ÀIYÉ É Reinvenção e É Redescoberta
Larissa Conforto é um nome frequente para quem acompanhou a cena independente brasileira na última década, seja pelo seu trabalho na extinta Ventre ou por transitar em projetos de diversos outros artistas e bandas. Sua carreira ganha hoje, 20 de março, um novo capítulo com o lançamento de Gratitrevas, seu primeiro disco sob a alcunha ÀIYÉ.
Em entrevista ao Música Pavê, a artista carioca conta que tudo o que está contido no álbum é o resultado de longos processos pelos quais passou nos últimos anos, desde antes do fim da banda. “Quando Ventre acabou, minha meta foi fazer um mosaico, porque eu estava em muitos caquinhos (risos)”, brinca ela,”e eu acho que esse disco é o meu mosaico”.
“Ainda é tudo muito novo”, comenta Larissa, “as pessoas que me conheciam esperavam outra coisa de mim. Quando lancei Pulmão, vinham me perguntar quem estava cantando, porque elas não achavam que eu que iria cantar. Achavam que eu ia fazer um disco instrumental cheio de bateria, mas eu fiz algo eletrônico e cantado (risos)”.
Esse processo de entender o que faria, conta ela, não foi nem rápido, nem simples: “Nem eu sabia o que [ÀIYÉ] iria ser. Eu não tinha nem um ponto de partida, nem um olhar para onde iria. Era eu, minha urgência, um monte de rascunhos de melodias e letras, mas eram só ideias. Eu nunca tinha experienciado compor uma música inteira. Acho que a gente superestima demais o lugar do compositor. Mesmo eu, musicista, que convivi com muitos compositores. A gente acha que é uma pessoa imaculada, que nasceu com um dom, que recebe as músicas do além e as concebe na Terra de forma idolor… e não é. É muita busca, tem que tocar na ferida. É um processo de cura mesmo, de juntar as suas ideias e colocar tudo para fora”.
Essas experiências aconteceram ao mesmo tempo em que Larissa se mudou algumas vezes – morando, além do Rio, em São Paulo e Lisboa -, além de turnês dentro e fora do Brasil. “Na estrada, a gente vai absorvendo muito do que são os compositores e, principalmente, produtores musicais”, comenta Larissa, “principalmente na Europa, onde todo compositor que eu conheci também produzia. Fui aprendendo que compor e produzir eram uma só tarefa, de organizar uma ideia de beat aqui com não sei o quê ali, depois deixar uma pessoa intervir porque isso vai me abrir as ideias… No fundo, é só manter o fluxo. Mas, para isso, eu precisei organizar o meu conceito”.
“Sou baterista, então estudo um monte de ritmos. E, às vezes, os estilos musicais se definem pelo ritmo. Imagina a gama de influências que eu tenho, que são muito diversas. Quis mostrar vários recortes: Falo sobre espiritualidade, sobre política, posso fazer spoken word, vou misturar um ritmo latino com beat e vou falar de coisas que são urgentes e fazer uma canção triste. Como eu vou juntar tudo isso de uma maneira que me represente?”.
Gratitrevas dá conta de resumir muito de quem Larissa é, ou quem se tornou ao longo dos últimos anos com todas essas experiências. O ponto de partida desses processos foi Semente (não por acaso, a faixa de abertura do álbum), que ela compôs após sua avó falecer no dia em que a bateria faz aniversário, e comemoraria em um show com Ventre. “Foi em 2017, ainda é super recente”, explica ela, “mas eu tenho toda uma vida de pesquisa com ritmos latinos e rituais, entendendo a ancestralidade do tambor, as histórias que estão por trás dos toques e como os ritmos – que originaram o que ouvimos hoje – foram mudando. Nasci no berço do samba no Rio de Janeiro, tenho toda uma vivência muito forte com samba, maxixe, baião e uma porrada de ritmos. Isso sempre ecoou em mim, mas eu nunca coloquei isso no meu trabalho musical, porque sempre estava atrelada a outro compositor”.
Parte da identidade do disco está também atrelada ao fato dele ter sido feito em vários lugares diferentes, enquanto Larissa viajava. Como ela conta, o processo de compor na estrada “faz você mudar de ideia o tempo todo, porque é exposta a estímulos diferentes, ou cada vez usa um outro fone, com barulhos diferentes ao redor. Eu não tinha conforto, estava na casa e no país dos outros. A estrada me fez lidar muito com as dores, com as dificuldades e as urgências, e eu sempre sozinha, chegando e saindo sem ninguém estar me esperando no aeroporto ou na rodoviária. Eu só me dei conta disso quando cheguei no Rio e fui atropelada. Ninguém nem ficou sabendo, porque ninguém sabia a hora que eu ia chegar, e fui atropelada na porta de casa”.
“Mas tem também todas as coisas boas que acontecem, que nos estimulam a continuar esses processos. Quando a gente vai ver, tá há muito tempo tocando nas feridas. [São] muitos processos de aberturas e fechamentos de ciclos, o universo se expandindo e comprimindo… Eu tinha noção que era um ato corajoso, e eu estou sentindo na pele… e dói (risos). É o começo de um caminho que se abre, e que eu só quero percorrer sem pensar no fim.”.
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