“Beleza”, Disse Rubel, Antes de Nos Deixar Pensando no que Fazer com Isso

foto por bruna sussekind

Beleza. Mas Agora A Gente Faz o Que Com Isso? é um alívio – não apenas para a música, mas para Rubel também. O questionamento que dá nome ao novo álbum do carioca paira no ar antes mesmo da primeira faixa tocar, nos transportando para um lugar indefinido. Mas, ao iniciar a escuta das sete composições inéditas, a dúvida dá lugar a algo surpreendentemente claro: beleza. 

A obra é tão íntima que parece abarcar uma vida inteira em seus detalhes. Entre uma versão em português para uma canção de El David Aguilar, uma regravação delicada de Radiohead e um curta-metragem dirigido por Larissa Zaidan, Rubel constrói um trabalho que, acima de qualquer definição técnica ou estética, é simplesmente belo (e corajoso o bastante para não ter pressa em dizer ao que veio).

“Sentia falta de estar no estúdio sozinho, de madrugada, operando os equipamentos”, conta Rubel em entrevista ao Música Pavê, que assina não apenas a produção, mas também grava violões, baixos e baterias, deixando os pianos nas mãos de Antonio Guerra. Arranjos orquestrais de Henrique Albino atravessam as faixas, culminando na participação de Arthur Verocai em dois momentos. 

“É como se eu estivesse dando acesso a uma parte de mim que normalmente não mostro”, diz o cantor. E talvez seja justamente por isso que o álbum ressoe tanto – porque sua beleza não vem da perfeição, mas da entrega.

Música Pavê: Beleza. Mas Agora A Gente Faz o Que Com Isso? é bem diferente. Acho que até o oposto da explosão que foi As Palavras, Vol. 1 & 2, seu último lançamento. Você volta quase em uma pegada nostálgica, parece que se aproxima mais de Pearl e Casas, com voz e violão, algo mais introspectivo. Como você enxerga esse movimento? Foi uma espécie de reconexão com as origens? Uma saudade do antes?

Rubel: Acho que tem um pouco de tudo isso. Uma saudade desse momento, desse tipo de canção. Mas, mais do que isso, sinto que é uma reconexão interna. Estou em um momento da vida em que me sinto muito em paz comigo mesmo. E, para gravar um disco só com voz e violão, e isso ser suficiente, você precisa estar muito forte artisticamente. Desde Pearl, eu não me sentia pronto para entrar em estúdio e gravar algo tão cru, com tão poucos elementos e, ainda assim, me sentir seguro com o resultado. Isso exige coragem e uma certa maturidade. Naquela época, eu era muito imaturo, mas, mesmo assim, existe algo ali que só acontece quando a gente está em sintonia consigo. Para o violão e a voz serem potentes, esse encontro precisa estar muito claro. Em Casas, estava em busca dessa transição para vida adulta. Em As Palavras, buscava uma conexão mais profunda com a cultura brasileira, com o momento político e social do país. Queria entender como me inserir nesse diálogo, como artista. Depois de viver tudo isso, senti que podia voltar. Que podia, simplesmente, pegar o violão e cantar. Sem precisar de muito mais, com a confiança de que isso bastava. Acho que foi preciso ir longe pra conseguir voltar desse jeito.

MP: Você tocou boa parte dos instrumentos, fez quase tudo sozinho. Queria saber como foi esse mergulho mais solitário. Em algum momento o silêncio virou companhia demais ou você encontrou um novo tipo de liberdade criativa nessa experiência?

Rubel: Boa pergunta. Eu acho que não, o silêncio foi um bom companheiro. Não me soou excessivo, porque eu vinha de um processo com muitos colaboradores. Em As Palavras, por exemplo, foram cinco ou seis produtores, além de dez ou doze participações. Eu estive muito cercado – artisticamente, emocionalmente – e acho que, nesse novo trabalho, eu queria o oposto disso. A cada disco, tento fazer o que ainda não fiz. Isso me mantém em movimento. E, dessa vez, precisava de introspecção. Sentia falta de estar no estúdio sozinho, de madrugada, operando os equipamentos, experimentando microfones. De ser, ao mesmo tempo, ouvinte e produtor. Essa relação é muito gostosa. Acho que o resultado carrega um pouco essa sensação – quase como se fosse um diário. É como se eu estivesse dando acesso a uma parte de mim que normalmente não mostro. Um recorte muito íntimo, muito guardado. E, para conseguir imprimir isso no som, é importante estar sozinho ou cercado de poucas pessoas, em um ambiente seguro. Produzi o disco praticamente todo aqui nesse quarto, nesse mini home estúdio onde estou agora. Eu mesmo operei tudo, gravei voz e violão, sampleei quase todos os outros instrumentos, gravei os baixos também. Depois, o piano e a orquestra foram gravados fora, com outros músicos, mas a essência do disco tem esse caráter de “disco de quarto”, sabe? Que eu amo. Tem vários assim que me inspiram: o primeiro da Billie Eilish, Canções de Apartamento do Cícero e até os discos solo do Tim Bernardes têm um pouco disso. Acho que esse trabalho tem essa sensação de intimidade como se você estivesse espiando um pedaço da vida de alguém. E eu queria muito conseguir registrar isso.

MP: Você, com certeza, registrou isso. Quando escutamos, já temos essa experiência, porque somos indagados, né? Principalmente pelo título: Beleza. Mas agora a gente faz o que com isso? Já estamos dentro de alguma coisa – algo que ainda não sabemos bem o que é, até começarmos a escutar. O título traz uma pergunta e nos aproxima do seu mundo. Em que momento dessa jornada criativa você sentiu que essa pergunta resumia o que você queria mostrar com esse novo trabalho?

Rubel: Eu não lembro exatamente o momento, em relação à produção do disco. Não sei se foi antes, durante ou depois, mas acho que foi até antes de gravar. Eu descobri um livro de um autor carioca chamado Triste Não É ao Certo a Palavra, e fiquei muito intrigado com esse título. Gostei antes mesmo de ler, porque ele já me gerou muitas perguntas. Tipo: “Se triste não é a palavra certa, então qual é?”. Achei curioso esse mecanismo – dar um título que já começa no meio de algo, que pressupõe uma história anterior, mas você só entende se mergulhar ali. A partir disso, fiquei buscando frases que causassem esse mesmo tipo de estranheza e curiosidade. Até que cheguei nessa pergunta: Beleza. Mas Agora a Gente Faz o Que com Isso? Veio de forma muito intuitiva. Ela não amarrava exatamente o disco em termos temáticos, mas fazia sentido emocionalmente. Esse trabalho foi menos cerebral e mais instintivo. Muitas letras vieram desse lugar – eu escrevia sem saber exatamente o porquê, como um fluxo de consciência, uma expressão do inconsciente. Escrevia com a esperança de que, no final, aquilo fosse fazer sentido ou, se não fizesse, que pelo menos fosse bonito. E acho que foi isso que aconteceu. O disco tem essa sensação de ser um apanhado de emoções e imagens, algo que não precisa ser compreendido racionalmente. Ele está mais próximo de uma arte abstrata, como um quadro, ou de uma literatura mais poética do que narrativa. Gosto muito disso também. Tem muitos escritores e compositores que trabalham assim. Bob Dylan, por exemplo, tem essa coisa das imagens mais livres, do inconsciente. Bon Iver também – são referências que, embora venham do folk, têm essa forma muito aberta de escrever. Fui longe aqui, né? Mas é por aí. Esse título veio desse desejo de abrir espaço para a pergunta, e não necessariamente para a resposta.

MP: Você canta: Você sabe onde esse trem vai dar. Qual é a próxima estação? na faixa Pergunta ao Tempo. Queria saber como é, hoje, a sua relação com o tempo. Como ele atravessa seu momento de vida agora, pensando em passado, presente e futuro? 

Rubel: Acho que estou tentando fazer as pazes com o fato de que ele passa rápido. Depois que fiz 30, percebi que a sensação de tempo muda. Parece que tudo acelera. A percepção do tempo muda, dá uma sensação de que tudo tá indo rápido demais. Isso me gerou até uma certa raiva no início, sabe? Tipo: “Não é possível que daqui a pouco eu já morro”. Dito assim, parece piada, mas é real. Porque, se você parar pra pensar, daqui a 50 anos eu posso morrer. E 50 anos não é tanto assim. Vejo muita gente passando por isso aos 30, 40, 50… e talvez fique mais intenso com o tempo. Minha mãe, que tem 70, vive esse confronto com muita força: como aceitar que a vida é finita? Mas, hoje, acho que estou em um momento de reconciliação. De entender que, sim, o tempo passa rápido – mas ainda estou aqui, ainda estou vivo, posso aproveitar esse tempo. Tenho juventude, saúde, energia e tanta coisa. Engraçado, quase falei a primeira frase do disco agora sem perceber – isso mostra como o inconsciente age, né? “Tenho tanto pra viver”. E é isso. Sinto que ainda tenho muito pra viver. E espero ter tempo suficiente para aproveitar tudo isso. Então, sim – acho que tempo e eu voltamos a ser amigos. Podemos sentar juntos, tomar uma cerveja e seguir em paz. Conseguimos construir algo bonito, eu diria.

foto por henrique barreto

MP: Eu queria muito falar de Reckoner, cover de Radiohead que você gravou. É uma banda que marcou muita gente, especialmente uma geração de artistas um pouco mais sensíveis. O que te levou a escolher essa faixa em particular? Por que ela, entre tantas de In Rainbows, que tem músicas bem mais conhecidas, parecia dialogar melhor com você?

Rubel: In Rainbows é um dos discos da minha vida. Ouvi pela primeira vez com uns 14, 15 anos, e foi um daqueles momentos em que alguma chave vira dentro de você, sabe? É uma das minhas memórias musicais mais marcantes. Mesmo não sendo uma das faixas mais famosas, Reckoner sempre foi a minha preferida do álbum. Inclusive, acho até meio injusto ela não ser mais reconhecida, porque é linda. Também era a única música de In Rainbows que eu conseguia tocar e cantar com alguma fluidez. Era difícil, porque ela é toda em falsete, e na época eu não tinha tanta extensão vocal. Mas mesmo cantando mal, eu gostava muito de tentar. Ela acabou ficando como parte do meu HD interno, sabe? Está impressa na minha memória – na memória muscular do violão, da voz. E aí, nesse processo de gravação mais introspectivo e solitário, essa música simplesmente voltou. Eu não a tocava há muito tempo, mas ela apareceu com a mesma força das músicas autorais que eu tinha acabado de compor, com um mês de vida, sabe? Ela estava tão viva, tão presente quanto qualquer canção minha, e fez muito sentido incluí-la. Acho que também por conta da melancolia que ela carrega – uma melancolia esperançosa, que combina muito com o tom do disco.

MP: Eu também gosto muito desse álbum. Acho que ele é um marco muito importante para geração, mas, mesmo assim, é muito comum ver artistas que se identificam com ele, que têm esse estilo mais sensível e admiram muito o In Rainbows. Ele tem um peso muito significativo.

Rubel: É, ele foi um marco mesmo. Que bom saber que pra você também é. Além de tudo, ele foi um dos primeiros discos a serem distribuídos naquela lógica de “pague quanto quiser”. Isso foi revolucionário. As pessoas podiam baixar e pagar, sei lá, um centavo, se quisessem. E isso antes mesmo do streaming existir. Foi uma quebra de paradigma na forma de lançar música. Mas, além disso, esteticamente, até hoje eu acho o disco muito moderno. Não existe nada parecido com ele, nem mesmo dentro do próprio Radiohead. Ele tem algo mágico, único. E, sinceramente, sem querer ser modesto, eu sinto que a minha versão de Reckoner conseguiu capturar a alma da música com bastante fidelidade. Porque, geralmente, um cover acaba ficando muito aquém da original. Você ouve e pensa: “Ok, é um espelho daquela música”, mas um espelho mais fraco. Nesse caso, eu acho que não. A versão tem a força da original, especialmente com os arranjos de cordas do Verocai, sabe? Ela me bate como algo realmente expressivo, com identidade própria, mas ainda assim fiel à emoção da música original.

MP: Como foi a experiência da produção do filme do álbum? Vocês tiveram alguma referência externa, inspirações estéticas? Quero saber mais sobre esse processo criativo.

Rubel: O filme foi todo idealizado e dirigido por Larissa Zaidan, uma diretora de São Paulo. Entreguei o disco pra ela com total confiança, mesmo. Dei liberdade pra que ela fizesse o que quisesse com aquele material, porque confio muito na visão dela. A ideia foi criar um curta-metragem inspirado no disco como um todo, não em uma faixa específica. Ela quis contar uma história que ilustrasse o espírito do álbum. E Lari tem umas referências muito potentes. Tem um filme italiano chamado La Chimera e foi uma grande referência. Outro nome importante é Wong Kar-Wai, que já inspira muito o trabalho dela em geral, e esteve presente nesse projeto também. Mas, mesmo com essas referências externas, o resultado acabou ganhando uma estética muito brasileira – acho que de forma natural. Filmamos em 35mm, com a mesma câmera usada em Ainda Estou Aqui. Talvez pela textura da película, ou só por sermos brasileiros fazendo cinema hoje, o filme ganhou essa cara de cinema brasileiro contemporâneo. Lari pode falar disso melhor do que eu – e nem sei se ela concordaria –, mas sinto que há um diálogo visual com diretores como Kleber Mendonça Filho e Walter Salles Jr. É um trabalho visual muito bonito mesmo.

MP: Ao longo desses quatro discos, seu trabalho passou por muitas fases, né? Como você mesmo disse, foi do quarto ao palco, da introspecção à explosão que foi As Palavras, com todas as colaborações. E chega agora a esse novo álbum com um título que até dá um nó na língua: “Beleza. Mas agora a gente faz o que com isso? (risos). Em que momento você se sente como artista agora? Acha que chegou a um lugar de mais estabilidade ou ainda está descobrindo o que faz com isso?

Rubel: Sim, o título é longo mesmo, é pra enrolar (risos). Acho que estou descobrindo. E, para ser honesto, acho que vou seguir descobrindo até morrer. Não sinto que vai existir um ponto final. Talvez eu esteja num momento de mais estabilidade. Passei boa parte da minha carreira com muito medo – medo real de que tudo acabasse. Era algo que me angustiava mesmo, e precisei trabalhar bastante isso em terapia. A música é um mercado muito volátil. Tem gente que aparece e some. Tem disco que faz sentido hoje e amanhã já não faz mais. Sempre tive essa insegurança de que o que eu fazia era passageiro, ou que o meu talento era circunstancial, quase acidental. O segundo disco foi um momento muito inseguro. No terceiro, eu já estava mais seguro, mas ainda me sentia pisando num chão meio incerto. Acho que esse agora é o primeiro disco em que eu realmente pensei: “Tá, eu sou músico. Tenho uma carreira. Vivo do que faço. Sei o que estou fazendo e agora posso me divertir fazendo isso.” Tem um sentimento novo, mas que me lembra o que eu senti lá no começo, em Pearl. Porque, lá atrás, eu não devia nada a ninguém. Eu nem queria ser músico. Não tinha nada a provar, nenhuma carreira para sustentar. Era tudo muito livre. Acho que agora, depois de muita terapia e depois de três discos que deram certo – tanto com o público quanto com o que eu queria artisticamente –, eu finalmente pude respirar. Hoje, não fico mais desesperado buscando garantias de sucesso. Esse disco foi, de verdade, uma chance de experimentar artisticamente, sem me preocupar tanto se as pessoas iam gostar ou não. Só queria fazer o disco que eu queria fazer. E, mesmo sem saber ainda como ele vai ser recebido, vejo que ele é ousado. Ele tem poucas concessões, quase não tem refrão, não tem repetição, não tem hits. Então, precisei de segurança e coragem pra fazer esse disco desse jeito. Pelas conversas que tenho tido, sinto que ele está batendo nas pessoas de um jeito muito verdadeiro. Acho que elas percebem que esse sou eu, sem filtro. E isso gera identificação. Existe espaço para esse tipo de arte também, que não é baseada em hit, em trend, em fazer algo gigante que explode. Talvez esse disco ocupe um lugar menor, mais nichado, mas muito potente em termos de conexão emocional. É nisso que eu tô apostando agora.

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