Joaquim em Composições que Florescem do Abstrato, de Palpites e de uma Varanda

foto por livia andrade

Varanda dos Palpites, primeiro álbum de Joaquim, veio ao mundo nesse dia 15, liberando as composições feitas pelo artista talhadas em piano-e-voz, coladas a letras que se moldam a palavras muito bem pensadas, colocadas e articuladas por ele para dizer estados, disposições do espírito que surgem e existem melhor no abstrato, no turvo da mente, mas que se encaixam perfeitamente em lugares possíveis de serem reconhecidos e compartilhados, como a sua música. A obra de Joaquim pode se transfigurar em uma localidade (ele conta que vem daí o conceito do álbum), como é a Varanda dos Palpites, um lugar concreto, localizado na casa de um amigo do artista. Um espaço que pode ser considerado uma espécie de laboratório efervescente para ideias sem pretensões de compreensão mas que ao final são entendidas, mesmo que de forma incompleta, inconsciente, ou aleatória. Elas se comunicam por meio de uma linguagem muito específica, que nasce da capacidade criativa que faísca das conversas em fluxos livres entre amigos, que acontecem também em várias varandas por aí. 

A ideia do título do álbum, que veio para Joaquim bem antes de montar um repertório para ele, é uma espécie de homenagem a esse lugar que ele conhece, mas também a esse estado de existência que floresce nas varandas, que também se faz no seu processo criativo. A aleatoriedade como forma possível de processo de composição, as referências que não precisam ser claras e evidentes nem pra ele mesmo, das conexões musicais que se constroem no inconsciente e, de alguma forma, desaguam na sua música, sobre não precisar ser condizente consigo mesmo, são os palpites trocados pelo Joaquim em uma conversa com o Música Pavê, que super poderia ter se desenrolado em uma varanda.

Música Pavê: Sobre suas expectativas pra esse primeiro disco, desde quando começou a compor, desde novo, muito cedo, até vir à mente um trabalho de carreira solo, Varanda dos Palpites, como ele é hoje, existia de alguma forma na sua concepção de expressão da sua arte? E o que ele se tornou no final?

Joaquim: Eu comecei a compor faz bem mais tempo do que comecei a pensar em qualquer coisa de carreira, e muito menos em alguma coisa solo. A carreira solo foi muito circunstancial da vida, e hoje estou bem embarcado e adorando a ideia. A ideia de Varanda dos Palpites como álbum, pelo menos o nome, já é anterior à concepção final dele, ao repertório final, à gravação e tudo mais, apesar de algumas reviravoltas. Em algum momento, pensamos em mudar o nome, mas voltamos atrás para Varanda dos Palpites. É um nome que eu e alguns amigos demos a uma varanda de um amigo há um tempo já, muito antes de qualquer coisa de álbum, antes de ser o nome da música. Mas a concepção é essa sim, e acho que se manteve mais ou menos a ideia, mesmo que o repertório tenha mudado, tem um conceito total ali da forma de composição que eu acho que manteve a ideia desde o começo do nome.

MP: Sobre o piano na tua vida, como ele foi tomando a forma na sua história de composição, desde criança que foi entrando em contato com a música até o Joaquim que terminou Varanda dos Palpites, com um piano que já estava dialogando com outros instrumentos?

Joaquim: É um desafio tremendo pra mim tocar com outros instrumentos o meu piano, principalmente o autoral, porque, mesmo que eu tenha feito muito tempo com banda (e ali tinha uma química que funcionava totalmente), mas tocar de modo geral assim é difícil pra mim. É um desafio, porque eu toco muito sozinho e minha mão esquerda é bem baixa, acaba pegando o lugar do baixo às vezes, então eu tive que me adaptar bastante nos últimos anos,. Acho que meu piano é muito de adaptar pro que eu queria fazer, desde que comecei a tocar, e é um aprendizado muito diário que acontece, muito circunstancial, muito de acordo com as coisas que estou a fim de fazer e muito na prática mesmo, de ficar tocando até ficar bom, e na minha, muitas vezes.

MP: As músicas de piano que foram entrando pra ti, o piano nas outras músicas que escutava, como ele foi se conectando com sua composição?

Joaquim: É complicado, porque referência é sempre um negócio muito turvo pra mim, especialmente essas assim específicas. Eu não sou de parar para aprender o piano de alguém – devia ter feito. Amo João Donato, Tom Jobim, Stevie Wonder. Eu amo pianista que toca e canta. Elton John acho que é referência para mim, assim como é pra qualquer pessoa, [mas] eu não parei para estudar, ou essas voz-e-piano tipo Angela Ro Ro também que é uma referência que apareceu mais recentemente – e que você fala no texto, inclusive. Acho que são referências que são recentes e que aparecem naturalmente, mas é isso. É raro, né, gravação de piano e voz cantando não é a coisa mais comum, até para esses pianistas tipo Elton John têm poucas. Então, por tocar muito tempo só o piano e voz, eu acabava adaptando para minha forma de tocar ali no meu canto, sabe? Mas, enfim, são esses pianistas que eu citei, e mais coisas recentes também. Gosto de música de um modo geral, e piano é o instrumento que toquei a vida inteira, mas gosto muito de todo tipo de instrumentista também.

MP: Aproveitando o gancho, que você falou de Angela Ro Ro, e você deve estar cansado de ouvir que todo mundo te compara. Ela não necessariamente é uma influência principal pra ti, né? Você incluiu especialmente uma música dela em teu disco, Fogueira, e como você acha que essas comparações afetam na sua percepção da sua música hoje? Acha que realmente tem algo parecido ou começou a enxergá-la a partir de Angela Ro Ro?

Joaquim: Nunca vou cansar de me compararem com Angela Ro Ro – se quiser me comparar com a Angela Ro Ro, maravilha, eu acho uma honra, pelo amor de Deus. Mas, de fato, é uma referência recente, e eu amo muito Angela. Primeiro, descobri Fogueira, que, de fato, foi a primeira música que eu ouvi e parei pra prestar atenção nela. Muito coincidentemente, porque muito antes de pensar em tocá-la, foi um amigo, Chico, quem me mostrou, mas na voz de Bethânia, nem sabia que era da Ro Ro, eu fui descobrir muito depois. E aí, fui pensar em Ro Ro de fato quando uma amiga, Manu, me mostrou Gota de Sangue. Eu amei essa também, ouvi o álbum inteiro ali e achei o máximo, mas fui parar pra ouvir mais ano passado. Fogueira apareceu muito na ideia, Marcus (Preto) (co-produtor) queria colocar um respiro no disco e embarcamos muito nessa idei. Não foi tão simples achar a música, ficamos alguns meses assim. Não vou dizer que atrasaram o álbum, mas, assim, fizeram parte de uma bola de neve que fez o álbum vir para agora, porque é ele já vem de agosto de 2023. Mas é uma parada que se resolveu no show do Bona que eu toquei Fogueira com Luiza Villa, e aí Marcus falou: “Pô, é essa”. Aí, eu toquei, achei uma belíssima ideia e saiu Fogueira. Acho que essas referências e essas comparações, não acho que são exatamente comparações, que se fala em Ro Ro quando me ouve. Acho que tem uma coisa interessante aí, porque eu não pensava muito na minha voz, no meu piano e voz, na minha canção, de certa forma, performática, uma coisa legal da minha forma de me apresentar. Antes de conhecer Marcus e Leo (Quintella), que também dirigiu artisticamente o álbum, sempre entendi mais a minha música, a minha composição como a única coisa que valia assim. E aí, fui entender que a minha voz valia alguma coisa mesmo com ele, sabe? E essa forma de tocar voz-e-piano com o tom mais alto, fui aumentando o tom das minhas músicas com ele. Apareceu tudo recentemente, tanto a referência quanto a ideia de pensar minhas músicas assim.

MP: Me explica o que é essa geração que foi impactada pelo Coala Records, o que é ser impactado por ele e de que forma ele dialoga com sua arte?

Joaquim: Eu acho que é natural, de serem artistas que, até antes de aparecer [o selo], mas mais ou menos na onda do festival, terem aparecido quando eu comecei a sair para ver e pensar em fazer shows e tudo o mais, ali com 14 anos, 15 anos, que era O Terno, Rubel também, especialmente esses dois. Tudo o que Coala lançou depois veio a ser referência pra mim, me gerou um afeto grande pelo negócio, também quando lançaram Bruno [Berle] e Bebé. Acho que todas essas coisas foram somando pra eu gostar muito. E toda essa geração, assim, tenho muitos amigos e amigues que foram ao Coala Festival várias vezes, e é um rolê comum para muitos nichos, até porque a curadoria vai para caminhos bem malucos. Por exemplo, este ano tem Kiko Dinucci e Tássia Reis, que é um puta show. Esses shows-mistura, assim. Acho que tudo isso foi somando para o selo virar um negócio muito legal, que parecia, junto a outros selos aqui de São Paulo, ser muito legal para tentar lançar alguma coisa. Mas não imaginava que seria no primeiro [disco]. Estou muito animado por lançar com eles, porque é divertido, é um selo bem legal de se trabalhar.

MP: Me conta dessas referências que você tem fora dos artistas conhecidos, como sua avó e seu professor de música. Como sua vida pessoal entra na música?

Joaquim: Minhas duas referências maiores são essas duas que você cita, que eu consigo atar e pensar momentos que realmente mudaram minha percepção musical. Minha avó me influenciou muito diretamente a pensar letra, a pensar canção brasileira. Gera (Geraldo Orlando), meu professor de música, me ajudou muito com percepção musical, a vida inteira, com canção também. Mas, além deles, tenho minha tia-avó. Ela tocou piano a vida inteira e parou de tentar de fato com 20. Tenho um tio que é produtor e engenheiro de som, e outro tio que também toca piano de hobby, mas são referências. É muito engraçado, almocei com minha tia-avó no domingo de Páscoa, e não almoçava com ela na Páscoa há muito tempo, e aí fomos à sua casa eu, minha mãe, ela e minha avó. E ela tocou, fez uma pianada, assim, curta. Era um piano de armário que ela tem lá há décadas, e fiquei muito chocado como o piano dela é bem parecido com o meu. Ela é uma pessoa que tenho mais dificuldade de datar referência assim, mas é uma pessoa que lembro de tocar piano. Minha mãe mandou um vídeo recentemente dela tocando comigo com três anos do lado. São pessoas que são muito importantes. Meus amigos e pessoas que eu me cerco hoje são muito importantes para o conceito desse álbum também. Varanda dos Palpites é uma música que fala de amizade, de alguma forma, tudo um pouco extrapolado. Pelo menos, o título vem de uma varanda de um grande amigo meu, e de várias conversas importantes que tivemos lá. Fiz três das músicas do álbum em uma época em que estava morando na casa de um deles, onde fiquei por umas três semanas na pandemia – totalmente de penetra, entrei, invadi, e ele deixou eu ficar. Mas foi bom, porque saíram três músicas que são importantíssimas pra construção do álbum. Minhas referências são as pessoas que eu me cerquei.

MP: Que massa essa transformação que você fez da música de Carson Parks, Something Stupid, que é conhecida pelos Sinatras (cantados por Frank Sinatra e a filha Nancy Sinatra) em um quase João Gilberto. Me diz como se dialogam essas influências estrangeiras, que vão desde Thundercat ao gospel americano, com essa veia bem brasileira que você tem?

Joaquim: Bom, primeiro que eu sou de uma geração que eu ouvi muito Rádio Mix e Rádio Disney para ir à escola. Então, muito pop americano a minha vida inteira. Não só o que era colocado forçadamente no nosso ouvido, eu parava pra escutar a estação de fato, e queria ouvir aquilo. Eu me referenciei muito também por isso, em artistas específicos, como Bruno Mars – um artista que amei a vida inteira. Muitos vêm também de aleatoriedades, como [na trilha de] uma série, e aí entro na onda de alguma coisa que ouvi lá e vou atrás. Alguns eu vou pirando mais, porque eu vi Atlanta e aí eu comecei a pirar muito em Stevie Wonder, que toca em um episódio importante da primeira temporada. Não só ele, mas o gospel americano também vêm de coisas aleatórias de ficar ouvindo. O gospel americano vem mais do lugar do soul. Eu gosto muito do coral, que é uma coisa que nem foi muito estudada no álbum, mas é uma parada em que eu tenho muito a brisa da construção harmônica. Mas são referências muito da canção, e eu gosto muito de jazz também. E a pergunta era quais são as referências?

MP: Acho que você é muito muito brasileiro, mas traz muita coisa estrangeira. Como é que se interliga esses dois?

Joaquim: Olha, é difícil dizer. Eu acho que vai indo. Pelo menos nas construções das minhas composições, fico meio perdido para dizer como vão se somando as referências. Mas, para Me conta, foi muito por acaso. Estava na onda de Disse Alguém, uma versão brasileiraque João Gilberto interpreta com Caetano, que é um espetáculo, e que eu estava ouvindo muito com meus amigos. E aí, não sei de onde, acho que de um story de uma amiga minha, que eu ouvi Something Stupid e falei “nossa, essa música tem uma métrica ali encaixadinha para um negocinho”, e o samba, a bossinha ali de João Gilberto, foi muito… Poderia não ter ido para isso, mesmo mantendo a referência de João Gilberto, mas foi muito pelo acaso da composição. Mas é isso. Interessante essa coisa de que eu sou muito brasileiro, gostei.

MP: Seu disco tem muitas ideias legais. Suas letras são conversas internas sem pretensão alguma, ou você pensa essas ideias seriam legais trazer para trocar com a galera, com meus ouvintes”? E eu já junto essa pergunta com a questão de Emboscada, como é que foi essa conversa com Leo que gerou a faixa?

Joaquim: Vou começar pela segunda parte, que eu acho que ela vai desencadear na primeira. A conversa com Leo foi muito despretensiosa na época. Éramos só amigos, e não lembro o porquê, estava na casa dele, só nós dois, e começamos a conversar sobre meu repertório. Estava muito na onda de fazer um álbum, Marcus nem estava na história, nem sabia quem eu era. Estávamos entendendo ali, eu mostrava pra ele todas as músicas que eu queria gravar. Eram umas vinte, uma parada muito grande. O álbum já chamava Varanda mas era outra pegada, e tinha umas ideias meio loucas de lançamento e tudo mais, eu estava meio pirando. Foi uma conversa interessante, foi aquilo que eu falei sobre entender algumas coisas que ele via que eu não conseguia ver. Eu realmente não observava sobre mim a voz ali, do tom alto, uma das formas de cantar. Não estava entendendo isso para agora, e foi uma conversa que foi boa para começar a entender que ia se desencadear de fato com Marcus e com Leo em várias conversas que tivemos. Fomos entendendo o repertório e tudo mais, cortando, adicionando uma ou outra e chegando nisso. Aí, a letra de Emboscada não é sobre isso. Sobre querer trazer algo de fato, não ter uma mensagem, porque é isso, eu não sou muito apegado, especialmente quando estou compondo canção, a fazer um negócio que seja muito condizente àquilo que eu acredito cem por cento, sabe? Tento tirar bastante, tentar embarcar naquele estado de espírito. Muitas vezes, inclusive, é consciente. Outras vezes, não. Às vezes, inconscientemente, eu embarco mesmo. Às vezes, conscientemente, eu falo: “Vou escolher pensar o que eu pensaria, já que eu comecei a pensar desse jeito”. Acho isso importante, porque, se não, fico muito preso, preciso deixar um pouco a coisa fluir e me perder um pouco. Quando estou sóbrio, consciente, absolutamente fora do processo criativo, vou cada vez mais entrando naquela onda. Apesar disso, tem muita música no álbum que talvez tenha uma faísca na realidade, mas que se desenvolveu muito numa coisa bem abstrata, muitas vezes tentando projetar um sentimento, ou uma situação.

MP: Para terminar, você já meio que falou um pouco nas outras respostas, mas onde é que fica a Varanda dos Palpites, o que tem nela?

Joaquim: A Varanda dos Palpites é uma varanda bem tranquila, assim, uma varanda clássica daqueles prédios com cinco flats, sabe? E é uma varandinha bem gostosa, cabem umas três pessoas sentadas e umas duas em pé, na casa de um amigo, Arthur, no apê dele. É um apê bem gostoso, de universitário. E nos encontramos para ver filme às vezes, ficar cagando regra, falando besteira e umas coisas mais… faz tempo que não vamos lá, mas, é um lugar que foi muito importante, [de conversas] tão longas e tão densas, e muitas vezes tão particulares daquele momento, muitas vezes pouquíssimo sóbrio. Então, às vezes acontece de esquecermos o que acontece exatamente, tipo, qual que é a ideia exata que veio de lá. Apesar disso, a música Varanda não fala propriamente da Varanda dos Palpites, é uma soma de outras várias coisas assim e – de novo, né? – extrapolações. Bastante coisa que vai no flow do que estou começando a escrever ali e eu tento entender na hora. Estou tentando colocar em palavras um processo que é mais aleatório do que isso, e que acontece muitas vezes dessa forma.

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