China: “Sinceramente, não quero ter medo de falar”
“O Brasil é muito foda. Moro em São Paulo há muitos anos e nunca senti preconceito por ser nordestino, talvez porque minha bolha é mente aberta. Acho tão burro esse preconceito, porque a gente é tão misturado na essência. É o lugar que eu mais amo na face da Terra. Eu viajo pra fora e gosto, mas logo quero voltar”.
Se amar é sempre complexo, o mesmo vale para nossa relação com o lugar de onde viemos ou onde moramos, e a relação de China com o Brasil, ou com o que o país é hoje, vem carregada de adjetivos distintos no disco Manual de Sobrevivência para Dias Mortos. Tendo o amor e tudo o que ele carrega consigo como base, o músico pernambucano chega inflamado de sentimento em seu discurso, sem perder razão na fala, ao lutar por dias melhores.
Muito bem amarrado em seu conceito, o álbum produzido por Yuri Queiroga comenta sem freios o que notamos nas ruas e timelines nos tempos atuais. “É essa reflexão do que a gente vive no mundo hoje”, contou China ao Música Pavê por telefone, “e, na boa, não é só o meu olhar ou o seu, mas o de um monte de gente que fica indignado. Foi o momento de pensar como contribuir no meio disso”.
Após convidar o produtor, eles ouviram 30 músicas compostas para o trabalho e decidiram recomeçar do zero a partir da palavra “sobreviver” – “porque viver é luxo hoje em dia (risos)”, comenta ele, “eu fico admirado com quem consegue. A gente tá sobrevivendo no Brasil e no mundo com o crescimento do fascismo”. Sobre o processo de criação com Yuri, ele diz que acredita que “o produtor não é o cara que senta ali e corta, é o que te instiga. Ele me conhece há muito tempo e sabe que eu gosto de desafio”.
Disso nasceu um álbum conceitual e sólido, daí não terem lançado nenhuma música solta antes do disco. China queria fazer “uma reflexão aos nossos dias. É como me sinto ao pegar um livro do Graciliano Ramos, por exemplo. Espero que esse disco tenha esse tipo de força, dos temas ainda te tocarem daqui um tempo. Chico é o nosso maior artista porque o que fez há décadas ainda faz sentido hoje”.
“Eu acredito muito que o compositor é um cronista da realidade, esse observar das coisas”, revela ele, “não consigo fechar os olhos e escrever uma canção de amor falando que tá tudo bem. Por mais que eu more num sítio, eu abro a Internet, leio as notícias e tudo mexe comigo pra caralho. Tá todo mundo mais triste, mais indignado. Viver hoje em dia é um ato político, acho do caralho ver a molecada falando de política. Eu fui jovem numa época muito boa, era a primeira vez de um governo de esquerda, primeira vez que vi gente pegando avião pra poder ver a família, comprar carro e eletrodoméstico. Eu vi a arte valorizada. Hoje em dia, a galera vê o artista como inimigo – não lembro quem falou isso dia desses – e isso é um absurdo. A quantidade de hater que me fala que eu mamo na Lei Rouanet e o cara nunca deu um Google para ver que eu nunca usei isso, e, se tivesse também, ótimo, é uma baita lei que beneficia artistas grandes e pequenos”.
No mesmo tom apaixonado, mas com certo pesar, presente no disco, China relembra de uma apresentação de sua ex-banda Sheik Tosado no Abril Pro Rock de 2001, quando o público expressava estar ali só para ver Iron Maiden e ele disse que “o pessoal devia parar de pagar pau pra gringo e olhar pro que estava ao redor, e acho que essa frase continua relevante hoje. A gente tem que trazer orgulho ao país, não ser um país que bate continência para bandeira americana”.
“Fico muito triste quando alguém fala de ir embora”, continua, “e os outros milhões de pessoas que não têm como sair? Aí o cara vai pra Portugal, um governo socialista (risos), o teu problema não é com socialismo, é o teu ódio. Claramente, as pessoas ficam cegas, caindo no mesmo papo de sempre”.
E Manual de Sobrevivência para Dias Mortos chega sujeito à violência dos tais haters e de quem teme a reflexão. “Sinceramente, eu não quero ter medo de falar. A gente ficou brincando que era o disco do exílio (risos)”, brinca ele, e continua: “Eu vou tolher a minha arte porque tem gente que não vai nem tentar entender? Não, porque tem gente que tá mais interessada. A arma que a gente tem é a cultura, e a gente vai usá-la do melhor jeito possível. É o que tá na mão da gente, tentar propor uma reflexão disso aqui. Acredito muito que as coisas comecem a mudar, porque as coisas são cíclicas – absurdos acontecem, depois passam”.
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