Entrevista: Kokoroko
Londres nunca foi tão calorosa quanto no som da banda Kokoroko. Queridinha da cena de jazz na Inglaterra, com admiradores ao redor do mundo, ela teve a oportunidade de visitar o Brasil pela segunda vez para shows em duas cidades de São Paulo (na capital e em Ribeirão Preto) em outubro. A diferença é que, desta vez, foi apresentado o repertório de Could We Be More, seu excelente primeiro álbum, lançado em agosto.
O disco chega após anos de singles, EPs e, é claro, muitos shows que permitiram que o septeto desenvolvesse uma identidade muito própria, entre diálogos com o aspecto cosmopolita da metrópole britânica e com as raízes africanas de seus integrantes. Dois deles – Sheila Maurice-Gray e Ayo Salawu – sentaram-se com o Música Pavê para comentar a produção da obra e a turnê.
Música Pavê: Como foi poder trabalhar em Could We Be More, que é uma obra de longo formato – um LP – após tantas experiências de menor duração?
Sheila Maurice-Gray: Foi intenso. Passamos um bom tempo trabalhando no disco, desde antes do EP (KOKOROKO, 2019) – Age of Ascent foi composta naquela época. Nós queríamos que ele fosse o melhor possível. Tivemos que aguardar pelo melhor momento de gravá-lo. Durante o isolamento [da pandemia], tivemos tempo para conversar, cada um jogou suas ideias e ficou claro que nós precisávamos compor músicas sobre quem somos, sobre o nosso som. O que ela quer dizer? O que nós queremos? Que cara ela tem? Todos colaboraram com muitas ideias, foi bem divertido.
Ayo Salawu: Foi nosso momento de desacelerar e nos unirmos em um só lugar quando chegou a hora de gravar o álbum. A pandemia tem sido horrível, mas tivemos a oportunidade de aproveitar a situação ao máximo com essa produção, com todo o tempo que tínhamos para dedicar à obra.
MP: O que o processo de produção do disco ensinou a vocês sobre Kokoroko?
Ayo: É uma boa pergunta. Me ensinou que existe todo um mundo de influências que vai muito além de qualquer coisa específica. Nós sempre soubemos disso, mas, ao perceber como o disco ficou psicodélico, ficou evidente como isso é o produto de muitas mentes criativas trabalhando juntas. Nós ouvimos referências de épocas diferentes, até porque há certa diferença de idade entre os membros – quase dez anos -, por exemplo Duane, o baixista, se lembra muito mais dos anos 90 do que eu. Então, tem certas coisas daquela época que ele traz para a mistura, algo de R&B… Enfim, diferentes pessoas trazem referências diferentes.
MP: Pelo que vocês estão contando, presumo que o processo criativo seja bastante orgânico. É isso mesmo?
Sheila: Há tantos momentos assim. Todos os envolvidos na gravação, como produtores e engenheiros de som, trouxeram ideias de referências e sugestões de discos que deveríamos escutar, ou vídeos que tínhamos que ver. Foi uma época de muito estudo. E estávamos muito animados, porque foi um tempo que nos acendeu muita alegria e muita criatividade.
Ayo: E ao vivo é tudo muito diferente, isso é algo que eu logo aprendi. Foi importante ter esses profissionais conosco, que vivem no estúdio e sabem como, por exemplo, Quincy Jones tirou algum som de um instrumento. Eles entendem não só as referências que trazemos, mas sabem que equipamento que foi usado [naquela gravação], quais microfones, coisas assim.
Sheila: Houve momentos em que eles montavam a bateria e passavam o som por duas, três horas, só para ter certeza que o chimbal estava com o microfone correto para aquela afinação.
MP: Eu, que não sou músico, compreendo muito melhor como é compor uma música de outro gênero que não seja o jazz, que é conhecido por suas improvisações principalmente ao vivo. Como vocês compuseram as faixas desse disco?
Sheila: Acho que pode ser confuso para um espectador estar no estúdio conosco. A pessoa ia perguntar “como é que eles vão fazer para criar algo que seja harmônico?” (risos). E nem sempre é um processo harmonioso, mas é sempre muito mais do que parece. Na maior parte do tempo, nos entendemos e concordamos. A música é o coração do projeto. Então, escutar o que a música quer, o que a música pede naquele momento. Eu acho que esse processo traz bastante criatividade e união para a música, fico muito empolgada. E já estamos no processo de compor o próximo.
Ayo: O processo é longo, leva uns dois anos para chegarmos aonde queremos com a música, então já começamos a pensar no disco.
MP: É a segunda vez que Kokoroko toca no Brasil. Qual sua relação com o país hoje?
Ayo: Não vou mentir, sou apaixonado pelo Brasil (risos). Só de sair da Europa e estar em um outro continente, onde tudo é tão diferente – porque, às vezes, você viaja dentro do continente e muita coisa te lembra Londres, mas aqui é totalmente outro ambiente, distante daquela cultura ocidental. É ótimo estar aqui.
MP: E sua relação com a música brasileira?
Ayo: Nós saímos pra comprar discos ontem e eu vi muita coisa de samba, só não lembro os nomes agora.
Sheila: Na primeira vez que viemos, me surpreendi com o quanto a cultura hip hop é apreciada em São Paulo.
Ayo: Nós saímos pra ver hip hop ao vivo anteontem, é incrível ver como as pessoas se sentem à vontade para dançar aqui. Na Europa, todo mundo é muito mais… [ajeita a postura e fica parado, com semblante sério].
Sheila: Especialmente em Londres, onde todo mundo é tão fechado.
Ayo: Sim, aqui as pessoas entendem que a música está ali para você dançar (risos). Sei também que tem bastante afrobeat por aqui, como Funmilayo. Isso é muito legal.
MP: Vocês conhecem a cena de jazz do Brasil?
Sheila: Não conhecemos o suficiente. Sabemos que as pessoas gostam muito de jazz no Brasili, e, sempre que estamos aqui, somos convidados para jam sessions. Há uma quantidade absurda de músicos excelentes aqui fazendo música boa.
MP: Ao viajar para shows, vocês têm a oportunidade de conhecer outras cenas e ver a música de outros países. Como isso te faz enxergar a cena de Londres, de onde vocês vêm?
Sheila: É muito diferente, a começar pelo clima. Quando você está em um lugar com clima tropical, você vai tocar sabendo que será diferente da Europa. E mesmo dentro da Europa as coisas são diferentes. Quando você vai pra Itália a comida é boa, você é tão bem recebido. E aqui é parecido. A cultura brasileira é tão rica, me lembra o oeste africano. E eu não vejo a hora de conhecer a Bahia e Salvador.
Ayo: Quando você olha para a Europa, você percebe que Londres é um dos poucos lugares em que você encontra [cultura] do oeste africano e também caribenha. Porque, nos outros lugares que já fomos no continente, não há muita representatividade. É claro que a experiência ainda é melhor quando você viaja a lugares como o Brasil, mas Londres ainda é a única cidade europeia em que você encontra música e culinária autênticas de outros países. Acho que esse fator é o que possibilita que bandas como Kokoroko surjam em Londres.
Curta mais entrevistas exclusivas no Música Pavê