imaginei chegar/Sinto estar onde sempre estive”.
Isso porque Concerto 1 ajuda a concluir uma fase de sua discografia, honrando a beleza de suas composições e o lugar que Cícero ocupa na música brasileira, independente ou não. A busca continua, agora com o reforço dos instrumentos clássicos e tudo o que eles adicionam às canções que conhecemos tão bem, entre o Apartamento e o Cosmo.
Leia a entrevista completa abaixo.
Música Pavê: Existe uma possibilidade de leitura em Concerto 1 que é a de você estar dialogando com elementos ditos “clássicos”, que são muitas vezes vistos culturalmente como “superiores”. Temos a narrativa de um Cícero lo-fi que chega agora a um momento de orquestração. É como se as pessoas não pudessem discutir que você pode pertencer também a este lugar.
Cícero: Sempre podem falar, né? Podem falar “é chato”, e aí é a pessoa e o senso crítico dela, para mim já está valendo. Você olhar um quadro e achar lindo ou horrível, os dois têm o mesmo valor. Agora, o preço de um pode ser mais alto que outro. Para mim, isso não é tanto o que me guiou até hoje, porque sempre achei muito enganoso o valor agregado à arte. Aprendi isso quando fiz Tempo de Pipa, “em busca do que é belo e vulgar”. O vulgar tem valor por estar em todos os lugares. É planta, que tem em tudo que é canto. É água, flor, gente do bem, que tem em tudo que é canto. Agora, se é uma coisa que é para poucos, ou está em lugares onde ninguém chega – o princípio da exclusividade -, eu não estou nem aí, acho anti-natural, a natureza não funciona em cima de exclusividade, mas de abundância. Somos oito bilhões de pessoas, todas artistas. Quando nossos ancestrais estavam no mato batendo o pé no chão e fazendo sons guturais, aquilo já era show, era música, era plateia e eram artistas. Só fomos capitalizando e organizando. Eu já fiz disco gravado de qualquer jeito na parte técnica – tanto Sábado quanto Canções de Apartamento foram feitos com equipamentos que eu hoje não teria coragem de usar -, e sempre vou ver um valor artístico inegável ali. Quem diminui um disco porque ele está com uma qualidade técnica de gravação inferior… É uma pessoa tecnicista, tudo bem, é importante que existam pessoas assim para que trabalhem melhorando o som. Mas a função não é essa. Você não olha o quadro e pensa “ah, mas essa tinta não é de boa qualidade”, não faz sentido. Você vê o que sente olhando aquilo. Concerto 1 é mais um quadro. Para mim, ele não está em hierarquia acima ou abaixo de Sábado, Cosmo, A Praia, Canções ou Albatroz. Essa linguagem nasceu de uma necessidade que a pandemia me mostrou. Estava trancado em casa há mais de um ano e tive essa ideia, de projetar os músicos na parede, colocar o celular na minha cara e fazer um show projetado para o mundo. Quando botei o show na estrada, as pessoas se juntaram e ouvi aquele som, pensei que essa forma de organizar o arranjo explica muita coisa. Porque tem as melodias e os contracantos, um tecladinho lá no fundo meio escondido que virou uma flauta em uma melodia nítida. As composições se beneficiaram dessa clareza. A música clássica não é clássica à toa, mas porque ela venceu a linha do tempo e, século após século, continua sendo uma forma clara de você apresentar uma ideia. Ela tem o valor agregado, eurocentrista, de “alta cultura”, “para poucos” – foda-se. A música é: Eu tive uma ideia e quero explicar essa ideia para músicos de outros lugares e culturas, que falam outros idiomas. Como eu faço? Partitura. Chamei Felipe Pacheco, um maestrinho, que fez os arranjos nas partituras, os contracantos, as correções harmônicas, e deixou os erros de harmonia propositais meus acontecerem – algo que a orquestração clássica me permitiu explicar que eram intencionais. Quando você ouve aquele som estranho vindo de uma orquestra, ele fica mais claro. Como se fosse um manifesto de uma fase da minha carreira que encerra de forma clara o que eu fiz naquela década. Porque os discos tinham muitas camadas de intenção, sonoridades diferentes, foram produzidos e mixados por pessoas diferentes. Concerto 1 meio que centralizou o discurso, a harmonia e a melodia. As outras coisas ficaram para aqueles outros discos.
MP: Você ter Bruno Schulz (na mixagem) e Felipe Pacheco contigo também ajuda a celebrar essa fase da sua discografia, visto que eles são pessoas comuns ao universo Cícero há tanto tempo. É natural eles estarem ali, dois personagens tão importantes nessa história.
Cícero: Sem dúvidas. Conheço Bruno desde a adolescência, no Ensino Médio, passamos por tudo juntos. E Pacheco foi um ponto de inflexão muito importante. Quando ouvi Baleia em 2013, eu tinha acabado de lançar Sábado e estava naquele momento de fazer movimentos muito abertos de mudança de rumo total. Ele apareceu como um cara que estava na ponta do tempo, com sensibilidade subjetiva e um profundo conhecimento acadêmico, formado em composição, e uma estrutura cultural muito rica, muita bagagem. Foi muito importante para características que eu assimilei na minha obra, a partir de A Praia. Ele foi o único nome que pensei para Concerto 1. Estava morando em Portugal na época, mandei mensagem por WhatsApp e contei a ideia. Gravei as músicas no celular mesmo, tocando violão, e ele transformou em lindas partituras para cordas e sopros, respeitando minhas ideias para contracantos, minhas melodias e características de compositor, mas, ao mesmo tempo, levando a um grau de excelência. Depois teve também Jonas Hocherman, que fez o arranjo de Sem Distância em 2022, e ele chamou os músicos que deram a sonoridade do disco.
MP: Me chamou atenção em Concerto 1 como existe um respeito muito nítido pelo formato da canção, dentro do que ela representa na cultura brasileira em que você está inserido. Toda a orquestração dá força ao que está sendo cantado, mas existe ali um teto sonoro que ela nunca ultrapassa.
Cícero: Sim, Pacheco foi muito respeitoso nesse lugar de não desconstruir a canção, não fazer com que a orquestração engula a música e você veja que tem uma música ali dentro. É o oposto: Um voz e violão defendendo a canção e a orquestração ressalta suas belezas. Foi um cuidado que eu tive na hora de mixar e masterizar, de não deixar a orquestração muito alta, comendo voz e violão e virando um disco de orquestra. Senti isso depois, que o que fica é a força das melodias e dos movimentos melódicos, das palavras certas na hora certa… A ideia era ter meia hora de um flanar por melodias brasileiras. E sinto uma alegria enorme de que o disco passe apenas essa mensagem: De que é um disco de música brasileira acontecendo. Porque acho nossa música, cada vez mais, uma das mais ricas do mundo – se não for a mais.
MP: Dentre os processos de selecionar essas músicas que fazem parte de Concerto 1, e também de rearranjar-las e regravá-las, o que você aprendeu sobre elas e sobre seu compositor?
Cícero: Aprendi muita coisa. Nem tudo organizei para responder em uma entrevista, mas senti muita coisa voltando àquelas composições depois de tantos anos. Tive uma certa aula sobre mim mesmo, foi um processo meio terapêutico. Porque, quando você grava uma música, ela acaba ficando naquele momento da sua vida e voltar a ela esmiuçando arranjo para cantar de novo, reinterpretar aquele discurso, foi muito revelador de onde eu estava indo naquela época.
MP: Pergunto isso sabendo que elas fazem parte do seu cotidiano, já que elas estão no repertório dos shows, mas imagino que parar para rearranjar uma música te faz reviver e reinterpretar aquele discurso.
Cícero: É, principalmente por interpretá-las rearranjadas. Foram 23 estados em três meses, muitos shows em um período muito concentrado, criei uma outra linguagem, um outro jeito de cantar, uma outra ênfase mentalmente para o que eu estava dizendo. Então, quando levei para gravar a voz e o violão desse disco, já estava sentindo as músicas de uma forma diferente – além da parte estética, houve uma parte emocional que foi um pouco deslocada. Ouço Tempo de Pipa de Canções de Apartamento e a de Concerto 1 e sinto coisas diferentes. Parece que consigo sentir que aquele ponto de vista está deslocado quinze anos para frente, mas é a mesma pessoa. Achei legal, achei que o resultado artístico foi maneiro.
MP: Penso que tem a ver também com aquela primeira versão ser a mais “pura” de uma canção que se desenvolveu, amadureceu, ao longo dos anos, tendo sido apresentada por você inúmeras vezes depois.
Cícero: Sim, sem dúvidas. A vida se impõe, né? Em quinze anos, nasce gente, morre gente, tudo muda. Quando fiz Tempo de Pipa, eu tinha vinte e poucos anos. Era um outro “mas tudo bem”, era um outro “o dia vai raiar”, um outro sentimento. Hoje [quem canta] é um cara que vai fazer 40 anos daqui a meia hora, passou pandemia e pessoas importantes partiram. Tanta coisa aconteceu que o sentimento da letra, pelo menos para mim, mudou. E se mudou para mim, para quem ouviu a música há quinze anos, também mudou. A arte tem essa característica, essa atemporalidade. Você vê um filme, lê um livro ou ouve um disco que te marca na adolescência, quando você está velhinho… aquilo é uma outra coisa! Acho que Concerto 1 foi um disco que me deu uma tomada de consciência muito grande disso. Tenho uma década de uma obra que foi um desenvolvimento de uma linguagem, de uma busca por uma coisa que era entender a vida – só que entender a vida já é viver -, e o instrumental fala outras coisas, sem essa busca filosófica, é minha relação física, orgânica, com os sons que me agradam os sentidos e foram sendo repassados às minhas composições. Então, acabou que o que eu sinto com uma década de álbuns é que tem um ser humano se expressando artisticamente de forma nítida ali. E o começo, o meio e o fim da função da arte é esse. Ela pode ter outras consequências, mas a função dela é ser uma expressão profunda da individualidade do ser humano, que é afetada pelo coletivo. Então, toda expressão de arte é coletiva – se estou fazendo música aqui, não é porque sou um ser iluminado que caiu do céu, é porque sou fruto de um sistema social que me estimulou os sentidos nessa direção. Então, a minha arte também é um fruto coletivo. E, em última instância, é um farol, uma bússola e uma cura para a sociedade. O que ela mesma produz de arte é mais o norte do que o que ela produz de tecnologia – a arte vem para explicar por que isso está acontecendo com ela. Não nos ligamos que levantávamos para desligar a televisão, daí apareceu um controle remoto, depois um celular que também é controle remoto, depois o celular faz comida aparecer na tua casa, carro aparecer na tua casa, gente aparecer na tua casa… Mas, quando você vê que a arte está ficando automatizada, que você não consegue escutar música, ler livro ou ver filme, que está tudo meio robotizado, aí percebemos que isso está esquisito. Porque temos um sensor de que nossa humanidade está na arte que consumimos. Todo mundo tem sua música ou filme que emociona, isso é necessário. E as catarses não têm hierarquia. O que uma pessoa tem ouvindo sertanejo universitário bem pueril, sobre cerveja e festa, não é menos válido do que o que outra pessoa tem com Debussy no Theatro Municipal. São pessoas com suas sensibilidades afetadas por música. Então, quando as coisas começam a não serem feitas de humanos para humanos, naturalmente as pessoas vão se comovendo menos, e isso é esquisito. Então, acho que a arte ainda é farol e bússola da sociedade. Até quando a tecnologia chega ao nível absurdo de estarmos fazendo dancinhas esquisitas numa tela de celular em busca de dopamina, é uma dança. É uma forma de expressar o que é a absurdez do que é a cabeça humana – já é arte.
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