“Cosmo” É Cícero Fazendo Música Como Gosta

“Um disco marca muito a vida das pessoas, e isso que é legal. Rola um carinho porque ele lembra a época que ela ia pra faculdade, ou que tinha aquele namorado, ou um grupo de amigos” – Cícero chega à marca de um quinto álbum com uma consciência madura do que um lançamento significa, de como seus ouvintes percebem suas músicas e, principalmente, do que ele quer em suas músicas.

Foi isso o que ele deixou claro em mais uma entrevista ao Música Pavê, pouquíssimos dias após o lançamento de Cosmo. Por telefone, ele comentou as escolhas para o novo disco e o que quer para sua carreira – spoiler: são os mesmos ideais que ele comenta desde 2011.

Música Pavê: É muito interessante olhar para sua discografia e notar como cada obra tem uma identidade muito própria. Fico pensando que Cosmo também tem sua cara, mas penso que, assim como A Praia, ele parece trazer um pouquinho de cada parte sua que já apareceu nos anteriores – agora com Albatroz também na soma.

Cícero: Acho que sim. Por mais que você busque ser criativamente interessante e fazer algo que nunca fez, é o mesmo cara fazendo, né? Então quem acompanha todos os discos consegue ver essa linha central que atravessa tudo, o cordão umbilical que atravessa todos os discos, que passa pelas minhas escolhas estéticas mesmo – gosto desse acorde, dessa nota, desses instrumentos, desse timing, de fazer isso e depois fazer aquilo… eu não faço discos com coisas que eu não gosto, então isso dá uma certa cola para todos. Parece meio óbvio que eu só faço o que eu gosto, mas não é. Muitas carreiras são baseadas no que as pessoas às vezes nem gostam, mas no que dizem que a massa ou o mercado gostam, ou o algoritmo, ou qualquer sujeito oculto. Acho que, se eu gostar, as pessoas que têm a ver comigo também vão – também nem tenho interesse em agradar o mundo todo. Mas tenho uma vontade de dar prazer aos sentidos.

MP: E mais legal ainda é ver que há também espaço para o novo em Cosmo, seja em como a sequência final se desenvolve, ou Marinheiro Astronauta. Dá para entender que há essa liberdade de fazer algo que é “muito Cícero”, ainda que “diferente do Cícero de antes”.

Cícero: Pô, acho isso muito legal. Essa é minha busca racional, de fazer uma parada que eu nunca fiz e que goste tanto quanto o que eu já fiz. É atravessar o oceano a nado, difícil pra caramba, porque quanto mais você faz, mas você já fez o que mais gosta. E eu não quero virar especialista em mim mesmo, repetir aquilo que eu já fiz bem e só. Mesmo assim, você repete uma coisa ou outra. Marinheiro Astronauta tem muito do Sábado, aqueles vocais fazendo “uuh uuh uuh”, e os synths fazendo uma progressão parecida, mas é outra harmonia, melodia e letra. Ela também tem todas aquelas partes… enfim, ainda bem que você achou diferente, porque eu quis fazer diferente. Mas tem amigo meu que falou “pô, lembra Fuga [nº3 da Rua Nestor]” e eu disse “não, lembra nada, você tá errado” (risos).

MP: Isso era algo que eu anotei para te perguntar, se você olha para as músicas novas e reconhece o seu “estilo”?

Cícero: Hmmm… Musicalmente, eu tenho minhas predileções. Todos os meus discos têm acordes com a sexta pra caramba, têm músicas tonais que mudam o tom, mudanças de bpm no meio da música… São coisas que eu gosto de fazer, que eu fiz em todos os discos e que, dessa forma, não vejo outros artistas fazendo. Mas também não sei se vejo as pessoas vendo isso como características do Cícero. Muita gente vai falar do ponto de vista, ou a forma de dizer certas coisas, e a escolha de palavras. Tem muita gente que fala “Cícero faz letras muito boas, muito profundas”, e tem quem fale “Cícero não diz nada com nada, é um jogo de palavras sem sentido” (risos). Eu não seu muito bem o que que as pessoas veem como características da minha música. Eu busco fazer uma coisa que tenha a ver com o meu motivo principal de fazer música, que nunca foi – e não é – números, mercado, sucesso, status, ou tocar pra grandes multidões… não que eu ache isso ruim, mas não é uma coisa que me interessa, que me encanta, que me motiva. Mas quando eu ouço algo que instiga meu corpo sensível – não só música minha, mas de outras também, ou filmes, ou livros -, parece que eu virei um ser humano mais amplo, sabe? Prefiro expandir como existência do que como conta bancária.

MP: Interessante você falar isso, porque vejo que suas figuras de linguagem costumam ser expansivas, como o mar ou o céu, e penso que seu maior trunfo é usar tudo isso em função de comentar o que é palpável, cotidiano, até mundano, de uma maneira interessante.

Cícero: Cada palavra é um símbolo, né? Ela pode significar um monte de coisa. Se eu falar “pedra”, pode ser a pedra mesmo, ou o coração de pedra, ou o cara que não se mexe na vida. O significado que a palavra simples e cotidiana ganha me interessa mais do que a palavra sofisticada que é muito enganosa. Se eu falar “outrora quimera de minha dádiva…”, a pessoa não vai entender o que estou querendo dizer, e isso não necessariamente porque a letra é muito boa, entende? A própria palavra “sofisticada” é ruim, ela tá envolta em sofismas, finge ter um valor que não tem. Me interessa muito mais o que é cotidiano, mundano e vulgar – como eu falo na primeira música do primeiro disco -, mas tem um valor intrínseco que todo mundo identifica e sabe ver a beleza daquilo. Aí, a cada disco, eu fico tentando mudar as palavras de acordo com o conceito do disco. Uma coisa que eu fiz por muito tempo, e talvez não faça isso nas próximas fases, é discos conceituais. Acho legal dar um tema para aquela capa e, dentro daquilo, você trabalha todas as questões que você tem na cabeça envolto em uma cola, que é aquele conceito, aquelas palavras, aqueles arranjos. Canções de Apartamento era muito isso, ele trabalhava as questões todas falando da gaveta, do sapato, das coisas pequenas. Sábado já era o ponto de ônibus, duas quadras pra frente. A Praia tem a praia, Albatroz é a cidade, Cosmo é o céu. Essas palavras, que todo mundo fala o tempo inteiro, dentro de um só conceito, com capa e mixagem, cria uma fábula, uma coisa meio chicobuarquiana mesmo. 

MP: A minha leitura de Cosmo foi muito influenciada pelo que você acabou de falar, das capas. É o céu enquadrado com um retângulo dentro dele. Fiquei pensando muito no que a parte contém do todo – a onda no mar, a ave no céu. E mesmo na questão da mixagem e dos sons construídos ali, vi muitas lacunas como na foto do céu, que mostra mais espaços sem luz entre os pontos de luz do que as estrelas. 

Cícero: É isso. A minha ideia era basicamente criar com a relação de agudos e graves, uns pontos de luz no meio das coisas escuras. A capa tem isso, do infinito e do que nossa vista consegue alcançar, e dentro desse campo de visão tem esse espaçozinho, a parte que cabe ao Cícero disso, o eu. Tive essa ideia visitando o museu do Van Gogh em Amsterdã no ano passado. Vi um quadro com esse retângulo que usei na capa. Era uma parede toda verde com um autorretrato dele e, do lado do quadro, tava o nome dele e a explicação da obra. Fiquei pensando naquilo, dele ter pintado um quadro de si mesmo olhando no espelho, e o nome do quadro estar do lado de fora… tanto é que a fonte que diz Cícero e Cosmo na capa é a mesma do museu. Aí queria fazer uma capa que fosse eu olhando para o céu e fotografando a parte que me cabe.

MP: Sei que o disco acabou de sair, mas como tem sido a resposta das pessoas até agora?

Cícero: Tem sido muito positiva, mais do que em outros discos que eu fiz. Mas tenho consciência que a galera que ouve no dia que saiu é quem tá muito a fim, quem já gosta e tem uma simpatia pela minha forma de fazer música. Ao longo das semanas, ele vai pegando quem não curte tanto, ou não conhece muito. O que eu senti que quem ouviu logo que saiu se sentiu recompensado, não foi frustrante, viram que eu continuo fazendo música pela arte em si. E é o que eu busco, né? Ainda mais em uma “geração playlist”, que pega só uma outra música para ouvir – o que tá certo também, não quero obrigar ninguém a ouvir o disco na arrogância da ordem que eu acho que deve. Tem muito tempo que eu não ouço um disco que eu goste de tudo também, então entendo se alguém só gostar de uma ou outra. Fico pensando que sirvo um cardápio de canções pras pessoas que vão ouvir e espero que algo te atenda hoje ou amanhã, tem música que demora pra bater. Sou um cara muito interessado em construir uma obra, vou lançando discos ao longo da vida. Vai ter fã que vai falar “caramba, a gente envelheceu junto, estamos os dois coroas”. Isso é bonito. E rola direto alguém dizer que conheceu o Canções ontem. Acho que as minhas músicas – tirando aquelas que repercutiram mais, como Tempo de Pipa, Ela e a Lata, Aquele Adeus… -, elas viram como árvores na cidade. Ela foi plantada há muito tempo e uma hora alguém repara que ela está lá, e que é bonita. Me sinto no lugar de ser esse jardineiro, tô plantando já há muito tempo. Meu primeiro disco com banda é de 2003. Nesse meio tempo, já entrei na moda, saí da moda, tipo uma pochete, ou um bigode. E você fica nessa, de tentar ser um artista íntegro, compondo com honestidade… e pagando as contas. Gosto daquela coisa do jazz, do Miles Davis ser uma lenda que vai ao barzinho ali da esquina tocar e depois volta pra casa. Não sou muito do glamour, não vejo graça nisso. Gosto muito de fazer música e me interessar por cada detalhe, cada timbre, cada palavra, cada som, sem me preocupar se aquilo vai bombar. Me preocupo em comover o outro, ou animar, ou botar para dançar, enfim. 

MP: E o que você tem pensado para os repertórios dos shows, agora com cinco discos nas costas?

Cícero: É, eu sempre toco músicas de todos. A cada turnê eu troco algumas, outras eu não posso deixar de tocar porque as pessoas gostam muito, mas eu nunca excluo nenhum disco. Dá para tocar metade do Cosmo, que dá 15 minutos, aí uma parte de cada um dos quatro e, quando você vê, o show já está com uma hora e tanto. Pelo menos, você abrangeu todos os discos. Eu não tenho muita vontade de tocar só o disco recente e uma ou duas de outro e deixar uma fase da minha carreira de fora. Gosto que o show seja um passeio.

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