Entrevista: Memórias de um Caramujo

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Com o disco Cheio de Gente recém-lançado, o grupo paulistano Memórias de um Caramujo encontra seu lugar no espaço da música autoral e independente feita por banda, com o espírito criativo e poético em obras muito bem executadas por artistas de primeira.

Gabriel Milliet (violão, sax, flauta e voz) abriu as portas de sua casa para o Música Pavê e conversamos sobre a estética do álbum e como é fazer música no Brasil hoje em dia. O que ele nos contou, você vê logo após o play.

Música Pavê: Há alguns anos, a música considerada “boa” era a feita por bons músicos. De um tempo pra cá, parece que esse conceito ficou pra trás e aquilo que as pessoas mais gostam parece ter outras qualidades, mas não necessariamente um nível elevado de composição, arranjos e execução da linguagem musical feitos por bons artistas. Como você percebe as bandas de hoje em dia?

Gabriel Milliet, da Memórias de um Caramujo: Acho que os meios para se fazer música mudaram muito o tipo de “bom músico” que você tem que ser. Eu dando aula de música, sempre falo isso: Música é uma coisa que tá na cabeça, não tá na mão, não tá no instrumento, é linguagem. Um cara pode ter sua musicalidade muito bem resolvida, mas não necessariamente tocar bem o instrumento. O próprio computador é um instrumento, então tem muito mais gente com muita escuta, com uma percepção forte, pra produzir, e isso tudo é ferramenta pra veicular a criatividade musical de uma forma diferente que não necessariamente precisa “tocar muito” ou “saber muito” de uma forma de conservatório. Mas eu vou pelo caminho contrário, eu me interesso por conhecer música da forma mais conservadora possível e os meios mais modernos de produção são coisas mais recentes pra mim, no meu estudo. E acho que na nossa geração é uma mistura disso, porque tem muita gente começando a fazer música no Brasil em bandas dessa tradição autoral meio pop, meio experimental, e muitas bandas de gente saindo de formação acadêmica. Isso, de alguma forma, tá influenciando no jeito de se fazer música. Mas é engraçado, nessa galera dos anos 70, era todo mundo muito foda, mas tinha menos dessa formação “careta”, era mais de tirar de ouvido, de aprender na noite. Mas tinha músicos excepcionais.

MP: E como é fazer música “meio pop, meio experimental” hoje no Brasil?

Milliet: Eu acho que o Brasil tem uma tradição de gente que tenta fazer música pop sem perder o objetivo de tentar fazer arte no significado mais amplo que isso possa ter e com todas as armadilhas que isso traz também, porque você tá fazendo música pop comercial. Então é um jogo de tensão constante, do quanto você consegue fazer. Ainda mais agora, que eu vejo que tem um puta espaço de produzir um monte de coisa, você grava o que quiser na sua casa e divulga, e bem nesses últimos anos tenho sentido que a coisa pulverizou, as bandas são independentes, mas todo mundo é muito independente e cria pequenas infraestruturas de trabalho perto de si, então uma banda começa a achar alguém que marca show, alguém que agencia, alguém que divulga e curte falar sobre. Mesmo que a gente trabalhe em nossa independência, a gente começa a trabalhar nos mecanismos de divulgação iguais os lá de trás. Eu acho muito estranha a predominância do clipe, do vídeo sobre o áudio. Acho que ainda rola muito. Se você não faz um clipe, você não alcança. Só pelo som, as pessoas não chegam pra te ouvir.

MP: Deixando de lado esse modelo de trabalho, o que a gente pode falar sobre a estética que os grupos de música autoral estão trabalhando?

Milliet: Tem muita gente fazendo música que não é apenas autoral, mas engajada, comprometida, com a música, com a arte. Nisso, eu vejo valor. No período em que a indústria era mais dominante, talvez isso fosse difícil ver. Não sei se eu consigo acreditar que não tinha. Lá nos anos 90, devia ter um monte de coisa que a gente nunca ficou sabendo, porque não tinha um canal. Era mais opressor. Hoje em dia, eu gosto muito de Metá Metá, altamente engajado com questões de cultura brasileira e da sociedade contemporânea. Desses grupos mais perto de mim, eu gosto muito do Filarmônia de Pasárgada, que vai lançar disco em breve também. Acho que é toda uma geração que – e a armadilha é essa – a gente tem recurso, tem essa intenção de fazer uma música comprometida com arte, e não unicamente pop comercial, mas é difícil não cair nas fórmulas.

MP: Quando você diz fórmulas, está falando de uma canção mais pop mesmo, com um alcance maior?

Milliet: É. Mas, ao mesmo tempo, eu adoro música pop, claramente pop.

MP: Mas você sabe que o que você faz não é tão pop assim, né?

Milliet: (risos) Eu sei, mas tem uma coisa que eu tava pensando esses dias, que a gente tentou ter narrativas musicais mais longas. Alguns de nós ouviram muito rock progressivo, então rolou um “vamos tentar fazer uma faixa de oito minutos que tenha um nexo”. Acho que a gente não atingiu totalmente esse objetivo, ao mesmo tempo que não foi “vamos fazer aquela canção clássica de três minutos A-B-refrão-A-B e todo mundo fica feliz”. A maioria das faixas do disco tem quatro, cinco, seis minutos, tá bem no meio. Meu pensamento é “será que foi por acaso ou a gente tá se levando pra isso?”. E eu terminei o disco pensando nisso, que no próximo eu quero fazer cinco canções de três minutos e 22 segundos exatos e uma de 20, sabe? Duas pesquisas totalmente diferentes. Acho que Memórias de um Caramujo não é estritamente pop nem profundamente experimental, entende? Aliás, eu acho engraçado que a música que eu acho mais experimental tem três minutos e pouco, Potosi. É a mais curta, mas a menos pop.

MP: Não me é comum colocar em paralelo “pop” e “experimental”, mas estou pensando desde o começo do assunto que é exatamente isso que acontece na MPB, desde a Tropicália.

Milliet: Tropicália é exatamente isso, sim, os caras forçando essa barra.

MP: Sim, e aquelas músicas, mesmo experimentais, entraram pro repertório popular.

Milliet: É, tanto nesse sentido de que são populares (as pessoas cantam na rua Gilberto Gil e Caetano Veloso), quanto no sentido da cultura de massa, de ser midiático. Eu acho que a gente tem essa tradição e acho que é por isso que hoje em dia a nossa geração tem muita  gente que cresceu ouvindo essas coisas e quer fazer desse jeito, sabe? Independente que é veiculado, um independente mais pop.

MP: Minha próxima pergunta era justamente isso, que é o que Memórias de um Caramujo tem de contemporâneo, e acho que é isso mesmo.

Milliet: Tem uma coisa que eu reparo, que a gente cresceu ouvindo muitos estilos diferentes dentro da mesma experiência, que era colocar um CD pra tocar. Eu podia colocar Beatles, Elomar, Gilberto Gil e Bach, que fosse, no mesmo dia, e acho que isso começa a se refletir na música. Você vai na faixa 1 é uma coisa, na faixa 2 é outra. E eu acho que tem bastante grupo que trabalha desse jeito, enquanto tem outros em que você reconhece mais um “estilão”. O que é mais forte do Memórias de um Caramujo é que a tradição é a própria diversidade do repertório que a gente tem. Essa atitude, de certa forma, é contemporânea.

Baixe o disco Cheio de Gente no site da banda Memórias de um Caramujo

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