Entrevista: Carne Doce
“Carne Doce só lançou discos em anos decisivos na política”, disse Macloys Aquino ao Música Pavê por telefone, “o primeiro veio em 2014, Princesa em 2016 e Tônus neste ano. Mas 2018 foi todo muito diferente. Um ano muito decisivo, muito especial”.
Conversar com a banda em dezembro foi repassar um pouco do que todos nós vivemos nos últimos meses, desde o lançamento também desse seu terceiro álbum (talvez o melhor até agora). Uma das oito melhores bandas desta geração, Carne Doce segue encantando um público com músicas bem feitas e uma mente muito atenta aos seus entornos, como evidenciou esta pequena entrevista com Macloys e Salma Jô.
Música Pavê: É difícil conversar no meio de dezembro sem tentar fazer um certo “balanço do ano”. Com Tônus, turnês e tudo o que passamos nos últimos meses, como vocês acham que se lembrarão de 2018 no futuro?
Macloys Aquino: Essa pergunta é muito interessante, porque o ano foi marcado para a gente por duas coisas tão distintas. Acho que a gente vai lembrar de 2018 como o ano em que o Whatsapp e as redes sociais foram mais importantes do que o rádio e a televisão para as eleições majoritárias no país, e o ano da guinada conservadora no país, com todos os efeitos macro e micro políticos que isso significa na nossa sociedade. Para a gente, foi um ano muito importante, com o lançamento de Tônus, quando a gente se consolidou como artista no cenário independente, um ano em que a gente tocou em cidades em que ainda não tinha tocado no Brasil, como Belém. Enfim, são duas coisas tão incomparáveis, a gente aqui no nosso microcosmo tendo um monte de bons resultados, enquanto no macro a gente tá tendo… talvez bons resultados para alguns, muita gente comemorou, mas um país todo dividido onde as pessoas não se compreendem. Enfim, são dois momentos muito distintos para a banda e para o restante do país.
MP: Como tem sido apresentar o disco nos palcos? Nesses cinco meses desde que ele saiu, o que vocês aprenderam sobre essas músicas na dinâmica ao vivo? “Quem elas são hoje” em comparação a quem eram quando foram gravadas?
Salma Jô: Realmente, com a experiência dos shows, a gente consegue melhorar as músicas, fazer que elas soem maiores, mais especiais, mais emocionantes. Acho que a gente domina melhor a emoção de cada música e elas estão mais bem executadas agora do que quando a gente fez o primeiro show do Tônus. A gente estava um pouco preocupado com isso, porque mesclar essas músicas com as dos discos anteriores era um desafio, porque as outras são mais explosivas, são mais rock’n’roll, mais barulhentas, então as pessoas escutam com mais facilidade. Já as do novo, com mais suavidade, exigem que a gente domine melhor essa dinâmica, essas mudanças de emoção, para emocionar as pessoas com suavidade, com pouco volume, com pouca pressão. Mas acho que elas significam as mesmas coisas, a gente só aprendeu a dominar melhor cada uma.
MP: Agora que vocês passaram por esse processo três vezes, o quanto a resposta do público pode ser transformativa na maneira como você enxerga um disco ou mesmo uma só música depois que ele saiu? Imagino que a crítica também possa clarear uma ou outra ideia, mas e o contato com essa resposta do público, que se apropria dos versos e dá novo significado a eles, como isso fica dentro de vocês?
Macloys: Com relação ao Tônus, esse fenômeno deu muita segurança para a gente, porque a gente não achava que a aceitação do disco fosse ser imediata, e o que aconteceu foi o contrário, para nossa felicidade. As pessoas se envolveram muito rapidamente. Já no primeiro show, no Sesc Santos, três dias depois do álbum estar disponível nas redes, já estavam cantando as letras. No dia seguinte, fizemos o lançamento oficial no Centro Cultural São Paulo, o show lotado com as pessoas cantando todas as músicas. Isso aconteceu em várias cidades e a gente foi reconhecendo essa capacidade emotiva das músicas e seu valor. Hoje, eu olho para trás também e releio nossos discos de uma maneira muito diferente. Eu vejo que o primeiro tem valores muito especiais, me pego de vez em quando ouvindo músicas dele e me emocionando, tentando lembrar quando foi que me emocionei dessa forma no passado, quando a música estava sendo composta ou gravada, e não tenho muita lembrança disso. Hoje, olho para trás e vejo que a gente tem uma obra que está viva, e que está sendo tocada, e a resposta das pessoas faz que isso se torne mais real.
Salma: Eu acho que eu tinha sentido mais os efeitos dessa coisa natural, de que você compõe uma música e ela já não está mais no seu controle, ela será reinterpretada de acordo com o sentimento, a pauta e o marketing das outras pessoas. E eu senti mais o peso disso em Princesa, e acho que isso me orientou de certa forma em como compus as músicas do Tônus, porque eu tentei fugir do que tinha me afetado nesse descontrole da interpretação, que era essa coisa de ser considerada militante e, em seguida, ser deslegitimada para ser militante, de ser considerada porta-voz do feminismo e, também por causa disso, ser deslegitimada como porta-voz feminista. Quis fugir desses conflitos e aprimorar o que eu já fazia bem, que era emocionar as pessoas com o que já me emocionava. Em Princesa, foi assim também, mas fugiu do que eu queria. Acho que retomei esse controle no Tônus, e que as pessoas entendem o que estou falando no disco. Elas entendem sobre o que é Irmãs, entendem o que é Comida Amarga. Eu continuo fazendo os mesmos personagens dos dois outros discos, eles são dúbios, são contraditórios, fortes e fracos ao mesmo tempo, com rompantes de uma natureza mais egoísta. Eles têm esses conflitos e eu continuo trabalhando com isso, mas sinto que dessa vez emocionei as pessoas de uma forma mais simples, sem sentir esse apelo da pauta feminista, de eu estar apelando para a militância ou qualquer outra coisa assim. Estou bem feliz com esse resultado.
MP: Vocês tiveram essa sacada visual dos barbantes na capa de Tônus, no clipe Nova Nova e até nos shows, passando pelas músicas no YouTube e tudo o mais. Qual a história por trás dessa ideia?
Salma: Foi meio espontâneo, algo que a gente conseguiu tirar da experiência do ensaio fotográfico para a capa. A gente viu o quanto aquela ideia era simples, com o uso da luz negra. A gente passou isso para o nosso técnico de luz (Hugo Abud), ele disse que seria fácil experimentar isso no palco. A gente ainda está aprimorando o figurino para aproveitar essa luz, a gente quer levar o figurino para os meninos também.
MP: Outro assunto que a gente precisa tocar é a lista de oito melhores bandas desta geração. Foi muito interessante ver o amparo do público também, pouca gente discordou no fim. A pergunta é: Vocês têm olhado para o lado e se sentido parte de um momento específico da música autoral brasileira, independente ou não, e tem percebido um local muito próprio que Carne Doce ocupa na nossa produção musical?
Macloys: Acho que a chave da sua pergunta está no “independente ou não”. A gente está vivendo um momento determinado pelas mudanças tecnológicas de comunicação e como isso reflete nosso comportamento, como as redes sociais impactam o consumo de música. No nosso caso, sendo uma banda de nicho, fica tão difícil imaginar o contexto da nossa atuação, o espaço em que a gente circula, o nosso nicho em comparação ao que a gente poderia chamar de “música brasileira independente ou não”, que é um contexto nacional. Eu não vejo comparativo, porque por um lado a gente está vivendo essa mudança, e por outro eu não vejo um outro momento da música brasileira que pode ser definido como tal, como uma unidade.
Salma: Eu também não vejo um novo momento da música brasileira, ou a gente sendo representante de um movimento, como Tropicália, não acho que a gente esteja inventando uma estética específica com esses outros grupos. Mas eu entendo essa colocação, e fico muito orgulhosa por sermos uma das “grandes bandas médias” da cena, a gente tá sempre crescendo, tem uma certa forma, é uma banda quase grande, mas não sei se consegue ser “grande” mesmo. Entendo porque a gente está nessa lista e acho que a gente conseguiu fazer três discos bons quee repercutiram bem, essa continuidade é um sinal muito forte para as bandas – cinco anos parecem suficientes para dizer que a gente tem uma carreira, porque é difícil ser estável nessa cena. Mas eu acho que a gente participa dessa lista também porque tem menos concorrentes, tá cada vez mais difícil para as bandas crescerem, se tornarem bandas médias ou grandes. A mudança estética que eu sinto é que os artistas solo e o rap dominam muito mais do que o rock. Sinto que o que tem de uma estética roqueira no nosso som é o que nos joga para baixo, nos impede de crescer, porque é um estilo decadente – não é exatamente pejorativo não, tem que usar essa palavra mesmo, porque é verdadeiro. O rock não está em voga, as pessoas estão querendo outra linguagem e o rap está entendendo isso melhor que a gente.
Macloys: Mas, por enquanto, a gente continua nesse rolê, porque não sabe fazer diferente (risos).
MP: Voltando ao assunto de estarmos no meio de dezembro, não tem como não falar no ano que vem. 2019 nem começou e já temos a boa notícia de que Carne Doce estará no Lollapalooza. O que mais deve acontecer no futuro próximo?
Macloys: Pro ano que vem, a gente tem essa notícia do Lollapalooza, que é impactante, causou um certo efeito “extraordinário”, mas não é o show mais importante que a gente já fez ou vai fazer na vida – a banda já tocou pra muito mais gente, até porque lá o show é muito cedo, mas a marca e a chancela parecem muito importantes. A gente tem alguns outros shows importantes para anunciar, a gente vai continuar cumprindo essa agenda de festivais. E posso adiantar para vocês – não foi anunciado ainda – que estamos nos preparando para um lançamento internacional do TÔNUS com um selo estadunidense, o que vai abrir uma outra porta nova para a gente. A gente tem que continuar trabalhando esse disco no ano que vem e tentar melhorar o show – como Salma falou, pensar melhor do figurino, na produção e na execução das músicas – para ele emocionar mais pessoas e significar mais para a gente também.
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