Rico Dalasam Precisava de um Tempo

foto por larissa zaidan

Dolores Dala Guardiã do Alívio pode surpreender quem acompanha a trajetória de Rico Dalasam ao longo dos anos, entre o rap e o pop para dançar. Desta vez, o artista paulista investe em uma lírica sentimental e interpretação emocional para contar uma história que começa a se desenrolar a partir destas cinco novas faixas.

Foi sobre a trajetória que o levou a esse lançamento que ele falou ao Música Pavê por telefone, uma entrevista marcada tempos antes que, coincidentemente, aconteceu no dia em que a mídia e a indústria cultural estava paralisada a favor do movimento Black Lives Matter. Não é de se estranhar, portanto, que esses acontecimentos desde que o disco saiu (em 28 de maio) ajudaram a pautar a conversa. “Sinto que o diálogo que eu tô estabelecido nos últimos dias não foi estabelecido antes”, conta ele, “é um sinal de uma maturação e de coisas mais profundas em um lugar que me dá prazer”.

Rico conta que o novo trabalho surgiu de um período de “prática de ausência”, no qual ele se distanciou dos holofotes e ficou três anos sem lançamentos. Havia uma “necessidade de recontar o tempo”, como ele explica, após a rapidez com que sua carreira se desenrolou: “As coisas ganharam tanta velocidade com Modo Diverso (2015) que precisei fazer coisas que nem sabia, como shows internacionais. Depois, veio Orgunga (2016) e, com Balanga Raba (2017), vi que, para além do rap, tinha um flerte com esse pop que tem uma entrada boa pra universos LGBT”. Esse processo foi impulsionado por Todo Dia, que escreveu para Pabllo Vittar, e pelo sucesso de Fogo em Mim. “Tudo foi feito sem pausa, sem tempo pra redimensionar”, comenta ele.

“Tive que fazer escolhas muito decisivas sobre meus próximos cinco anos, e algumas coisas talvez não tivessem volta”, conta Rico, “eram outras jogadas e outras cartas que eu tinha na mão sobre proporções e alcances das coisas, mas que depois eu talvez não conseguisse nunca mais trazer um Dolores, pensando no rumo que minha vida ia tomar e as curvas que não daria para fazer na indústria”.

O novo EP, que ele define como “o primeiro capítulo de uma história maior”, traz histórias e reflexões que ajudam a compor o universo em que esse trabalho chega. “São questões altamente latentes do mundo e da minha vida”, conta o músico, “Braille fala de um relacionamento inter-racial, Mudou Como? é sobre a estrutura colonial que vivemos e como ela é abusiva nas relações, e tem um alívio em Vividir, de voltar ao ponto de partida ainda que nada mais seja o mesmo”. O disco chega como “a trilha para uma obra literária, mais do que apenas musical”, nas palavras do artista, “ele é curto, mas carrega todas essas camadas”.

Como ele mesmo explica, essa história só pôde ser contada dessa forma a partir das reflexões que ele se submeteu naquela temporada inserido em um universo pop tão diferente do rap onde cresceu. “Comecei a ver que algumas coisas não me traziam contentamento, estava me esticando para lugares de pontos positivos, mas assentando minha humanidade e subjetividades para estar naquele lugar”, conta Rico. Contratado para escrever para outros artistas, ele começou a se entender “como compositor, para além de um rapper” e permaneceu nessa função por um certo tempo, até o momento em que isso não lhe fez mais bem.

“Tinha muita demanda e eu estava negando a minha humanidade”, explica ele, “ao mesmo tempo que fazia isso em busca de algumas dignidades, como ter meu apartamento, eu estava negando minha arte. Vi que precisava parar antes de sair tropeçando em coisas que são muito mais profundas que só lançamentos do rap ou do pop. Eu já estava cruzando essas questões porque, quando você vem de lugares da subjetividade (como o rap), você produz com olhar para esse lugar. No universo plástico de linha de produção, você fica no vácuo”.

Ele explica que essa perspectiva é pautada também por sua origem “nas pautas identitárias, um lugar que me deu um olhar sobre mim – fui o primeiro rapper gay que conseguiu visibilidade no Brasil. Você vem disso e descobre que tem outras potências dentro do mercado. A forma de traduzir isso dentro da indústria é ganhando dinheiro. Temos inúmeros casos de artistas que têm reconhecimentos, mas não conseguem capitalizar isso, artistas que vêm de uma precariedade e uma emergência que são os temas de suas obras. Para mim, foi fundamental criar uma grana e montar uma estrutura, só pude praticar a ausência por causa disso, e mais uma vez a arte teria perdido pro entretenimento”.

“Essa coisa da ausência, do ‘ver de fora’, te dá possibilidade de fazer essa análise e conseguir dimensionar o que você descobriu sobre você, o que você já sabia, o que funciona e o que acham sobre você. E, a partir disso, você faz um balanço e descobre o que te dá alegria e o que te dá grana, mas não te dá alegria, ou o que te dá prazer pro seu ego, o que te dá tesão e o que você consegue também fazer por seu bem estar dessa coisa que não te alegra. Esses últimos anos foram de fazer esse balanço e entender que eu já construí alguma coisa. Eu sei que o mundo hoje tá no fluxo de acontecimentos, mas, por outro lado, eu acabo de sair de um fluxo, e eu tô contente como não estive nos últimos três anos”.

Sobre os acontecimentos que se desenrolaram pelo mundo junto ao lançamento de seu disco, com o assassinato de George Floyd nos EUA e uma nova exposição para o Black Lives Matter, Rico comenta que precisa de mais tempo para entender as implicações. “Eu penso muito no que nos distrai e no que parece que está a serviço de uma possibilidade de humanização e resgate de humanidade, mas ta só servindo para humanizar outras vez pessoas brancas dentro do racismo e outra vez existindo só para fazer a manutenção da estrutura colonial, mesmo que tudo isso aparente uma ideia libertária e de progresso”, reflete ele, “acho que a indústria parar hoje talvez instigue sim essa perguntas e questionamentos do que se pode fazer para além da rede social para que a supremacia branca não provoque tantos danos às vidas pretas. Algumas pessoas vão querer pensar mais, e outras só hoje, porque descolonizar é um processo de ceder a branquitude do lugar que se está para que haja uma equidade, e isso é desafiador”.

É a luta da qual ele faz parte em sua vida e, consequentemente, em sua obra – como Dolores mostra tão bem, se assemelhando nisso mais aos primeiros trabalhos de sua carreira do que com aqueles que mais levaram o nome Rico Dalasam a um público maior. “O que eu vejo de positivo de ter passado por tudo o que passei naquela época é de equidade”, conta ele, “consegui achar outra coisa, outro jeito de trabalhar minhas músicas. Sou muito feliz com meu primeiro EP, que é muito sincero, e nunca mais tinha feito nada com a mesma latência de sinceridade. E hoje eu sei bem mais sobre acabamento populares que naquela época, mesmo que eu não queira fazer esse pop farofa do topo das listas”.

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