Clara Lima Reencontra os Caminhos que a Formaram em “As Ruas Sabem”

Mais de uma década depois de subir pela primeira vez em um palco no Duelo de MCs, em Belo Horizonte, Clara Lima chega a um novo capítulo da própria história com o lançamento de As Ruas Sabem, seu primeiro álbum independente. O trabalho ganha show de estreia nesta sexta (10), no Sesc Pompeia (em São Paulo), e reafirma a força da rua como lugar de resistência e origem da artista.
Com participações de Mac Júlia, Vietnã, Jamés Ventura, Smile, Sant e Dalsin, o disco traduz o espírito coletivo e colaborativo que sempre moveu Clara. Da produção ao grafite real que estampa a capa, pintado em um muro da Vila Borges, na zona oeste de São Paulo, tudo em As Ruas Sabem nasce do corre e da convivência. “Aqui o trabalho é realmente coletivo”, diz a rapper em entrevista ao Música Pavê.
Mas, por trás da obra, também existem as marcas de quem aprendeu a sonhar em meio aos obstáculos. “Eu acredito que ainda é uma conquista diária, mas tem sido cada vez mais leve sonhar”, reflete Clara, lembrando das vezes em que a realidade quase fez o sonho parecer impossível. Ainda assim, ela segue acreditando e sonhando. As Ruas Sabem é o retrato de uma artista que entende a liberdade como um direito democrático, construída a muitas mãos, dentro e fora do palco.
Música Pavê: Já são mais de dez anos de estrada desde o Duelo de MC’s. Olhando pra tudo que você viveu nesse tempo, qual foi a lição mais marcante que a música te trouxe até hoje?
Clara Lima: Ah, olhando pra trás, é muita coisa, muito tempo de aprendizado, né? Comecei bem nova, com 14 anos, então tudo isso fez parte da minha formação – o Duelo de MC’s, a Família de Rua. Tudo foi essencial para eu me entender como pessoa, no geral. Meu entendimento social, político, isso veio desse começo. Conviver ali com o pessoal que já tinha esse corre nas ruas há mais tempo – Hot, Coyote, Fabrício – foi uma escola. Eu e Djonga estávamos começando juntos, praticamente na mesma época. Todo esse rolê foi muito importante pra eu aprender muita coisa. Mas o que mais me marca até hoje é a questão do respeito! O respeito que você dá e o respeito que você recebe, sabe? Isso é o que mais fica pra mim.
MP: Você consegue enxergar o cenário do rap em BH de uma forma diferente do de São Paulo e Rio de Janeiro? Como é essa relação regional, já que vocês vieram todos de lá?
Clara: A cultura de rua de BH é uma parada muito foda. Estive lá agora, nesse fim de semana, para fazer um show no interior, e nos hospedamos em BH. Rolou uma batalha no viaduto – não era o Duelo de MC’s, era outra galera – e foi sinistro de tão cheio. Teve show do Leal, totalmente gratuito. BH tem essa força de estar na rua. Na época da TV Tribo, sempre estivemos muito presente nas causas da cidade – tarifa zero, luta por moradia. Então, sinto que o rap de BH tem essa potência por vir de uma galera que está na rua mesmo, na luta. Mesmo estando no Sudeste, BH ainda é uma cidade fora do eixo, né? Não temos os mesmos acessos que Rio e São Paulo. Então, existe também esse espírito de batalha, do tipo: “mano, precisamos chegar, precisamos fazer nossa parada acontecer”. É sobre fazer o rap de Belo Horizonte ser visto como algo grande e relevante, assim como os rolês do Rio e de São Paulo. Acho que essa é a grande diferença do corre em BH, saca?
MP: Total! Você falou dessa presença da rua e esse é justamente o nome do seu disco, As Ruas Sabem. Ele tem uma força coletiva muito marcante, tanto nas participações quanto na produção. Como foi construir esse trabalho conjunto e o que esse processo te ensinou sobre você mesma? Qual o seu jeito favorito de criar?
Clara: Eu confesso que é difícil trabalhar com um número grande de pessoas, até porque todo mundo está no seu corre, então conciliar agenda é complicado. Mas As Ruas Sabem foi meu primeiro álbum com essa diversidade de produtores. Também foi meu primeiro trabalho totalmente independente. Os projetos anteriores foram lançados por produtoras, então, além da parte criativa, tive que lidar com muita responsabilidade burocrática. Foi um processo diferente em todos os sentidos. E foi também o primeiro projeto em que reuni vários produtores. Em Selfie, por exemplo, foi Go Dassisti e Gee Rocha; em Transgressão, Coyote; em Além, Rizzi. Eu já tinha esse costume de trabalhar só eu e o produtor, com um ou outro feat. Mas, nesse álbum, quis realmente usar minhas conexões e juntar a galera. Foi uma experiência nova que eu curti muito. Dá mais trabalho, claro, especialmente para criar uma sonoridade coesa, que não se perca no meio de tantas mãos. Tive que fazer uma peneira grande de beats, pensar na construção de cada faixa. Mas gostei demais, porque isso soma muita força. Todo mundo que participou, tanto na parte musical quanto na criação da estética, são pessoas que admiro muito, mesmo quando não tenho contato diário. Eu já tinha vontade de trabalhar com elas, então foi massa demais fazer esse corre coletivo. E sobre preferência, acho que depende da fase. Tem momentos em que estamos mais reclusas, e flui melhor um trabalho mais íntimo, só você e o produtor. Mas tem outras fases em que essa coletividade é essencial para a criatividade expandir, para trocar mais ideias, e até para alcançar mais pessoas.

MP: Uma coisa que me chamou muito a atenção foi a capa do disco. Ela é um grafite original feito em um muro de São Paulo. Por que, dentro de toda essa construção do álbum, era importante pra você que a arte fosse um registro real das ruas, e não apenas algo produzido digitalmente?
Clara: Cara, eu moro em São Paulo desde 2019, um pouco antes de lançar Selfie. Vim para cá de vez e comecei a construir minha vida aqui. Trabalho com Ricardinho, e hoje moro na quebrada dele, na Vila Borges. Temos realmente explorado o bairro pra fazer nosso trampo acontecer – seja clipe, entrevista, tudo. Inclusive, estou falando contigo agora do nosso QG, onde estamos montando um estudiozinho; moro duas ruas abaixo. Desde que ficamos independentes, em 2024, essa tem sido nossa construção. Lancei um EP de jersey, cuja capa fizemos na casa de um parceiro aqui, em frente à casa do Ricardinho. O clipe de Visando Lá na Frente também foi aqui na quebrada, e o primeiro clipe do álbum, Tabuleiro, foi gravado na Vila. Então, para nós, tinha que ser aqui, por toda essa trajetória que estamos construindo. Carlinha, que é minha DJ e produtora, fez o beat de Fumaça pro Alto e também é fotógrafa, multiartista mesmo. No fim do ano passado, ela lançou um book chamado Retratos de Rua, com dez anos de registros em Polaroid de pixos e grafites, da galera da arte de rua. A ideia de fazer o pixo real no muro, com essa estética que lembra uma Polaroid, veio desse projeto dela. Aí pensamos: “vamos procurar alguém que seja da quebrada mesmo”. Como tudo já estava sendo feito por aqui, fazia sentido continuar esse ciclo. É importante trazermos cultura, mostrar outras saídas pra molecadinha – eles vivem aqui com a gente, querem aparecer nos clipes, nas fotos. Então, fazer a capa aqui foi muito simbólico. Quem fez o pixo foi Tex, um pichador da Zona Oeste, e ficou lindo. Eu queria que a capa trouxesse essa essência da rua. Andando por São Paulo é difícil não ver um muro pichado – e eu acho que isso representa muito bem o que é As Ruas Sabem.
MP: Uma faixa que me marcou muito foi Tudo ou Nada. Aquele momento em que Galo de Luta pergunta “onde estava escrito que você podia sonhar?” é muito forte. Dá para sentir o peso e a potência da sua trajetória até aqui. Hoje, você sente que já pode sonhar em paz ou isso ainda é uma conquista diária pra você?
Clara: Eu acredito que ainda é uma conquista diária, mas tem sido cada vez mais leve sonhar. Acho que o peso de ser uma sonhadora tem diminuído, e tem se tornado mais gostoso viver isso. O corre é muito louco, é difícil viver de arte no nosso país. Vindo de BH, sendo uma mulher preta e lésbica, sem muito conhecimento da parte burocrática de contrato, fonograma, registro, acabamos nos ferrando muito e, por consequência, deixando de sonhar em alguns momentos. Mas hoje, depois de quebrar a cara várias vezes e encarar essas dificuldades de frente, sinto que tenho sonhado mais. E sonhar não é só cantar. Sonhar é cantar e ter meu estúdio, é ter um espaço que me permita abrir portas não só pra mim, mas para toda a galera que tá comigo, acreditando e botando fé nesse corre também.
MP: É o pensamento coletivo, né? Acho que isso é o mais importante na vida: compartilhar o que temos com os outros.
Clara: Exato. Aqui o trabalho é realmente coletivo. Carlinha, Ricardinho e Bia – que é minha companheira e fotógrafa – trabalham comigo o tempo todo. Mesmo quando não é foto, Bia está presente; mesmo quando não é show, Carlinha está junto. Dico também me ajuda em tudo, é meu braço direito. Funcionamos assim, de forma colaborativa, e é desse jeito que tocamos o corre.
MP: Sobre o show no Sesc Pompeia na sexta agora, 10, o que você está preparando para levar As Ruas Sabem, seu primeiro disco independente, ao palco e apresentar esse trabalho ao vivo?
Clara: Estou feliz demais e super ansiosa! Com As Ruas Sabem, além de estar na pista e rodando mais, os shows de lançamento têm acontecido em lugares muito importantes para a cultura, especialmente para o rap. O show de BH foi no Viaduto de Santa Tereza, no Duelo de MC’s, e agora fazer o de São Paulo no Sesc Pompeia – que já recebeu tantos artistas que admiro – é um sonho, mais uma meta destravada. Estamos preparando um show muito especial mesmo, trazendo As Ruas Sabem, Transgressão, TV Tribo e todos os momentos marcantes da minha caminhada até aqui. Vai ser no formato raiz, MC e DJ, e com participações de Jamés Ventura, Mac Júlia, Vietnã e Smile, todos presentes no álbum. Vai ser um show solo, e estou muito ansiosa pra viver esse momento de celebração da cultura hip-hop no geral. Mesmo levando o rap pro palco, é também sobre celebrar o break, o grafite, o DJ – tudo que compõe essa cultura. Vamos caminhar por tudo o que foi feito até aqui. O público sempre pede músicas antigas nos shows, então estamos preparando um repertório que una tudo o que a galera quer ouvir. Quero que seja uma noite marcante não só pra gente, que está ralando pra entregar tudo com excelência, mas para o público também.
MP: Depois de todos esses anos rimando, vivendo e construindo a partir dela, o que a rua te ensinou que você ainda carrega e não quer esquecer?
Clara: Tem uma frase que temos usado muito nesse processo de As Ruas Sabem: os melhores caminhos são aqueles que nos levam de volta para a gente mesmo. E eu sinto que a rua me ensinou muito sobre isso.