Dead Fish: “Não há uma curva interpretativa neste momento”
Ponto Cego não é o nome de nenhuma faixa, mas um termo que aparece em todas as músicas que Dead Fish colocou em seu novo álbum, que saiu nesta sexta (31). A cada vez que a expressão surge, parece que o disco encontrou seu refrão – uma repetição que facilita a compreensão da unidade do que estamos ouvindo -, o que reforça também o caráter argumentativo do lançamento.
E isso acontece em uma época na qual grande parte da produção musical carrega um caráter político muito familiar à discografia da banda, que se faz ainda mais urgente no Brasil de 2019. “As coisas hoje estão mais claras”, falou o vocalista e compositor Rodrigo Lima por telefone ao Música Pavê, “a gente [antes] não queria chegar direto na mente, queria que as pessoas atravessassem portas e tivessem autonomia para interpretar as coisas. Nesse disco, a gente quis mostrar o que é real, que isso que está acontecendo já acontece há 30 ou 500 anos”.
“Hoje as coisas estão mais claras, porque se tornaram distópicas, e parte do público, principalmente do rock – que se tornou conservador – vai comprar o seu lado. Existe essa distopia de não querer discutir a realidade, mas respaldar a minha visão de realidade. Não há uma curva interpretativa nesse momento”.
Ao longo de suas 14 faixas, Ponto Cego não faz rodeios na hora de retratar o que o mundo atual se tornou a partir de uma “estética de condomínio, contando o que é da porta de casa para fora e o que é pra dentro, o que é hipócrita e o que é falta de noção de classe”. “Foi um disco pensado como um homem de 40 anos, como pai, brasileiro e cidadão do mundo, uma pessoa inserida em uma realidade global”, conta Rodrigo, “é aquele efeito borboleta: Se eu derrubo três campos de futebol na Amazônia, falta água em São Paulo. A gente tá muito conectado, mesmo vivendo em nichos, castas e realidades étnicas e sociais diferentes”.
Tudo isso, como você pode imaginar, ganha força dentro da sonoridade que conhecemos da banda, que mostra aqui o mesmo fôlego de décadas atrás ao trazer o peso necessário para esse discurso. Para um público que nunca acompanhou o universo de onde vem a banda, mas chega até ela por Ponto Cego, Rodrigo saúda: “Bem-vindos ao meu cenário, à minha cultura, à forma com que a gente entende estética e política”.
Sobre esse diálogo que Dead Fish estabelece para fora do hardcore e punk, ele comenta que esse nicho “já foi bem chato, o que nem sempre foi muito inteligente”. “Com 28 anos de carreira, queremos que esse disco fale com todos”, comenta o vocalista, “mas discutindo um ponto de vista, não entretenimento”. Ao ser perguntado sobre lançar uma obra tão bem amarrada em si mesma em uma época quando – dizem – as pessoas ouvem cada vez menos discos, Rodrigo diz que ele e seus companheiros de banda têm “nosso próprio tempo pra nossa música e pro nosso discurso. É subversivo dizer que, em tempos modernos, não vamos nos adequar à sua plataforma, à sua urgência de likes. Não interesse se vamos ficar maior ou menor, se vamos ganhar ou perder seguidores, é pra fazer diferença pras pessoas de qualquer nicho”.
De volta ao assunto do Brasil e do mundo de hoje – ou seja, o tema central de Ponto Cego -, Rodrigo conta que quis criar “uma pintura, ou uma foto, para você contemplar” e visualizar melhor onde estamos na dinâmica cíclica da história – “eu tenho déjà vus quase diários”, comenta ele sobre uma época de “preconceitos e éticas racistas que se tornaram globais, com limitações cerebrais muito claras”.
É especialmente simbólico ver Ponto Cego sair um dia depois de um dos grandes atos a favor da ameaçada educação no Brasil, quando enfrentamos a possibilidade de um ensino, não só superior, cada vez mais elitizado no país, como era até muito pouco tempo atrás. Sobre essas dinâmicas de poder na educação, em que uma classe hegemônica quer privar o povo de oportunidades, Rodrigo sintetiza: “Você pode fazer muito estrago com o seu doutorado, e o menino da periferia que tomou no cu a vida inteira pode mudar o mundo”.
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