Carne Doce se Entende Hoje como ‘Comedora de Pequi’

foto por macloys aquino

Não sei quantas vezes já ouvi uma banda goiana dizer “a gente é tudo comedor de pequi”. Quase sempre, a frase chega com uma carga autodepreciativa após um elogio, como se vir do cerrado desmerecesse seu trabalho de alguma forma. A memória não me permite afirmar se Carne Doce foi uma dessas bandas (e é bem capaz que tenha sido), mas a questão é que o grupo ressignificou para si mesmo o que sua origem significa, e seus lançamentos recentes têm contado essa história.

Foi o que disseram Salma Jô e Macloys Aquino, falando ao Música Pavê por telefone às vésperas do lançamento de A Caçada, quarto single de uma temporada de lançamentos que nos leva ao seu quarto álbum – que, não por acaso, traz em sua capa uma fotografia em superclose da fruta referencialmente típica de Goiás. “A gente percebeu que tinha alguma coisa regional em nossa música, só não sabia o quê”, conta a vocalista, “alguma coisa que classifica Carne Doce como goiana, ou como brasileira. É isso o que a gente está tentando entender com essas músicas”.

“Na primeira vez que saímos de Goiânia para tocar em São Paulo, chegamos ao Sesc e o cartaz dizia ‘Carne Doce – indie rock goiano'”, relembra Macloys, “a gente ficou ‘uai’ (risos)”. “Existe um conflito em ser daqui com a forma com que as pessoas de fora nos enxergam, mas também da gente com a gente mesmo”, explica Salma, “e a gente descobriu que pode olhar para si mesmo como uma banda do interior do Brasil. Não é só de ser de Goiânia, mas de um lugar ‘sertanejo'”.

Para Macloys, o desafio vem primeiro com um novo entendimento do que essa identidade local constitui. “É difícil, porque não temos uma definição muito clara do que é a música de Goiás. Goiânia pode ser o epicentro da indústria musical sertaneja no país, e quem é de fora nem sempre entende o quanto é estranho estar aqui e não trabalhar com esse tipo de música”, conta ele. Salma explica que essa música que conhecemos como sertaneja “é uma colagem de vários outros estilos, não é uma música tradicional. Isso se perdeu com a industrialização da agricultura, a gente não tem uma carga histórica para explorar e produzir algo que faça sentido para as pessoas daqui”.

“A nossa relação com o patrimônio histórico é complicada, ainda mais neste governo”, continua a cantora e compositora, “na grande parte das cidades, não existe investimento na cultura, e fico cada vez mais triste por estarmos perdendo artistas e formas de viver que representem o povo. Não sabemos mais quem é o brasileiro, ou o goiano, parece que nem temos respeito às pessoas que morreram nessas construções. Fico preocupada com as novas gerações”.

Ao escutar as novas músicas, como A Caçada, fica claro que Carne Doce não está se rendendo a referências diretas, ou até mesmo fáceis, do que se entende por “música regional” para criar suas composições. Mais do que trazer seus questionamentos e pesquisas sobre essa identidade para o primeiro plano, a banda apresenta aquela mesma variedade sonora em uma estética indie que sempre conhecemos, só que com, digamos, o “pequi” nas entrelinhas.

“Essas variações de uma música para outra estão em todos os nossos discos”, comenta Macloys, “é uma característica da banda, e também da Salma”. “A Caçada é uma música diferentona mesmo, ela vai por outra onda, em um ritmo que a gente nunca fez”, explica Salma, que conta também que o grupo está com”uma energia mais aberta para coisas novas, e mais à vontade para lapidar o que tem de bom, consicente das nossas capacidades e limites”.

“Mas o que mais aprendemos ao viajar pelo país foi que o Brasil mesmo está no interior, não no Rio e em São Paulo”, conta Macloys, “e sempre nos perguntam por que moramos em Goiânia ainda, como se sair daqui fosse uma obrigação”. Salma comenta que essa questão “é uma das coisas que sempre nos desanimam. A gente sabe que é bom viajar, olhar o mundo e voltar para nossa calmaria. Esse contraste está na nossa música”.

“Este novo disco e as novas músicas estão tentando olhar para isso”, explica Macloys, “queremos saber como utilizar esses símbolos que são nossos e que nos fazem ser uma banda daqui. Não sabemos ainda muito bem quais eles são, mas sabemos que são eles que fazem nossa música”.

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