Entrevista: Cícero
O lançamento de Cícero & Albatroz marca uma nova fase na carreira de Cícero, que, depois de três discos bem diferentes um do outro, mudou a maneira com que trabalha no estúdio e incorporou a banda que o acompanha nos shows (a tal de Albatroz) para o processo criativo no estúdio. O resultado é um disco mais animado e volumoso, ainda que carregue, principalmente nas letras, aquela melancolia que tanto conhecemos de seu trabalho.
Na promoção do novo álbum, ele falou ao Música Pavê por telefone quase exatamente seis anos após sua primeira entrevista ao site. Sendo assim, o assunto se concentrou não só no lançamento recente, mas também no tempo entre Canções de Apartamento (2011) e hoje, levando em consideração as transformações ocorridas nesse período, sejam elas no país, no mercado ou em sua própria musicalidade.
Música Pavê: Você diz que Canções de Apartamento é um disco que ainda reverbera para você. Não é difícil afirmar por que, visto que, dos quatro, ele é o mais emocional, não é?
Cícero: Sem dúvidas, e é o meu disco que mais comunica até hoje. O Sábado comunica com uma parcela desse público, A Praia, com uma outra e o Albatroz, com ainda outra, mas acho que uma comunicação mais ampla se deu com Canções de Apartamento.
MP: Penso que talvez seja porque ele é um disco muito próprio de uma fase da vida, de uma faixa etária meio de 20 a 25, e aí o público vai crescendo, passando por essa fase e se comunicando com esses assuntos.
Cícero: Total. Quase todo mundo de 20 anos que me encontra por aí e me para pra conversar me fala ou “eu gosto”, ou “minha namorada gosta”, ou “meu ex-namorado gosta” do disco, uma galera que, quando eu o lancei, tinha uns 14 anos – ou seja, provavelmente não ouviu na época. É um disco relacionado a um momento de vida das pessoas, que não necessariamente o cara que tem 40 anos vai ouvir hoje pela primeira vez e vai se comunicar. Mas também tem o fato de que esse público que ouviu na época com 20 e pouco, agora tá com quase 30, então é uma galera que talvez se identifique mais com o Albatroz, pela temática das letras, pelo ponto de vista das coisas. E, pela minha forma de ver carreira hoje em dia, ele não vai deixar de existir, não vai ficar pra trás, porque não existe mais isso de um disco sair e a gravadora tirar o outro de catálogo, como existia antes, e o anterior sumia, parava de tocar na rádio. Você ia perdendo os discos do passado e o cara ficava repetindo o mesmo disco para sempre pra poder ficar ali naquela onda de mercado. No meu caso, geração Spotify, tá tudo lá. Canções de Apartamento está sendo descoberto hoje por alguém que vai pegar o disco e falar “dane-se os outros, quero ouvir só esse”. Isso acontece também com o Sábado, tem uma galera que fala “cara, eu não gosto de nada que você fez, só do Sábado”. Cada um pega um disco para si, e tem uma parcela menor que gosta de tudo, uma parcela pequena. Mas as pessoas costumam gostar mais de um disco, ou de um compilado de músicas, porque é geração “disco particular”, a pessoa monta uma playlist que é o disco dela, que tem exatamente as músicas que ela quer, e ela nunca mais vai ouvir aquelas que não bateram de primeira. Quando a pessoa é fã, ou só mais interessada em saber o pensamento, ela debruça no artista, tenta entender a linha de raciocínio com começo, meio e fim. Mas acho que isso é cumulativo. Daqui a dez anos, mais pessoas vão ter se interessado por todos os discos, sabe?
MP: Sobre isso do disco pessoal, que o indivíduo mesmo monta, como é sua relação com isso? Porque, ao mesmo tempo que sua mensagem está sendo passada para as pessoas, não foi à toa que você reuniu essas faixas em um mesmo registro, né?
Cícero: Cara, eu penso em álbuns, eu não consigo mesmo pensar em faixas, em um single. Eu acho que o disco é tipo um livro de poesias, poucas pessoas pegam um, leem tudo e levam todas elas para a vida. Normalmente, é uma ou outra poesia que bate muito, marca a pessoa… Acontecia muito comigo, eu lia um livro do Drummond e tinha uma ou duas poesias que eu levava para sempre, com as outras você só sente alguma coisa ali na hora e segue adiante. Acho que seria muita pretensão da minha parte que as pessoas se relacionassem com as 40 músicas que eu já lancei, sabe? É muita coisa! Se você faz isso tudo e uma delas marca a vida de alguém, que a pessoa ouve e lembra de uma época, já é realização máxima. O que não me incomoda nem um pouco é esse fato da pessoa pegar uma música e colocar na playlist dela, eu não acho isso uma agressão. Agora, se você se debruça sobre o disco, você vai entender outras camadas da cabeça do autor – é assim com um livro, com um filme ou com qualquer coisa. E às vezes é essa uma música que está na playlist que faz com que ela ouça o álbum. Então eu tenho uma relação bem resolvida com o streaming (risos).
MP: Voltando ao que você disse sobre Sábado, como é esse retorno que você tem das pessoas sobre o disco, já que ele talvez seja o seu mais diferente de todos?
Cícero: O feedback do Sábado foi muito diferente de todos os outros, porque, quando eu lancei, ele foi muito rejeitado – não só pela crítica, que já é um negócio incômodo, mas também pelo público. Quando eu lancei o álbum, muita gente ainda estava conhecendo o Canções. Poucas pessoas foram iguais a você que conheceram o disco assim que ele saiu, elas foram conhecendo aos poucos – “a minha amiga falou de um disco de um cara que toca em tal lugar” -, então foi uma frustração muito grande. Só que eu tinha muita convicção interna de que eu tinha feito exatamente o que estava no meu inconsciente, sabe? Eu tinha uma convicção artística de que eu tinha feito algo tão verdadeiro quanto Canções de Apartamento, mas que se eu fizesse um Canções de Apartamento 2, não seria verdadeiro – seria para tocar no rádio, para aumentar meu público, pra fazer mais sucesso e entrar naquelas portas que tinham se aberto, porque eu ganhei prêmio no Multishow, isso e aquilo. Então, eu tinha uma satisfação artística e uma frustração social, porque foi um disco que quase ninguém ouviu, que a turnê foi pequenininha. Só que, como eu já tinha feito antes discos com uma banda que ninguém tinha ouvido, ninguém tinha ligado, já era uma zona de conforto isso de tocar para pouca gente. Eu fiquei uns sete ou oito anos gravando e colocando no MySpace, tinha só umas duas pessoas que se ligavam. Quando saiu Sábado e isso aconteceu, eu falei “tá bom, tô voltando para um lugar que eu já conheço”, pensei que o público não cresceria mais e que o Canções tinha sido uma exceção. Eu só fui retomar a noção de que eu estava em um crescente de público em São Paulo com A Praia. As pessoas me paravam na rua, falavam que o Sábado tinha sido muito importante, eu comecei a fazer shows na cidade e tinha muito mais gente… então São Paulo foi fundamental para eu entender o Sábado, por incrível que pareça.
MP: Interessante, você fez Sábado no Rio e A Praia já em São Paulo?
Cícero: A Praia eu escrevi no Rio ainda e gravei em São Paulo. Eu tinha acabado de chegar na cidade, no final de 2014, gravei o disco no começo de 2015.
MP: E as decisões que você fez para A Praia, que é muito mais leve que Sábado, veio também da experiência dos dois pólos onde estão os discos anteriores?
Cícero: Total, era um disco que eu queria ligar as duas linguagens, a do Canções, que é mais emocional e, do ponto de vista musical, mais funcional (as harmonias eram mais clássicas, meio barrocas), com a estética do Sábado, com harmonias e melodias bem contemporâneas, mais estranhas de digerir, também com uma onda de som sem agudos, mega abafado. Os dois eram conceituais, o primeiro sobre relações e o segundo, não-relações. Então eu queria que A Praia negociasse com essas duas ideias, eu tinha muito mais clareza do que eu queria com o resultado final – isso, nos outros, eu descobri depois que eles já estavam prontos.
MP: Para mim é meio claro que Albatroz traz questões mais coletivas, as relações na cidade, o “caos”, o “tumulto”, a “confusão”, o que tem muito a ver com o tempo que vivemos também. Havia alguma intenção de que ele se comunicasse com essa época dessa forma?
Cícero: Com certeza. Na verdade, desde o primeiro disco, eu me relacionava com as questões sociais, só que a minha vida era mais em cima de nada. Sei lá, o Canções de Apartamento tem Laiá Laiá, tem Ponto Cego, as duas são bastante políticas, o Sábado tem Duas Quadras, Ela e a Lata, A Praia tem Soneto de Santa Cruz… são músicas políticas, mas ainda sob a ótima existencial de um indivíduo que está olhando muito para dentro. É tipo “a minha vida”, “o meu bairro”, “a minha classe”, “a minha galera”, que é a vida que eu levava, mais fechada. Fui viajar com a banda, passei por muitas cidades e muitas realidades urbanas, fui para a Europa, voltei, consegui comparar as diferenças e tudo o mais, e comecei a olhar menos para mim, a olhar mais para o outro em relação ao todo. E também o fato de tocar com uma banda faz você olhar para o outro da banda e querer, de certa forma, traduzir ele no que você está dizendo, você tem a vontade de que todos ali se sintam representados de alguma maneira, e tudo isso vai se refletindo na letra, e na melodia também. Eu sei que tem tipo de melodia que o Ventura não gosta muito, outras que o Cairê não gosta, então eu tento fazer as coisas que eu gosto e que eu sei que eles também gostam. Vira uma dinâmica de grupo mesmo.
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