ARVO Festival: Balanço de Ombros, Quintais de Casas e Levantar de Poeiras

No primeiro dia do ARVO, evento que aconteceu em Florianópolis em 1 e 3 de maio, foi o Beco do Samba quem abriu o festival, com uma parceria no canto das artistas Elô Gonzaga, cantora e compositora de Florianópolis, e Júlia Maria, cantora e artista integrante também do grupo Bom Partido, referência de data no estudo e no toque de samba raiz do estado. O espaço, um palco inaugurado neste ano, veio com uma proposta de trazer um movimento de música que em outros dias ocupa as ruas da cidade.
Paralelamente, o artista de Florianópolis Gabriel, O Rosa, apresentava o seu espetáculo Força ancestral, abrindo um dos palcos principais que pouco depois também receberia Alcione. “Cresci ouvindo Alcione”, o cantor e compositor comenta durante o show, enquanto celebra os encontros, as várias parcerias que cantaram com ele, e principalmente, a presença da família na plateia. Diante da exposição de sua obra, ao fundo com as artes de Rusha, O Rosa entoa com sua voz a letra que diz: “a força dos meus ancestrais não me deixou, estou aqui”.
Elô, ao terminar o show com Júlia, cantou a música Poeira, composição sua com Celinho da Copa Lord, dedicando ela a todas as mulheres que a estavam escutando. Na voz das duas cantoras se ouvia: “Um certo dia, minha mãe me disse: minha filha, acredite, esse mundo é todo seu”. O samba, que associa o estar no mundo como ação que não deixa o chão parado, mas dá vida e levanta a poeira que nele se estagna, traz a dança e o cantar como uma ocupação do vibrar da sua existência: “Eu fico muito feliz porque eu vejo não só mulheres se identificando, mas crianças também, então acho que tem esse papel, de identificação e de mostrar que a gente pode”, ela me conta depois de realizar um espetáculo com Júlia, que coloca a música como uma guia para o reconhecimento do poder que a arte tem de movimentar várias pessoas.
O processo de unir várias pessoas em um espaço onde o que sobressai é a música trouxe vozes que estavam cantando, mas também colocando palavras na música. Alcione, quando subiu ao palco e sentou em seu trono, tomando um cafezinho, cantou com serenidade uma voz tão potente de alguém que estava muito à vontade ali. Ela descreveu a sensação que estava latente em todo o público, ao vangloriar seus músicos, celebrou a música brasileira em uma frase: “Vocês acham que músico americano vai balançar pra gente igual músico brasileiro? Eles não balançam o ombro, eles tocam o que tá escrito na partitura”.

O balanço do ombro começa e vive em vários cantos da cidade, mas, principalmente, no espaço de casa. Elô Gonzaga contou no podcast Pod Black Sul que cresceu ouvindo e aprendendo música no quintal, em um ambiente familiar que vivia o samba, e questiona lugares onde se discute e coloca a música em palavras, como a universidade, mas que não a compreende, não a escuta e não a lê quando ela tá escrita além do papel que alguns a colocam.
Os passos do quintal, da casa, da rua e dos antepassados que constroem a música levantam a poeira de uma cidade como Florianópolis, a questionando: “É uma ilha com energia própria, mistura de gente de vários cantos, mas ainda marcada por uma invisibilização histórica da cultura negra. E é nesse espaço que a gente finca pé, trazendo a negritude pro centro, ocupando com som, com corpo e com presença”, é o que descreve Anis de Flor, artista integrante do Samba da Búia, grupo que nasceu de um encontro no centro da cidade, onde se conheceram enquanto ouviam e tocavam samba na rua, como Quincas Avelino, músico da Búia, explica, que surgiu em uma confluência como a que deságua no rio da Bulha (rio que existia no centro de Florianópolis) do histórico do samba da cidade, dos trabalhadores e trabalhadoras do local, e da própria família dos músicos, que veio de uma diversidade de mundos geográficos e musicais.
O festival, que começou trazendo a arte feita em Florianópolis para seus palcos, recebeu vários artistas que se montaram a esse retalho sobre a música brasileira que foi criado durante esses dois dias do ARVO. O show de Ana Frango Elétrico, seguido depois de Alcione, se interligou por meio da diferença de geração entre dois conjuntos de obras – uma diferença que é mais próxima do que parece, que vai além das idades e do que é o mainstream e o indie. Por meio de experimentos com seu sintetizador enquanto balançava o ombro de um jeito bem Ana, unindo as várias influências de artistas de outras décadas, no palco foi Mulher homem bicho e destrinchou em meio a imitações de animais seu último álbum, Me chama de gato que eu sou sua, e cantou também uma versão de Não tem nada não de Marcos Valle e João Donato, que vai lançar em gravação em breve.
Depois de trocar o palco pela plateia para assistir ao espetáculo vibrante de Os Garotin que iniciou logo após o seu, entrevistei Ana, que celebrou quando comentei a manifestação de Alcione no palco do ARVO, quando, mostrando-se orgulhosa de sua banda, afirmou que o músico brasileiro é o maior músico do mundo. Ana Frango Elétrico descreveu um cenário de competência dos artistas e de envolvimento do público no país como significados de uma riqueza, que parece seguir algo que está no que Alcione iniciou em sua reflexão. Para Ana, a diversidade, a continentalidade que forma a história cultural do Brasil desenvolve o que “é muita complexidade e simplicidade ao mesmo tempo”, como explicou.
A beleza do show de uma parceria de obras que teve sua primeira presença em palco juntas, trouxe uma nuance da complexidade que adentra a música. Juliana Linhares, também da banda Pietá, e Iara Ferreira, artista que mora hoje em Florianópolis, e que compôs músicas como Suçuarana e Perfume de Araçá, cantadas na voz de Juliana e gravadas por Pietá, se comunicaram sob o som do violão, da guitarra, da percussão, do baixo e da sanfona vestidas de verde e azul, respectivamente. A sonoridade de balanceio que evocou o Nordeste no show é também um soar que questiona o que encerra a região em um único movimento, uma imagem parada que, no último álbum solo de Juliana, Nordeste Ficção, ela associou à ficção: “É o que se pensa a respeito do Nordeste que não é o real, é o imaginário construído de várias maneiras, políticas, econômicas, sociais, culturais”, me explicou a artista depois da sua apresentação.
O Brasil que se envolve em ficções e músicas, torna-se a inspiração para o que é criado nas composições de Iara Ferreira, que do complexo sentimento que une certezas e incertezas, cantou no palco sua obra que, de um disco chamado verdeamarela, ela chama de carta de amor ao país: “O Brasil é meu encanto, é meu fascínio, ao mesmo tempo que é esse absurdo, essa revolta que nos causa a questão social brasileira, a questão política”, me contou em entrevista durante o ARVO.
Já Sandra Sá, também endereçou sua carta de amor ao Brasil, diante do pulsar de uma multidão à sua frente, e descreveu de uma forma simples e complexa o que é a sonoridade que lateja no país: “a música preta brasileira começa e continua no tambor”, e termina falando que nela se une o tambor dos donos da terra, que são os indígenas. O espetáculo da Sandra é uma reiteração que ecoa no festival, quando ela afirma entre uma canção e outra: “Nossa música é a melhor do universo!”.
Pouco depois, o mesmo palco foi ocupado pelo tambor da artista Juliana D Passos, que acompanhou o seu cantar rezando, o seu rezo que canta: “Eu vim fazer Macumba Popular Brasileira pra vocês”. Segundo Juliana, “a cultura de dentro do terreiro é um modo de expressar a nossa religiosidade, mas também de utilizar o instrumento de percussão como uma força principal”. A artista colocou o tambor em evidência na entrevista, um pouco antes de movimentar o espaço do ARVO com o seu projeto da Macumbaria, no qual o mundo das religiões afro-brasileiras e sua percussão inerente protagonizam a música do seu espetáculo. A sua família, que tocava samba todo final de semana, foi o estopim para tudo isso, toda a sua arte. Novamente, o quintal.

Uma das atrações de encerramento do festival, no Beco do Samba, foi Samba da Búia, que me descreveu com seu som, mas também com suas palavras, o que significam os balanços de ombros, quintais de casas e levantar de poeiras. Lucão, do grupo, disse que, da imensa criatividade de gêneros que se fazem no país, você ainda acrescenta o molho: “Como Alcione disse, além do molho (as subdivisões rítmicas, síncopes e outras técnicas que adquirimos na prática), temos uma capacidade de nos virar na hora, o que diz muito sobre a nossa formação musical e social”.
A história dessa formação musical que entra no samba, Quincas Avelino diz ser um emaranhado de encontros, no Brasil onde o mundo se refez, se criou por meio da manifestação cultural principalmente negra que se manteve viva. A grandiosidade e a genialidade se explica muito mais nesses espaços que vão além de definições, como a complexidade que Quincas explica se tratar o samba: “Defini-lo é algo complexo sem compreender que ele vem da capoeira, do jongo, da polca, do maxixe, das rodas de pernada. O samba é uma expressão de resistência, de drible, de síncope e de desvios”.
Já Anis de Flor descreve o músico de samba como aquele que carrega um conhecimento ancestral que está não na técnica, mas na alma, e que toca com história, cicatriz e reza, muito além de algo que está na partitura, assim como Alcione disse, mas que está “no corpo, na roda, na escuta e na vivência coletiva”. Algo que tem se entrelaçado com o espaço da cidade. “Floripa influencia a gente na medida em que desafia, provoca e também acolhe. Nosso samba é moldado por essa paisagem que tem mar, tem resistência, tem beleza e tem luta”, descreve a artista.
Epílogo
Antes de entrevistar Zeca Pagodinho, uma das grandes atrações do ARVO, pedi para os músicos do grupo Samba da Búia endereçarem uma pergunta para ele. O grupo se interessou pelos encontros, relações de generosidade e de recepção das composições de amigos músicos nas gravações do artista, mas também por sua visão de como manter a história da grande composição do samba já feito. Zeca respondeu simpático: “Eu costumo fazer as coisas assim, eu não penso muito não. Acontece, vai acontecendo. Quando vê, chegou”. Uma resposta que eu não esperava sobre o que é fazer música, que nem sempre é colocada ou precisa ser explicada em palavras.