Coisas que Troá não morreria sem dizer

Eu Não Morreria Sem Dizer é o nome do álbum de estreia da banda Troá. A urgência do título faz jus à intensidade dos integrantes Carolina Mathias (baixo, teclas, composições e voz), Manuella Terra (bateria) e Gabriel Castilho (recursos visuais). Em conversa presencial com o Musica Pavê, o grupo traduziu– com coragem – boa parte das paixões, inseguranças e expectativas abrangidas pelo cenário vigoroso do disco.

Com apoio da PWR Records, o trabalho foi mixado e masterizado por Nathanne Rodrigues (Chico de Barro) e teve participações de Larissa Conforto (Ventre/ÀIYÉ), Dedé Teicher (Scracho), Cristine Ariel (El Efecto), Pedro Fadel, Marina Chuva (Sargento Pimenta) e Julianne Lima durante o processo de criação do disco.

A presença de Gabriel na lista de integrantes é passível de causar surpresa. Não é muito comum uma banda assumir um artista visual como parte oficial do grupo. Ainda assim, é interessante e faz sentido, dada a crescente relevância das redes sociais para os artistas independentes e a consequente força do aspecto imagético.

Carolina: Eu e Manu sempre trouxemos as pessoas muito para dentro e isso já deu muito problema, mas com Gabriel deu certo. Ele é o único fotógrafo com quem eu realmente me identifiquei, o jeito que ele enxerga as coisas é o jeito que eu quero expressar minha música para o mundo.

Gabriel: Acho bom para a banda ter essa relação específica com uma pessoa que guia, trazendo uma identidade própria. Também há espaço para participação de outros artistas, tudo é conversado… com a capa de “Ímpeto” foi assim e foi super de boa ter contato com outras pessoas. São coisas que conceituamos juntos.

A relação do duo com Gabriel, que começou através da imagem, se estendeu para quase todos os aspectos da produção do álbum, e fortaleceu os laços de amizade entre os três. “Quando eu termino domingo à noite com eles, me sinto em família”, disse Carol. Essa proximidade foi essencial para que a mensagem audiovisual começasse a ser passada de uma forma concisa. Troá contou que, no início da relação de trabalho, Gabriel preparou uma lista de perguntas relativas a identidade e comunicação para alinhar a proposta estética, o que iniciou um processo interno de crescimento na banda. “Depois disso”, expôs Carolina, “a gente nunca mais pensou igual”.

Manuella: Essas perguntas foram muito importantes, eram desconfortáveis, eu ficava agoniada fisicamente. A gente não sabia expressar muitas coisas, mas fomos respondendo até chegar em um caminho para comunicar o que Troá é hoje. Se a gente não sabe falar da gente, como vai querer comunicar isso? A gente precisava entender o que a gente era, o que a gente queria, a expectativa sobre o que a gente queria ser. Gabriel é muito inteligente, extremamente produtivo, ensinou a gente a lidar com tempo de outro jeito, mostrar que a gente tem que ter senso de urgência.

Carolina: Ele é uma pessoa muito determinada, mas que duvida muito dele mesmo, então os processos são incríveis. A gente agora passa por muita dor e dúvida, mas chega em lugares incríveis. Ninguém bate no peito e fala: “sou eu, a gente sempre faz coisa boa”

Do alinhamento estético ao lançamento de um disco, há sempre muito trabalho. Isso se agrava com a parte musical da Troá, um duo autoral que faz arranjos ritmicamente complexos e harmonicamente detalhados, sem se limitar à poucos instrumentos. Como é comum para muitos artistas independentes, os integrantes da Troá estudam e trabalham, o que torna o processo ainda mais cansativo. Com tanto esforço dedicado à obra, é natural que haja um mínimo de expectativa sobre o retorno do público. Quando perguntados se estavam conseguindo lidar de forma saudável com essa expectativa, Manuella respondeu prontamente e aos risos que não. Ao longo da conversa, refletiu que a expectativa também “ajudava a canalizar esforços”.

Gabriel: a gente nunca teve uma relação muito boa especificamente com o dia de lançamento, porque geralmente a gente passa o dia respondendo pessoas ou tentando fazer com que aquilo chegue nelas.

Carolina: isso gera uma expectativa muito grande sobre o dia, como se ele resolvesse tudo, tipo: “a partir de amanhã minha vida mudou”.

Gabriel: Emocionalmente é horrível, em um momento tão curto, ter uma expectativa tão grande. O fato de a gente existir em rede social, ficar sempre esperando que um número x de views, piora essa angústia.

Carolina: a gente está sempre olhando o Spotify for Artists, respostas no Instagram… isso gera uma ansiedade, mas ao mesmo tempo é bom para a parte de planejamento.

Gabriel: No geral, a comunicação para esse tipo de mercado é uma coisa meio estranha. É difícil saber o que dá certo, às vezes nem com assessoria de imprensa dá muito resultado. Então a gente criou essa cultura de acompanhar nossos resultados.

Carolina: E esse disco fala de coisas muito diferentes, os estilos são diferentes… é ainda mais difícil prever… Tipo com a música “enchente”, tem umas pessoas falando comigo: “ah a gente amou essa música”, e não esperávamos tanto.

Depois de ser composta, uma canção é cansativamente estudada – para criação do arranjo – executada – nos ensaios, nas gravações e ao vivo – e escutada –  para edição, mixagem e masterização. Muitos artistas acabam saturados com o trabalho no momento do lançamento e, não raramente, durante o próprio processo de produção do material. A constante reavaliação da própria performance também pode engatilhar um padrão autodepreciativo. Os três, entretanto, dizem que ainda conseguem escutar e se emocionar com o que foi feito.

Carolina: vai durar mais umas duas semanas, depois nunca mais vou ouvir (risos).

Gabriel: Depois de um ano você vai ouvir e vai ficar orgulhosa!

Manuella: Com o tempo a gente vai aprendendo a abrir mão de algumas coisas… eu consigo aproveitar e sentir o álbum inteiro, mesmo. Consigo me imaginar de fora, sem conhecer o som, e sentir… mas nem sempre escuto tranquila (risos)… às vezes fico escutando e pensando: “essa parte é aquela que me incomoda”. Sabe quando você fica adiando aquele momento? “ai! vou ter que ouvir essa parte!” (risos)

Gabriel: aí quando chega parece aquela facada no coração (risos)

Manuella: É, mas depois toco diferente ao vivo!

Não só por causa dessa reavaliação, Troá diferencia as apresentações ao vivo. A limitação física de ser um duo também leva a banda a rearranjar o som cheio do álbum. “Geralmente, não tem uma relação muito forte entre o que está gravado e o que é reproduzido ao vivo”, conta Gabriel. Os que já presenciaram a apresentação do grupo atestam que é nos palcos que a Troá mais se destaca, expressando boa parte sua criatividade, sensibilidade e capacidade técnica.

Carolina: Construir o show está sendo doloroso por um lado, mas também é bom porque ao vivo tem outra potência, de nós duas resolvermos aquilo ali. A gente gosta muito de fazer arranjo, pegar as paradas, jogar no show e refazer tudo de novo.

Manuella: A Carol caba sendo responsável pela maior parte da banda. Ela compõe, canta e toca todas as coisas que não são bateria. Eu fico agoniada porque me coloco no lugar dela. Eu nunca estaria fazendo isso, ela é louca (risos)! Ao mesmo tempo parece que ela nasceu para isso. Toda vez eu falo: “Carolina é a pessoa mais foda que eu conheço”.

A incrível versatilidade de Carolina nos palcos é acompanhada de uma certa dose – surpreendente – de insegurança, que não a impede de aparentar e soar muito potente. Segundo ela, essa força vem dos amigos de banda, que de fato não contiveram os elogios uns aos outros durante a entrevista. “Tudo que eu sou aconteceu porque eles me deram espaço para ser assim”, conta.

Carolina: Tenho menos problemas com instrumento do que com minha voz. Eu sou uma pessoa muito insegura. Agora a gente está num duo, toco vários instrumentos harmônicos, sou compositora, a voz do álbum é minha, mas eu não era essa pessoa porque eu não me sentia autorizada. Sempre tive muita vergonha da minha voz, sempre foi uma questão para mim. Até hoje pessoas falam: “sua voz é muito forte, muito foda, diferente” ou: “sei lá, meio estranho uma mulher cantar assim” ou “estava mais acostumada com sua voz quando você cantava fino”, que não é minha voz! Então tem essa questão. Devo a Manuella e ao Gabriel conseguir entender que minha voz é assim e está tudo bem. Eu também nunca pensei em pegar a harmonia inteira de uma banda para fazer. Isso mudou na minha vida porque a Manuella me libertou muito, lidou com as minhas inseguranças, me apoia, está para mim em todos os momentos. É a pessoa mais companheira da minha vida.

O apoio irrestrito dos amigos também abrange o processo de escolha das composições que é, simplesmente, lançar tudo que a Carolina compõe. Não abandonar as composições ajudou Carolina a “entender melhor como arranjar as coisas, ouvir mais crítica de boa e a gostar mais de dela mesma”. A potência desse modus operandi, que pode parecer estranho para a maioria das bandas, é atestada pela ótima qualidade das composições de Eu Não Morreria Sem Dizer.

Gabriel: A gente nunca descarta nenhuma composição, nunca joga elas no lixo. As músicas que a Carolina compõe a Troá lança. A insegurança da Carol também vem de lidar com composição, que tem uma relação emocional pesada. Ainda mais para o tipo de música que a gente se propõe a fazer… às vezes é dançante, mas não é feita para isso, é feita para sentir alguma coisa.

Carolina: Eu sou muito apegada as minhas coisas, às pessoas que eu amo, ao que eu tenho, mas eu comecei muito com uma coisa de rejeitar, de não gostar, de não mostrar para eles. Depois entendi que faço as coisas por um motivo e tudo tem como ficar bom.

Manuella: Eu acho as músicas muito boas. Não falo isso só porque são da Carolina. Tudo que ela faz é incrível.

A forte conexão pessoal e profissional entre os integrantes da banda também se expressa nos momentos de dúvida. A canção Deserta, cujo arranjo atual é intimista, composto por teclado e voz, já teve bateria, guitarra, baixo, cítara e solo de baixo com guitarra. “Era uma coisa meio Rush, sabe?”, descreveu Carolina “com todo respeito aos pais” dela.

Carolina: a gente viu que a música não estava fazendo sentido nenhum. Sabe quando você está querendo mostrar uma coisa, que a gente toca muito bem, sei lá, qualquer coisa? Consegui desapegar, mas foi doloroso, chorei… mas a gente tem uma parada boa que é uma sinergia…

Gabriel: de crise! (risos)

Manuela: exato (risos)

Carolina: Eu estava desconfortável a muito tempo, não conseguia ouvir a música direito. Eu tive isso de madrugada: “será que eu tô ficando doida de querer jogar tudo fora? Aí no dia seguinte, eu e Gabriel nos olhamos e falamos: “vamos jogar tudo fora!” (risos)

Manuela: lembro de você falando: “amiga não sei como te falar!” (risos)

Carolina: e você: “tá Carolina, eu entendo””…

Deserta surgiu por causa de um término da Manuella. Apesar de a temática ser muito pessoal, a canção é a única com letra composta pelos três e que Manuella não toca, evidenciando mais uma vez um nível de confiança raro. Troá refletiu que o primeiro arranjo dela, bem mais energético que o atual, fazia parte de uma tentativa de deixar Manuella “pra cima”. Depois, conforme a baterista foi superando, o arranjo passou a refletir a tristeza original das palavras.

Manuella: Essa música eu não toco, mas me emociona muito, engasgo e tudo de emoção. Como eu não toco e a letra é sobre mim, eu posso ouvir e receber a música. Ela ficou com uma atmosfera que me traz a sensação de que: “eu estou aqui nessa minha tristeza e está tudo bem”

Manuella é, segundo os outros dois integrantes, um polo de positividade no contexto das dúvidas que permeiam os processos criativos da banda, e toparia “gravar um clipe no Chile amanhã, com uma bata no meio deserto, mesmo sem saber como”. Ainda assim, dentro desse otimismo com o trabalho, há humildade e foco suficientes para fazer com que ela reproduza, mesmo num set pequeno, linhas muito criativas. “Ela não entra muito naquele lugar de: tudo que eu faço é ouro e então relaxa”, contou Carolina. Essa associação delicada entre positividade e humildade é tipicamente esportiva, lado que a baterista também viveu durante a adolescência.

Manuela: Música é meio parecido com esporte, em alguns sentidos, pelo menos na minha vida… acho que é muito uma “peneira”, todo mundo toca quando é adolescente, faz banda de colégio, mas poucas pessoas realmente continuam nessa… é realmente a expectativa que se põe nisso, a pretensão que se tem de viver disso. Da nossa galera, a gente ficou.

O ponto de encontro entre as diferentes personalidades de Carolina e Manuella se dá principalmente nessa certeza sobre querer viver de música e na determinação para fazer isso acontecer, através do perfeccionismo e da disposição para ouvir e crescer.

 Gabriel: Acho que elas acabam sendo um duo por causa disso… não conheço pessoas que queiram viver e estejam dispostas a fazer coisas para viver disso tanto quanto elas. Músico muitas vezes é complicado, porque há muito ego, há uma preocupação muita grande daquilo ali “ser eu” e representar “eu” mais do que qualquer coisa. Às vezes você tem uma ideia fixa e não larga de jeito nenhum porque é teu bebê e tal. Elas ouvem muito.

Carolina: O mundo independente é muito difícil, mas a gente quer muito fazer isso dar certo, a gente quer muito viver disso. A gente não vai desistir, mesmo se todo mundo achar esse álbum mais ou menos

Gabriel: uma coisa que ela falou que eu achei lindo foi: “se ninguém gostar eu vou fazer outro”

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