Entrevista: Xênia França

fotos por Thomas Artuzzi

Quem acompanha a música independente brasileira já conhecia Xênia França há um tempo como integrante do grupo Aláfia. Com o lançamento de seu ótimo Xenia (2017), no entanto, seu nome ganhou o lugar de protagonista na produção contemporânea. Nele, a artista trabalha referências múltiplas que dialogam com a música pop e com a música afrodescendente – uma das principais raízes de nossa cultura.

Na véspera de uma viagem para shows em Nova York, ela falou ao Música Pavê por telefone sobre o lançamento e desenvolvimento dessas músicas. Assim que voltar ao país, Xênia tem um espaço de destaque na programação do Festival CoMA, em Brasília, enquanto pensa também nas próximas fases de sua carreira.

Música Pavê: A primeira coisa que chama atenção em Xenia é como você parece ter misturado tudo aquilo que nós, brasileiros, crescemos ouvindo, da música pop de um Michael Jackson àquilo que reconhecemos de mais referencial em nossa cultura. Como foi trabalhar essa dinâmica?

Xênia França:  No começo, parecia um desafio mesmo juntar num balde tudo o que tinha me influenciado – já ouvi Michael, Steve Wonder, Olodum, reggae… -, como fazer tudo isso funcionar junto na mesma faixa? Aí, o que mais ajudou foi perceber que, em todos esses ritmos, a gente tem o tronco diaspórico: A música preta que influencia as Américas. Foi muito mais fácil olhar pra tudo isso não com distância, mas entendendo que eu não escutei isso, eu sou isso. Quando a gente colocou essas claves para trabalharem juntas, elas sempre se alinham em um mesmo lugar, o DNA afro-diaspórico. Foi cada vez mais gostoso brincar com isso, parecia que a gente estava jogando um videogame (risos), foi muito legal o processo de juntar identidades. Eu nasci na Bahia e cresci muito com essa referência rítmica através dos blocos afro que tocavam no rádio. A identidade da música baiana está em mim mais do que tudo, é muito forte, eu não poderia deixar isso de fora, principalmente porque combinava muito com Michael Jackson – não à toa, ele veio em 1995 gravar com Olodum. Eu fiz essa religação, foi muito massa e ainda está sendo.

MP: Tantos meses após o lançamento do ábum, como essas música se desenvolveram no palco?

Xênia: As músicas cresceram muito nos shows, a gente experimenta novas claves, um monte de coisa legal. Fazer show é diferente de fazer disco, né? No estúdio, a gente está ali fechado nesse processo de conseguir arrancar ao máximo o conteúdo, e o show é diversão total, a gente está totalmente aberto e livre pra música acontecer. Nos três últimos shows, eu já fiz com outra visão, outro sentimento. Parece que as músicas estão mais pra frente, mais soltas, ganhando vida própria. Antes, a gente ficava tentando segurar pra fazer cada vez mais sentido em relação ao disco, entende? A gente reproduzia fielmente o que estava no disco. A gente gravou com quase 30 músicos no estúdio, a minha banda tem cinco. Conseguir transferir essa identidade pro show, porém a gente estava segurando o Boi pelo chifre, sabe? E agora, as músicas têm a sua identidade própria, tá mais gostoso de viver o show, menos preocupante, e as músicas cresceram muito explorando novas coisas, tem espaço para um monte de coisa legal, pra mostrar inclusive o que a gente usou e está subjetivo. Por exemplo, Beleza Guerreira tem ali subjetivamente uma cara de samba reggae, tá muito atrás, mas quem conhece samba reggae vai sentir essa clave ali. No show, a gente encara mais isso, deixa o samba reggae fluir, deixa as pessoas sentirem ele bater nelas assim. Então, a gente está assumindo mais determinados tipos de referência que a gente usou no disco.

MP: Como tem sido sua experiência de tocar tanto em teatros, quanto em palcos grandes de festivais?

XêniaTenho tido boas experiências nos últimos meses de fazer bastante show na rua, e alguns são em teatro. Realmente, o teatro tem uma sensação pro artista que é um pouco desconfortável, porque você está ali com a plateia sentada, você descendo o cacete e o povo não levanta uma sobrancelha (risos). Porém, tem uma sensação que eu gosto muito no teatro que é a atenção plena, o mínimo gesto ganha uma magnitude enorme. No palco grande, você tem mais liberdade, o calor do público também te dá essa vontade de fazer um mosh (risos). É bem diferente mesmo, o teatro tem um caráter cênico muito lindo e deixa a gente mais concentrada. O show muito grande deixa a gente mais emocionada, a gente segue a emoção do público. Mas eu não consigo escolher, gosto muito dos dois, aprendo de diferentes formas. Tenho sido muito feliz nos últimos meses.

MP: Sobre a identificação das pessoas com sua música, como tem sido para você receber esse retorno do público?

XêniaQuando a gente começou a fazer o show desse disco, eu tinha muito medo. Desde que eu tinha feito o disco, eu achava que ninguém ia gostar, porque achava ele muito doido (risos). A gente foi pra estrada e tem tocado em lugares muito diferentes – a gente tocou no Rec Beat no Carnaval em fevereiro pra 30 mil pessoas, eu achei que ia sair escoltada pela polícia porque todo mundo ia odiar (risos), juro por Deus. Ao contrário disso tudo, as pessoas foram tão conectadas com o som, elas entendem coisas que foram faladas dentro do estúdio na intimidade da produção. Recebi mensagens maravilhosas falando de coisas que a gente levantou no estúdio quando estava preparando tudo, e agora estou me sentindo mais à vontade e tentando estar mais aberta, porque não estou falando só de mim no show, eu tô falando de uma quantidade de assunto diaspóricos, falando de ancestralidade, e eu tô acreditando que as pessoas vão se conectar ao som para além do que está sendo dito ali, entende? Como quando você vai em uma escola de samba ver a bateria tocar e se arrepia inteiro, porque é uma coisa além do gosto musical, mas deixar a música cumprir o seu papel. A gente trabalhou para que os pontos principais da diáspora, pelo menos aqueles que falam diretamente com o que nos influenciou, falem diretamente com o público, e tem sido maravilhoso, porque tem crescido cada vez mais o carinho das pessoas, a conexão das pessoas com a música.

MP: Conta um pouco sobre a diferença de lançar um trabalho solo e fazer um disco com Aláfia?

XêniaEu acredito que o meu trabalho solo tem uma identidade muito pessoal, muito profunda. Eu fiquei um ano, exatamente um ano, produzindo esse trabalho, fazendo ele à mão. Eu não estava muito preocupada em não parecer com Aláfia porque naturalmente eu não iria parecer. Aláfia é um coletivo de muitas cabeças, todo mundo dando a sua identidade de vida. O trabalho de banda não é de música, mas de vida. Cada coisa que você vive influencia o seu som. Então, o que acontece no meu trabalho é um recorte de quem eu sou a partir de um momento em que comecei a trabalhar com música, mas, acima de tudo, tudo o que eu vivi na minha vida tá no meu disco. O que eu quis dizer era sobre a comida que eu comi, o lugar que eu nasci, a mãe que eu nasci, tentar recosturar lacunas da minha história que não são contadas nos livros, fazer com que os tambores contassem essa história. Os tambores no Brasil são os maiores contadores de história. Mesmo o trabalho do Aláfia ser uma pesquisa de ancestralidade também, tem um ponto importante para mim que é o lugar de fala. Eu estou falando sobre eu mesma, sobre minhas subjetividades, sobre ser mulher, preta, nordestina vivendo na cidade de São Paulo. Eu tô dando a minha visão mais claramente de como eu me relaciono com música, sem interferências, sem palpites. A palavra final é sempre minha, eu co-produzi meu disco, é tudo muito diferente.

MP: Existem dois lados muito naturais para seu trabalho – o musical e o de uma voz política. Como é para você unir essas duas frentes e reconhecer seu lugar de fala, assim como o impacto do que você comunica?

Xênia: Eu acredito piamente que, por eu ser uma artista mulher e preta, não há possibilidade de separar as duas coisas. Eu poderia ter feito um disco que só falasse sobre as plantas, mas, se eu fizesse um disco inteiro disso, eu estaria falando sobre axé, entende? Estaria falando sobre ancestralidade. Se eu tivesse feito um disco inteiro só de canções românticas falando sobre amor, eu estaria falando sobre a negação do amor dado ao corpo preto em toda história do nosso país. Então, qualquer assunto que uma pessoa negra aborda é político. Quando eu me propus a fazer um disco independente, um disco solo, eu confio no poder de ter acessado sentimentos muito poderosos para tentar me curar de tantas feridas tão profundas. Falar de amor, falar de cabelo, falar da solidão da mulher negra, tudo isso de uma forma em que eu esteja olhando de um lugar transcendental, sabe? Eu quero passar pra próxima fase, para um próximo disco, sem a menor parte desses traumas. Como todo mundo, ou quase todo mundo, tem trauma, a gente ali naquela egrégora que é o show, eu acredito que a gente se cura junto. É um pacto mesmo, entre a poesia, a música e as pessoas. A gente tá indo pra frente e mudando as estruturas, pelo menos dentro da gente.

MP: Conversando com bandas, artistas e produtores culturais, observo às vezes frases como “vamos colocar um casal gay ali porque tá na moda”, ou “escolhe uma negra porque é tendência”. Fico com pé atrás, pensando que essas atitudes esvaziam os significados das lutas das minorias. Como você lida com essa mentalidade?

XêniaEu vejo isso também, a gente é inevitavelmente obrigada a conviver lado a lado, corpo a corpo, com isso. O mercado tem esse defeito, a estrutura capitalista vai consumir tudo que for produzido, ou que tenha brotado de uma comunidade. Nós somos produtos da sociedade e ela vai querer carburar esse combustível o máximo que conseguir, depois vai mudar de assunto. Eu só posso falar do meu lugar, de onde estou: Sou uma mulher negra e, desde que me entendo por gente, a mulher negra nunca teve lugar de fala, poder de nada em lugar nenhum no Brasil. Eu venho de um estado, Bahia, que não consegue produzir na indústria do axé uma cantora negra que não seja Margareth Menezes. Então a gente tem aí um hiato, uma grande falha, um grande buraco, que é a indústria de um estado totalmente preto não conseguir trazer à evidência uma mulher preta. E isso não é diferente no cenário nacional, porque hoje, em 2018, a gente tem alguns nomes de artistas negras se destacando, fazendo bons trabalhos, mas ainda continua no independente, trabalhando arduamente para nosso trabalho conseguir aparecer. Quando cheguei em São Paulo, eu nem sabia quem eram as cantoras negras, no máximo Negra Li e Paula Lima – que não eram cantoras de prestígio, não eram ovacionadas como cantoras brancas, enfim. Na publicidade, como existe um assédio muito grande de marcas em relação aos artistas, eu vejo isso em uma maior escala, que é a galera realmente fazendo isso, falando ‘vamo colocar um negro aqui, uma trans ali’ e tal, que é o que o mercado faz. Independente do mercado e da moda, eu tô fazendo o que eu sempre fiz, que é viver a minha vida, passar pelo que tenho que passar, batalhar pelo que tenho que batalhar, ir em frente, conquistar e realizar. Porque pode ser que a moda passe. E a moda vai passar e eu vou continuar sendo preta. E passar por esse processo com muita consciência de quem eu sou não vai permitir que aconteça como aconteceu com tantos antes da gente, pessoas que se dissolveram, que deixaram de existir porque se agarraram a uma corda que o mercado te estende, mas para você se enforcar. Eu acredito que tem bastante gente aí que não tem muita intenção que as coisas mudem pra valer, mas tem muita gente que quer sim que as coisas mudem. Do lugar onde observo, há toda uma juventude negra se levantando para criar um mundo novo, e não compactuar com o mundo que a gente vive, que eu, particularmente, não compactuo em nada. Eu vivo nesse mundo, mas estou olhando para um outro lugar, estou vivendo e conversando com outras pessoas. Quem quiser, venha atrás da gente, porque não há tempo. Há uns anos, se falava muito de sustentabilidade e tudo era “eco”. [O produto] podia ser cheio de químicos, mas era só colocar “eco” na latinha que vendia horrores. Então é isso, toda luta acaba se tornando um produto pro mercado. Na falta de espaço, a empresa que é mal intencionada vai querer entrar no jogo pelo simples fato de querer ganhar dinheiro. A única reflexão que eu faço sobre isso é do lugar onde estou. Eu não tenho tempo para negociar com quem age de má fé. Eu acredito que a gente está passando por um processo de transformação mesmo, intenso, duro, e quem tiver consciência – e isso eu falo das pessoas brancas e das pessoas pretas -, quem estiver firme em seus propósitos que realmente haja uma mudança real e fatídica do nosso país vai passar pelo que tiver de passar, mas a gente vai chegar ao outro lado e vai ter material para continuar seguindo em frente, entende? Pra mim, a caminhada só aponta pra um lado: Pra frente.

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