César Lacerda e os Porquês de uma “Década” de Música

foto por lou alves

Quanto tempo cabe em uma Década? É uma pergunta que fica no ar quando se escuta a fundo o álbum-coletânea que César Lacerda lançou em agosto para comemorar os dez anos desde seu primeiro disco, Porquê da Voz. Se na medição convencional esse espaço de tempo é lógico, compreendido racionalmente, a percepção subjetiva que vem do passeio por essas composições é que, ao som delas, já vidas inteiras já se passaram.

Falando ao Música Pavê, o cantor e compositor explica que montar o repertório da obra foi “um desafio”, “primeiro, pela quantidade. Ou seja, por essa efeméride se tratar da comemoração de dez anos de trajetória fonográfica de um artista que, neste período, lançou 5 discos e teve canções de sua autoria presentes em outros 60. Segundo, por tentar encontrar uma orientação temática e estética que definiriam este trabalho”.

A história de Década começa, talvez sob alguma ironia, com uma composição inédita, Faz o Teu. “Essa canção nasceu de um sonho”, diz César, “os versos de abertura, ‘Faz o teu enquanto o incêndio avança. Leva o teu copo d’água, teu sopro, teu Deus’, apareceram para mim enquanto eu dormia. Isso nunca havia me acontecido. Daí, na manhã seguinte, acordei e fiz a canção. Essa é mais uma que faço afetado pelo tema do aquecimento global, dos desafios que temos como humanidade diante da crise climática. Mas, como sempre em meu trabalho, tentando apontar uma fresta de luz, uma saída. Percebi, logo depois de pronta a música, que a minha obra velejava entre esses dois pólos: de um lado, compor afetado pelas insurgências destes anos; do outro, apontar delicadezas, respirações, massagens. Foi, então, que pude escolher o repertório”.

Ele aponta Desejos de um Leão, parceria com Uiu Lopes, como outra faixa que exemplifica “essa ideia tão recorrente no trabalho de defesa da vida, de manutenção da vida” presente em sua obra, “dando ênfase à liberdade como conceito formador, gênese da vida: ‘Tudo o que aprisiona o ser, todo esforço de prender, trancafiar, atar, deter o voo lindo de um gavião, faz nascer o camaleão’. “Há qualquer coisa de Refazenda nessa letra”, explica, “uma vontade de desconfigurar em nossas cognições essa noção que quer separar ‘humano’ de ‘natureza’ – como se fosse possível, ou desejável”.

O Fazedor de Rios, parceria com Luiz Gabriel Lopes e Luiza Brina (dois nomes constantes na carreira de César ao longo da década, e antes dela), “precisava estar no disco pois ela reafirmava a força do encontro de nós três, que somos da mesma geração e começamos mais ou menos na mesma época”, conta ele, que diz também que LG sugeriu a composição após ter lido Terra Sonâmbula, de Mia Couto. “A canção é repleta de imagens que soavam, para mim, como reflexos do que o disco se propõe”, conta César, “como: ‘minha sorte é devagar’, ‘a humanidade é minha irmã’, ‘no meu calo da garganta corre água, nasce flor’, ‘meu trabalho é germinar amor'”.

“Além de gravar uma canção de cada disco que eu havia lançado até então, eu queria regravar canções originalmente registradas por outras, outros ou outres intérpretes, mas nunca gravadas por mim anteriormente”, explica ele ao justificar a presença de canções como Minha Mãe – parceria com Jorge Mautner, feita por encomenda para Gal Costa e Maria Bethânia, gravada no disco Pele do Futuro (2018). “Gal, Bethânia e Mautner são estrelas muito brilhantes, orientadoras na minha constelação pessoal”, conta César, “ter tido a oportunidade de me aproximar de suas luzes foi algo muito especial em minha caminhada. Além do mais, a letra do Jorge me soa tão íntima, tão próxima da minha história. Das orações que se faziam ouvir lá em Diamantina. O som da lembrança das tardes. O som da voz da minha mãe”.

São muitas as vidas presentes em Década, uma obra que mostra um pouco do que é César Lacerda como compositor e como cantor – e que privilégio é escutá-lo na companhia apenas do violão, para nos atentarmos melhor ao vocal e às melodias. “Por ser cantor, meu desejo é estar por ai, espelho na voz refletindo o óbvio em mim, sou a geração, o complexo, o coração”, canta ele na faixa que abre e nomeia Porquê da Voz, e que encerra Década. Os versos eram válidos em 2013 da mesma forma que hoje, na poesia de uma linha do tempo que se alimenta de si mesma, desafiando a contagem dos anos e nos lembrando que arte é atemporal, é sempre eternidade.

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