Entrevista: Rashid

É bem provável que Tão Real entre para a história como um dos primeiros grandes discos brasileiros de 2020, sendo lançado em janeiro. E ele chegou “grande” em vários aspectos: Longa duração (18 faixas), parcerias de peso e um Rashid que se mostra em seu melhor momento.

Isso porque o rapper paulistano tem dialogado com grande fluência com a cena hip hop da cidade, tanto quanto com a música popular do Brasil de hoje em dia – não é incomum ligar o rádio e se deparar com algum de seus hits. E também porque sua proposta com esse lançamento é mesmo ser melhor em tudo o que faz, também para além da música.

Na semana em que realiza show de lançamento do álbum (SESC Pinheiros, 14/02 às 21h), Rashid explicou melhor cada uma dessas questões, falando por telefone ao Música Pavê.

Música Pavê: Chama atenção como seu rosto ocupa quase a capa inteira de Tão Real. Olhando pra sua discografia, parece que você está cada vez mais à frente do seu trabalho, é tudo cada vez mais pessoal.

Rashid: Pode crer, faz sentido. Acho que vou começar a falar isso como se eu que tivesse pensado (risos). Tão Real, querendo ou não, tem isso de eu estar colocando a minha cara à tapa. E essa capa tem muito a ver com o lance de eu ser a minha obra, como se eu fosse uma peça em um museu. Porque, no fim das contas, eu que sou a minha obra, é o que eu venho trabalhando todo esse tempo, mas eu só entendi agora. É lógico que é a minha rima e tudo o mais também, mas o que tem mudado mais, evoluído mais nessa caminhada, sou eu. E por consequência, também minha arte. Ela vem das minhas características pessoais, da minha personalidade, do meu caráter.

MP: Você faz o que faz por ser quem é, né?

Rashid: Exato! O que eu falo nas minhas músicas não tem a ver com fazer parte do “kit do rap”. Tipo “olha, você é rapper, você tem que falar desse tipo de coisa”. Tem até coisa que eu coloco nas músicas que não tem a ver com esse lugar do rap e eu me pergunto se eu deveria estar fazendo isso. Mas sou eu, esse barato é meu. Se não for isso, qual vai ser meu diferencial mesmo, né? Quais vão ser os parênteses que vão denotar que esse aqui que é o Rashid, não o Rincon, o Emicida, o Criolo, a Drik, a Karol…

MP: Isso parece ter tudo a ver com o que você realizou também no disco anterior (Crise, 2018).

Rashid: Sim. Acho que o Crise começou a mexer em algumas coisas que o Tão Real se aprofundou, tá ligado? Crise já tinha uma coisa mais humanizada, o “MC orgânico” de mexer nas pessoalidades do Rashid. E o Tão Real levou isso a sério (risos). O anterior fez um buraquinho pra plantar semente, o novo veio com a escavadeira e uma árvore inteira, ele é bem mais radical nesse mergulho.

MP: Outra coisa que chama atenção foi você ter trazido várias pessoas para estarem com você neste disco. Como foi receber essas somas dos outros em um trabalho de cunho tão pessoal?

Rashid: É, eu nunca tinha feito um disco com tantas participações – metade das músicas tem alguém comigo. Foi proposital, eu queria isso antes mesmo de saber quem eu chamaria. Queria me comunicar com pessoas de outros ritmos musicais, por isso a Duda [Beat] e o Dada Yute, o pessoal da Tuyo também. Eu queria uma mina rimando também, porque já tinha tido mulheres fazendo refrões e tal, e a melhor pessoa era a Drik [Barbosa]. Não sabia como as pessoas iriam entender – não queria que fosse um “Rashid convida” – mas sabia que chamaria mais gente pro disco, porque a música é tão pessoal quanto coletiva. Ela não é só minha, ela é nossa. É sua e é de quem tá lendo, por identificação. Eu começava a fazer os sons e eu percebia que aquela música tinha cara de alguém.

MP: Olhando para sua carreira como uma linha do tempo, parece acontecer um crescente alinhamento com o que eu vou chamar aqui de música pop. Acho excelente, tanto porque isso acontece de uma forma que nunca te trai enquanto rapper, quanto porque vejo você alcançando lugares aonde o rap sozinho não te levaria. Como você vê isso?

Rashid: Cara, falando bem a verdade, a minha grande inspiração na música, de quem eu mais sou fã, é Jay-Z. É um cara que navega tranquilamente por esses lugares. Ele tem os pés na rua, e ninguém jamais questionará isso, e todo mundo presta atenção quando ele pisa no pop – com Mariah Carey, Alicia Keys, Beyoncé, Justin Timberlake… Eu acredito que a música não tem freio, você coloca ela na rua e ela vai aonde tem que ir. Penso muito nisso, que as coisas sempre se comunicaram e existe esse espaço [para o rap no pop]. Até porque quem mais ouve rádio e vê televisão é o pessoal do bairro, da quebrada, o mesmo pessoal com quem eu tento me comunicar o tempo inteiro, seja ela de cunho mais social ou não. Quando minha música toca na rádio, eu tô falando com o trabalhador que tá ouvindo no busão, com o cara que deixou o som tocando na oficina e também com um público diferente, com quem eu não me comunicaria se eu tivesse me fechado na minha bolha, tá ligado? Eu acredito que dá pra chegar a vários lugares sem perder sua identidade, como você disse. Eu só não posso deixar de ser quem sou. O Rashid que vai ali à padaria, chega em casa e faz um rap pesado é o mesmo que toca na rádio e vai na Globo no outro dia. São facetas de uma mesma pessoa.

MP: Falando esteticamente, percebo que Tão Real se propõe a trazer um pop brasileiro muito contemporâneo. Como foram as escolhas para a produção desse disco?

Rashid: Cara, vou falar pra você que não teve nada muito premeditado, porque o disco não tem um só conceito de som. Ele é um produto da força bruta da criatividade, porque o processo de composição era deixar fluir. É meu terceiro álbum oficial, mas já coloquei quase 200 músicas na rua, contando com as participações. Eu estava ali tentando sacar aonde ir, deixando a criatividade guiar. Fiz muita música, quase 40 sons, e muitos deles (mais de 30) eu cheguei a terminar só para poder escolher quais iriam para o disco. Ele é composto pelas músicas que eu achei mais foda naquele momento. Esse lance de ter um som mais pop, como na música com a Duda ou Pipa Voada, aconteceu porque eu cheguei pros produtores e falei da gente fazer não um pop que conversa com o rap, mas um rap que tocaria na rádio. Tem gente que tem dificuldade de ouvir o estilo mais tradicional, então a gente mexe na estética pra ela ter maior aceitação. Essas foram as coisas mais premeditadas no disco. As outras foram nascendo e eu fui ali somando com as outras, pensando no que comunicava melhor com o meu momento e quais estavam boas o suficiente para estar ali no disco.

MP: É interessante você falar que tanta coisa foi deixada de lado, porque é um álbum longo – nem sempre um disco tem 18 faixas hoje em dia. Você vê um quê de “ousadia” em colocar no mundo uma obra desse tamanho?

Rashid: Não sei dizer em “ousadia”, mas sei dizer que não dá pra segurar muito a arte. Eu entendo o mercado, tá ligado? E pode ser que, infelizmente, várias dessas músicas caiam num limbo e virem “o lado-B do Rashid”. As coisas estão tão depressa que pode ser que um disco de 18 faixas seja tipo O Irlandês, um filme de três horas e a pessoa fala “opa, pera aí, tenho que me preparar psicologicamente para assistir”. Mas essa é minha arte. Eu tirei muitas músicas e não acho que alguma dessas está ali enchendo linguiça, todas falam o que eu queria falar. Se você observar, na gringa, vários artistas estão lançando discos longos – Drake, Eminem, Lil Wayne, Migos… Cada música ali daquelas 18 tem sua missão. Nem todas vão tocar no rádio, mas cada uma vai tocar alguém de um jeito particular.

MP: Como foi criar essa linha narrativa sobre um “conceito” ao longo do álbum?

Rashid: Essa brincadeira virou uma pequena sátira ali, mas acho importante ressaltar que aquilo não tem nada a ver nem com os MCs, nem com os jornalistas que se preocupam com isso. Me parece que o lance do disco ter um conceito especial virou uma demanda do mercado que pressiona os artistas. Você vê vários discos que o artista fala que tem conceito, aí você pega, ouve, vira de ponta cabeça e não acha nada ali. Às vezes é porque o cara ou a mina se sentiu obrigado a colocar uma narrativa ali, porque, se não tivesse, talvez não interessasse tanto o mercado. Mas quantos lançamentos fizeram história sendo só discos de músicas boas? Então, era mais uma brincadeira sobre isso de se sentir pressionado, mas o lance é só fazer a arte. Acho que primeiro é fazer a música que faz bem para você, depois, se quiser, obedecer as demandas de mercado. E tem uma segunda camada que é o conceito ser “de rua”, uma gíria do rap sobre você ter respeito. Estamos em tempos em que, infelizmente, às vezes artistas que admiramos muito, de quem curtimos muito a arte, estão em notícias sobre o cara bater na mulher, ou a mina fazer não sei o que lá… A pessoa perdeu o conceito que mais importa, que é o que ela mais precisa e a cultura também, que ela pise numa esquina e as pessoas respeitem ela, mesmo que não gostem. Isso tem a ver com aquela primeira pergunta que você fez, do lance de estar evoluindo. Uma linha do pensamento que eu encontrei no processo de composição foi de que antes de ser um grande artista, você precisa ser uma grande pessoa. Porque tudo o que vem é consequência disso. Se você é uma boa pessoa e tá cantando sobre você, essas coisas chegam aos ouvidos dos outros com o peso da verdade. Se existe algum conceito muito subliminar no disco, é o de evoluir como ser humano antes de evoluir como artista.

Compartilhe!

Shares

Shuffle

Curtiu? Comente!

Comments are closed.

Sobre o site

Feito para quem não se contenta apenas em ouvir a música, mas quer também vê-la, aqui você vai encontrar análises sem preconceitos e com olhar crítico sobre o relacionamento das artes visuais com o mercado fonográfico. Aprenda, informe-se e, principalmente, divirta-se – é pra isso que o Música Pavê existe.